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Direitos humanos, meio ambiente e dever de diligência das empresas
28/06/2024
O Caso Comunidade La Oroya vs. Peru da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), julgado em novembro de 2023 e cuja decisão foi publicada no mês de março de 2024, abordou de forma paradigmática o “dever de devida diligência” das empresas públicas e privadas em matéria de direitos humanos, meio ambiente e clima.
O tema foi novamente abordado pela Corte IDH durante o 167º Período Ordinário de Sessões que ocorreu no Brasil, entre os dias 20 e 29 de maio de 2024, com a sua abertura realizada no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Nos dias 24 (no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília), 27, 28 e 29 (no Teatro Amazonas, em Manaus), a Corte IDH realizou audiência pública histórica para subsidiar a futura Opinião Consultiva n. 32 sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos”, objeto de solicitação formulada pela Colômbia e Chile no início do ano de 2023. [1]
O Caso Comunidade La Oroya é o primeiro julgamento contencioso da Corte IDH sobre poluição ou contaminação química. Para dimensionar a magnitude da poluição industrial verificada no caso, La Oroya foi listada entre as localidades mais poluídas do Mundo por órgãos internacionais.
A poluição levada a efeito pelo Complexo Metalúrgico de La Oroya, no Peru, perpetuou-se por mais de um século, ensejando, segundo a Corte IDH, violação flagrante ao direito a um meio ambiente saudável e a configuração de uma “zona de sacrifício”, caracterizada pela violação sistêmica e massiva dos direitos humanos dos seus residentes. Inúmeras gerações dos habitantes de La Oroya foram envenenadas por chumbo, arsênico e outras substâncias químicas altamente tóxicas, resultando em doenças (físicas e mentais) e mortes.
‘Zonas de sacrifício’
As características do caso nos remetem ao cenário de poluição industrial verificada na cidade de Cubatão, na Baixada Santista, a qual entre as décadas de 1970 e 1980, chegou a ser reconhecida como a cidade mais poluída do mundo, recebendo a denominação de “Vale da Morte”, ou seja, uma “zona de sacrifício” tal como La Oroya. Um cenário de poluição e violação a direitos humanos e fundamentais permeado pela atividade levada a efeito pela iniciativa privada, igualmente impactando de modo desproporcional indivíduos e grupos sociais vulneráveis.
Outras “zonas de sacrifício”, com impactos devastadores sobre populações vulneráveis, podem ser identificadas também em situações de desastres ambientais, como verificado nos casos de Mariana (2015), Maceió (2018 e novamente no final de 2023) e Brumadinho (2019). Todas os casos citados tiveram como causa atividades econômicas empreendidas por empresas privadas, inclusive envolvendo grandes grupos multinacionais.
O Caso Comunidade La Oroya, por sua vez, segue — e faz avançar — o novo paradigma ecológico edificado na jurisprudência da Corte IDH desde a Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”, seguida, posteriormente, já no âmbito da sua jurisdição contenciosa, com o Caso Tierra Nuestra vs. Argentina (2020).
Aliás, cuida-se de paradigma jurisprudencial igualmente incorporado ao Sistema Universal de Direitos Humanos, como ilustra, entre outros diplomas e documentos, a Resolução A/76/L.75 (2022) da Assembleia Geral da ONU, ao reconhecer e atribuir ao direito ao meio ambiente o status de direito humano autônomo. Aliás, tal evolução certamente encontrará ressonância e possivelmente até maior desenvolvimento quando da edição da já referida Opinião Consultiva n. 32 da Corte IDH sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos”, incorporando a dimensão climática ao tratamento dos direitos humanos.
No CasoComunidade La Oroya, a Corte IDH reconheceu que os deveres de proteção do Estado para com os direitos humanos incidem na regulamentação da atividade de mineração empreendida por empresas públicas e privadas, por meio da imposição de “deveres de devida diligência” e a correlata reparação de danos causados às vítimas de tal atividade (“las obligaciones de los Estados para el respeto y garantía de los derechos humanos frente acciones u omisiones de empresas públicas y privadas”). Ainda de acordo com a decisão da Corte IDH,
“como parte de su deber de protección contra las violaciones de derechos humanos relacionadas con actividades empresariales, los Estados deben tomar medidas apropiadas para garantizar, por las vías judiciales, administrativas, legislativas o de otro tipo que correspondan, que cuando se produzcan ese tipo de abusos en su territorio y/o jurisdicción los afectados puedan acceder a mecanismos de reparación eficaces.”
O reconhecimento, pela Corte IDH, do dever (na verdade, deveres múltiplos) de devida diligência das empresas públicas e privadas em matéria de direitos humanos, meio ambiente e clima, conecta-se com denominada eficácia dos direitos humanos nas relações entre particulares, o que ganha ainda maior relevância e força no Brasil após a decisão emblemática proferida pelo STF na ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima), ao reconhecer o status supralegal dos tratados internacionais em matéria ambiental e climática (ex. Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, Acordo de Paris etc.) ratificados e incorporados ao sistema jurídico nacional.
Ou seja, do ponto de vista da hierarquia normativa, os tratados internacionais ambientais e climáticos são reconhecidos pelo STF como espécie do gênero tratados internacionais de direitos humanos e, portanto, situam-se acima da legislação civil ordinária, como, por exemplo, o Código Civil.
A legislação infraconstitucional, por essa ótica, deve ser interpretada (de forma sistemática e evolutiva, conforme diretriz hermenêutica empregada pela Corte IDH) a mediante as lentes (e eficácia) dos direitos humanos, além, é claro da ordem constitucional e dos direitos fundamentais, entre os quais se destaca, de forma autônoma, o direito a viver em um meio ambiente saudável e equilibrado.
Vinculação dos agentes privados
O entendimento em questão reforça a vinculação dos agentes privados — sobretudo daqueles que empreendem atividades de significativo risco e impacto ambiental —, aos tratados internacionais ambientais e climáticos, consubstanciando os denominados deveres de devida diligência das empresas privadas em matéria de direitos humanos, meio ambiente e clima.
Os deveres de devida diligência, conforme se pode observar da passagem da decisão da Corte IDH citada anteriormente, operam tanto na dimensão preventiva quanto na dimensão reparatória, neste último caso na hipótese de as medidas preventivas não terem sido suficientes para evitar a ocorrência de danos ao meio ambiente e a terceiros.
A eficácia dos tratados internacionais ambientais e climáticos — em particular, do Acordo de Paris — foi reconhecida de forma exemplar pela Corte Distrital de Haia no Caso Milieudefensie v. Royal Dutch Shell (2021), em que foi ordenada à empresa privada a redução de pelo menos 45% das suas emissões de gases do efeito estufa até o ano de 2030 (em relação aos níveis de 2019), a fim de empreender esforços para limitar o aumento da temperatura global a no máximo 1,5-2ºC. [2]
O caso em questão é pioneiro em obrigar judicialmente empresa privada a reduzir as suas emissões de gases do efeito estufa, fixando uma meta específica (target) para tanto. É um típico caso de litigância climática corporativa, o que ganha cada vez mais força em vista da reconhecida eficácia dos tratados internacionais de direitos humanos — entre eles, os tratados ambientais e climáticos — nas relações privadas e, em particular, nas relações empresariais, inclusive por meio da imposição de deveres de devida diligência às empresas privadas em matéria de direitos humanos, meio ambiente e clima, notadamente na hipótese de empresas multinacionais, conforme consagrado de forma emblemática em decisão recente da Corte IDH no CasoComunidade La Oroya.
Para concluir, destaca-se outra inovação importantíssima e pioneira trazida pela Corte IDH na sua decisão no Caso La Oroya, a qual diz respeito ao reconhecimento da proteção ambiental como norma de jus cogens. Ao adotar tal entendimento, a Corte IDH eleva o status jurídico da proteção ambiental, reconhecendo-a como norma imperativa de direito internacional e princípio universal inderrogável imposto aos Estados, de modo similar ao verificado nas proibições de genocídio, de escravidão, de apartheid, de desaparecimento forçado e de crimes de lesa humanidade.
“Los Estados han reconocido el derecho al medio ambiente sano, el cual conlleva una obligación de protección que atañe a la Comunidad Internacional en su conjunto. Es difícil imaginar obligaciones internacionales con una mayor trascendencia que aquéllas que protegen al medio ambiente contra conductas ilícitas o arbitrarias que causen daños graves, extensos, duraderos e irreversibles al medio ambiente en un escenario de crisis climática que atenta contra la supervivencia de las especies. En vista de lo anterior, la protección internacional del medio ambiente requiere del reconocimiento progresivo de la prohibición de conductas de este tipo como una norma imperativa (jus cogens) que gane el reconocimiento de la Comunidad Internacional en su conjunto como norma que no admita derogación. Esta Corte ha señalado la importancia de las expresiones jurídicas de la Comunidad Internacional cuyo superior valor universal resulta indispensables para garantizar valores esenciales o fundamentales. En este sentido, garantizar el interés de las generaciones tanto presentes como futuras y la conservación del medio ambiente contra su degradación radical resulta fundamental para la supervivencia de la humanidad.”
A decisão da Corte IDH no Caso Comunidade La Oroya, por sua vez, guarda sintonia com o que se passa no contexto europeu e internacional no concernente à responsabilidade corporativa em matéria de direitos humanos, proteção do meio ambiente e clima.
Nesse sentido, assume relevo a Diretiva de Due Diligence em Sustentabilidade Corporativa (“CS3D”) da União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu em 24/5 deste ano, que estabelece obrigações das empresas em relação aos impactos adversos atuais e potenciais aos direitos humanos e ao meio ambiente em suas operações diretas e no âmbito de sua cadeia global de atividades, alcançando, de modo indireto, empresas brasileiras ou com operação no país que integrem de algum modo essa cadeia.
No plano do Sistema Universal da ONU, destaca-se o último relatório do relator especial para questões ambientais, David Boyd, que tem por foco a responsabilidade das empresas para com o respeito ao direito a um meio ambiente saudável e sustentável, assim como o documento resultante da 55ª Sessão (26/2 a 5/4/24), item 3 da agenda, do Conselho de Direitos Humanos, que igualmente prevê a responsabilidade e obrigações das empresas nessa seara.
De qualquer sorte, o que se constata é que os níveis de conscientização e os respectivos avanços normativos no que diz respeito aos deveres dos estados e da sociedade em matéria de proteção e promoção dos direitos humanos e fundamentais em geral e dos direitos a um meio ambiente saudável e equilibrado e a um clima estável e íntegro, parecem estar avançando, o que, em meio a tantas tragédias e desastres ambientais e climáticas que tem assolado o nosso planeta, como é o caso das recentes enchentes no Rio Grande do Sul, serve de farol a iluminar os próximos passos rumo a um futuro mais sustentável.
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[1] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/observaciones_oc_new.cfm?nId_oc=2634.
[2] A eficácia horizontal dos direitos humanos no direito privado (holandês) reconhecida pela Corte Distrital de Haia no caso Caso Milieudefensie v. Royal Dutch Shell por meio da aplicação do Acordo de Paris e imposição judicial de redução de emissões à empresa privada, é referida por: Burgers Laura. An Apology Leading to Dystopia: Or, Why Fuelling Climate Change Is Tortious. Transnational Environmental Law. 2022, 11(2), p. 431 (419-431).