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Notas acerca da adoção prioritária de soluções baseadas na natureza
15/08/2024
A recente Lei 14.904, publicada em 27 de junho de 2024, estabeleceu as diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima, inclusive alterando alguns pontos da Lei 12.114/2009, que regulamenta o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC). A Lei 14.904/2024 tem por objetivo, conforme consignado no seu artigo 1º, “implementar medidas para reduzir a vulnerabilidade e a exposição a riscos dos sistemas ambiental, social, econômico e de infraestrutura diante dos efeitos adversos atuais e esperados da mudança do clima, com fundamento na Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC)”. Entre os efeitos climáticos adversos, destacam-se os episódios climáticos extremos, tal como o trágico desastre climático ocasionado pelas enchentes verificadas no mês de maio de 2024 no estado do Rio Grande do Sul.
Além de estabelecer o regime jurídico de adaptação climática a ser adotado pelo Estado em todas as suas esferas federativas (União, estados, Distrito Federal e municípios), a Lei 14.904/2024 consagrou, como diretriz dos planos de adaptação às mudanças climáticas, a adoção de soluções baseadas na natureza. É o que estabelece o artigo 2º, VIII, do diploma, ao prever: “a adoção de soluções baseadas na Natureza como parte das estratégias de adaptação, considerando seus benefícios adicionais e sua capacidade de integrar resultados para adaptação e mitigação, simultaneamente”.
Em caráter complementar, o artigo 3º prevê que os planos de adaptação às mudanças climáticas assegurarão a adequada implementação das estratégias traçadas, prioritariamente nas áreas de: “III – infraestrutura baseada na Natureza, que utiliza elementos da Natureza para fornecer serviços relevantes para adaptação às consequências da mudança do clima, com vistas a criar resiliência e proteção da população, de bens e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, de forma sustentável, com a possibilidade de integrar simultaneamente ações de adaptação e mitigação da mudança do clima”.https://60a4c8ea6215fe10c2bd7ae85b1e8abf.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-40/html/container.html
Ineditismo
A Lei 14.904/2024, como se pode observar dos dispositivos citados, consagrou de forma expressa e inédita na legislação brasileira o princípio (e dever) jurídico de adoção prioritária de soluções baseadas na natureza. A premissa em questão alinha-se com todo o arcabouço de princípios reitores do Direito Ambiental, como, por exemplo, prevenção, precaução, in dubio pro natura, proibição de retrocesso, progressividade, desenvolvimento sustentável, prioridade da restauração in natura, integridade ecológica, entre outros.https://imasdk.googleapis.com/js/core/bridge3.657.0_en.html#goog_883745250Playvolume00:00/03:23TruvidfullScreenhttps://csync-global.smartadserver.com/3356/CookieSync.html
Além disso, contempla o entendimento científico dominante no sentido buscar soluções na própria natureza para solucionar os problemas ecológicos (e climáticos) ocasionados pela intervenção do ser humano no meio ambiente. Mais intervenção tecnológica – por exemplo, a denominada geoengenharia [1] — para resolver os problemas gerados pela própria intervenção humana na natureza não parece ser a melhor solução, mas sim, mais soluções fornecidas pela própria natureza e seus serviços ecológicos. A Constituição de 1988 (CF/1988) igualmente reforça tal entendimento ao estabelecer o dever do Estado (e dos particulares) de “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (artigo 225, § 1º, I), bem como se salvaguarda da “função ecológica” da flora e da fauna (art. 225, § 1º, VII).
A consagração jurídica dos “serviços ambientais” — e entre eles, os “serviços climáticos” — também se coloca em sintonia com o princípio (e dever) de adoção de soluções baseadas na Natureza, conforme previsão expressa do artigo 41, I, do Código Florestal (Lei 12.651/2012) e artigo 2º da Lei da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (Lei 14.119/2021). Os “serviços de regulação” consagrados no artigo 2º da Lei 14.119/2021, como espécie do gênero “serviços ecossistêmicos”, ilustram bem esse cenário: “os que concorrem para a manutenção da estabilidade dos processos ecossistêmicos, tais como o sequestro de carbono, a purificação do ar, a moderação de eventos climáticos extremos, a manutenção do equilíbrio do ciclo hidrológico, a minimização de enchentes e secas e o controle dos processos críticos de erosão e de deslizamento de encostas”.
Menos é mais na relação com a natureza
A natureza é, por excelência — e como se pode ver dos exemplos listados —, a maior prestadora dos serviços ambientais e, portanto, das soluções necessárias para o enfrentamento do estado de emergência ambiental e climática que vivemos no Antropoceno.
A inversão ou alteração do curso de um rio pela mão humana é, por outro lado, a antítese de uma solução baseada na natureza. Medidas de geoengenharia para a retirada de CO2 da atmosfera terrestre são outro exemplo no mesmo sentido. O nosso conhecimento sobre o mundo natural e as relações complexas que o constituem, por mais que tenhamos avançado muito desde a ciência moderna e, mais recentemente, por meio da atual Ciência da Terra (Earth Science), ainda é profundamente limitado. A título de exemplo, estamos todos os dias levando espécies à extinção antes mesmo de conhecê-las [2]. Não conhecemos de forma completa e menos ainda controlamos as consequências das nossas intervenções na natureza.
Menos (intervenção) é mais (solução) na nossa relação com a natureza! O princípio da precaução comunica a mesma mensagem, ou seja, devemos ter muita cautela e não agir ou intervir na Natureza em cenários em que não dispomos de um domínio científico seguro.
Devemos confiar mais nos processos naturais do Planeta Terra para solucionar os problemas e desequilíbrios ocasionados pela intervenção humana na natureza. A título de exemplo, as árvores e, em particular, o conjunto delas representado pelas florestas são uma das “tecnologias” mais eficientes já criadas (pela própria natureza) para a retirada de CO2 da atmosfera terrestre e sua estocagem segura.https://60a4c8ea6215fe10c2bd7ae85b1e8abf.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-40/html/container.html
Proteger (o que resta delas) e replantar (se desmatadas) as nossas florestas e vegetação nativa em geral são as soluções “tecnológicas” (baseadas na natureza!) mais potentes para enfrentarmos o aquecimento global e as mudanças climáticas. Igual medida vale para frearmos a sexta extinção em massa de espécies naturais e perda de biodiversidade em plano curso na atualidades, conforme apontado pelo Relatório de Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (2019) do Painel Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) da ONU, ao identificar o perigoso declínio “sem precedentes” da perda de biodiversidade, com a “aceleração” das taxas de extinção de espécies, a tal ponto que 1.000.000 de espécies encontram-se hoje ameaçadas de extinção no nosso planeta.
Diretriz se aplica ao Direito Ambiental em termos gerais
A priorização da adoção de soluções baseadas na natureza está perfeitamente alinhada com os princípios da proibição de retrocesso e da progressividade em matéria ambiental e climática. Devemos assegurar o desmatamento zero (portanto, proibição de retrocesso) e o replantio progressivo das áreas florestais e vegetação nativa desmatadas para alcançar a meta jurídica da neutralidade climática até 2050, conforme estabelecido no Acordo de Paris (2015). É o que se pode apreender da passagem que segue do seu preâmbulo: “Reconhecendo a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível”. A adoção do “melhor conhecimento científico disponível” coincidirá, em muitas situações, com a “adoção de soluções baseadas na Natureza”.
Por fim, é importante deixar claro que o princípio (e dever) jurídico de adoção prioritária de soluções baseadas na natureza não se restringe ao Direito Climático, mas é sim aplicável ao Direito Ambiental em termos gerais, integrando, assim, o seu microssistema jurídico juntamente com seus princípios clássicos (prevenção, poluidor-pagador, cooperação, desenvolvimento sustentável etc.). Em caráter meramente ilustrativo, trata-se de diretriz normativa a ser aplicada no âmbito da reparação de danos ambientais em geral apurados nas três esferas de responsabilização (penal, administrativa e ambiental) do poluidor, tomando por premissa que já vige na matéria, em absoluta sintonia com a adoção de soluções baseadas na natureza, a priorização da restauração in natura dos danos causados ao meio ambiente.
A força normativa e vinculação do princípio da adoção prioritária de soluções baseadas na natureza alcança não apenas o Estado, mas igualmente os agentes particulares (pessoas físicas e jurídicas), impondo-se por meio de deveres jurídicos.
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[1] Vide KOLBERT, Elizabeth. Sob um céu branco: a Natureza no futuro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
[2] WILSON, Edward O. Half-Earth: our Planet’s Fight for Life. New York: Liveright, 2016, p. 44.