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Direitos fundamentais e responsabilidade civil ambiental (parte 2)
03/05/2023
Dando seguimento à coluna anterior sobre o tema, publicada neste espaço em 29/3/2023, apresentaremos mais algumas linhas mestras do sistema de responsabilidade civil por danos ambientais na ordem jurídico-constitucional brasileira, que, ao fim e ao cabo, serve ao propósito — juntamente com outros instrumentos e institutos — de dar a máxima eficácia e efetividade ao direito fundamental à proteção de um meio ambiente saudável e equilibrado.
Poluidor e responsabilidade civil objetiva
Além do conceito amplo de poluidor e de um modelo de responsabilidade objetiva, já tratados na última coluna, a responsabilidade civil ambiental é caracterizada pela solidariedade entre todos os poluidores (diretos e indiretos) identificados na cadeia de relação causal e que concorreram para a ocorrência do dano ambiental. O reconhecimento da solidariedade possibilita o acionamento judicial, por partes das vítimas e entidades legitimadas para a tutela ecológica (como, por exemplo, o Ministério Público), de qualquer um dos poluidores identificados como causadores diretos ou indiretos do dano ambiental, na medida em que, no âmbito da relação jurídica processual, tem-se a configuração de litisconsórcio passivo facultativo.
No âmbito legislativo (infraconstitucional), a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), além de evidenciar a característica multidimensional do dano ambiental (difuso, individual homogêneo, individual etc.), consagrou expressamente a natureza objetiva e solidária da responsabilidade civil na matéria no seu artigo 20, conforme segue: “Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa”.
Por sua vez, a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, igualmente reforça o regime jurídico da responsabilidade civil ambiental, notadamente em relação à sua natureza solidária e no que diz com a reparação integral dos danos causados, inclusive na caracterização da responsabilidade solidária entre as sociedades controladoras e controladas, conforme previsão do seu artigo 4º, § 2º [1].
No que diz respeito ao papel do Poder Judiciário, importa sublinhar que o STJ, na Súmula 652, reconheceu inclusive a responsabilidade solidária do Estado, ao estabelecer que “a responsabilidade civil da administração pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária”. Nada obstante tratar da responsabilidade do Estado pelo dano ambiental, a Súmula 652 reconhece expressamente, inclusive em relação aos entes estatais, a natureza solidária da responsabilidade civil ambiental.
Além disso, é de se agregar que a responsabilidade solidária dos poluidores (direitos e indiretos) não obsta o exercício do direito de regresso entre eles, a depender da maior ou menor contribuição para a ocorrência do dano ambiental.
Teoria do Risco Integral
Outro desenvolvimento de grande importância a ser aqui referido, é o de que a doutrina e jurisprudência brasileiras são pacíficas na adoção da denominada “Teoria do Risco Integral” para a responsabilidade civil ambiental, de modo a não admitir a alegação de qualquer excludente de ilicitude (caso fortuito, força maior, culpa exclusiva de terceiros, culpa exclusiva da vítima etc.) para isentar o poluidor ambiental de sua responsabilização. No âmbito da jurisprudência do STJ, conforme julgamento já reportado anteriormente no Recurso Repetitivo Tema 707, tal entendimento está consolidado. De acordo com o julgado, em passagem que tomamos a liberdade de transcrever, a responsabilidade civil ambiental tem como
“pressuposto a existência de atividade que implique riscos para a saúde e para o meio ambiente, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato que é fonte da obrigação de indenizar, de modo que, aquele que explora a atividade econômica coloca-se na posição de garantidor da preservação ambiental, e os danos que digam respeito à atividade estarão sempre vinculados a ela, por isso descabe a invocação, pelo responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil e, portanto, irrelevante a discussão acerca da ausência de responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro ou pela ocorrência de força maior”[2].
A aplicação da Teoria do Risco Integral alcança tanto a reparação dos danos ambientais propriamente ditos (ou danos difusos, tal como consagrado na legislação brasileira) quanto os danos individuais homogêneos ou danos individuais ocasionados a partir do mesmo evento de degradação ecológica. Nesse sentido também tem julgado o STJ, prevendo a aplicação da Teoria do Risco Integral a todos os danos ambientais (inclusive danos individuais e individuais homogêneos), tanto patrimoniais quanto extrapatrimoniais, ocasionados a partir do mesmo evento:
“RESPONSABILIDADE CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DANO AMBIENTAL. ROMPIMENTO DO POLIDUTO ‘OLAPA’. POLUIÇÃO DE ÁGUAS. PESCADOR ARTESANAL. PROIBIÇÃO DA PESCA IMPOSTA POR ÓRGÃOS AMBIENTAIS. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA PETROBRAS. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS CONFIGURADOS. PROIBIÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA. PESCADOR ARTESANAL IMPEDIDO DE EXERCER SUA ATIVIDADE ECONÔMICA. Aplicabilidade, ao caso, das teses de direito firmadas no REsp 1.114.398/PR (julgado pelo rito do art. 543-C do CPC). Quantum compensatório. Razoável, tendo em vista as particularidades do caso. 1. No caso, configurou-se a responsabilidade objetiva da PETROBRAS, convicção formada pelas instâncias ordinárias com base no acervo fático-documental constante dos autos, que foram analisados à luz do disposto no art. 225, § 3º, da Constituição Federal e no art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981. 2. A Segunda Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.114.398/PR, da relatoria do senhor Ministro Sidnei Beneti, sob o rito do art. 543-C do CPC, reconheceu a responsabilidade objetiva da PETROBRAS em acidentes semelhantes e caracterizadores de dano ambiental, responsabilizando-se o degradador em decorrência do princípio do poluidor-pagador, não cabendo, demonstrado o nexo de causalidade, a aplicação de excludente de responsabilidade. 3. Configura dano moral a privação das condições de trabalho em consequência de dano ambiental — fato por si só incontroverso quanto ao prolongado ócio indesejado imposto pelo acidente, sofrimento, à angústia e à aflição gerados ao pescador, que se viu impossibilitado de pescar e imerso em incerteza quanto à viabilidade futura de sua atividade profissional e manutenção própria e de sua família. 4. Recurso especial não provido”[3].
Inversão do ônus da prova nas ações ambientais
Outro avanço digno de nota no campo — não só, mas também da responsabilidade civil ambiental — é a consolidação, há mais de década, na jurisprudência do STJ, do entendimento favorável à inversão do ônus da prova nas ações ambientais.[4] Mais recentemente, o nosso Tribunal da Cidadania, por decisão da sua Corte Especial, em 24 de outubro de 2018, aprovou a Súmula 618: “a inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental”. De modo complementar, assinala o ministro Herman Benjamin no seu voto-relator no Recurso Especial 1.071.741/SP:
“(…) qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público ou privado, no Direito brasileiro a responsabilidade civil pelo dano ambiental é de natureza objetiva, solidária e ilimitada, sendo regida pelos princípios do poluidor-pagador, da reparação in integrum, da prioridade da reparação in natura, e do favor debilis, este último a legitimar uma série de técnicas de facilitação do acesso à Justiça, entre as quais se inclui a inversão do ônus da prova em favor da vítima ambiental (…)”[5].
Tal entendimento se revela ainda mais significativo, se tomarmos como parâmetro que, na absoluta maioria das vezes, o polo passivo da demanda é ocupado por entes públicos e empresas privadas de grande porte (inclusive multinacionais, como é a praxe no campo das empresas do setor de energia e mineração), a inversão do ônus probatório se revela como sendo essencial para equalizar a relação jurídica processual, tendo em conta a não raras vezes brutal desigualdade em termos econômicos, técnicos, informacional, jurídico, etc., que em geral se verifica nos litígios ambientais, como, por exemplo, em ações civis públicas ajuizadas por organizações não-governamentais ou mesmo ações populares ajuizadas por indivíduos. A inversão do ônus da prova é, portanto, condição sine qua non para assegurar a paridade de armas na relação jurídica processual e salvaguardar de forma adequada os direitos fundamentais (ao meio ambiente) em jogo, com a adequada e integral reparação dos danos ambientais (individuais e coletivos) em favor das vítimas e da própria sociedade no seu conjunto.
Natureza multidimensional do dano ambiental
Outro ponto a ser destacado, é o da natureza multidimensional do dano ambiental, uma vez que, a partir de um mesmo evento de degradação ecológica, é possível identificar um universo amplo de vítimas e diferentes interesses e direitos violados. Um mesmo episódio, como verificado no caso de diversas tragédias ambientais de grande monta ocorridas no Brasil, pode ocasionar a caracterização tanto de dano ambiental em sentido estrito (coletivo ou difuso) quanto de dano ambiental individual (por ricochete ou correlato). Na doutrina e jurisprudência [6], por sua vez, é possível encontrar a distinção entre dano ambiental público e dano ambiental privado para diferenciar tais categorias. Dito de outro modo, o mesmo fato pode ensejar a ocorrência cumulativa de danos materiais e de danos extrapatrimoniais (como no caso do dano moral, tanto individual quanto coletivo).
Além disso, o reconhecimento da natureza multidimensional do dano ambiental atende ao princípio e dever de reparação integral, conforme sustentado tanto na doutrina quanto na jurisprudência [7].
Na esfera da legislação infraconstitucional, o artigo 14, § 1º, da Lei 6.938/81 é taxativo no sentido de obrigar o poluidor ambiental a reparar os “danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”. Não apenas o dano ambiental em sentido estrito (ex. poluição hídrica) deve ser reparado integralmente, mas também todos os demais danos individuais e coletivos provocados a terceiros e decorrentes do mesmo episódio fático, aplicando-se a todos o tratamento jurídico especializado da legislação ambiental no âmbito da responsabilidade civil.
Também a Lei da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei 12.334/2010), a partir das alterações inseridas pela Lei 14.066/2020, passou a prever importante regramento para a caracterização dos múltiplos danos decorrentes de episódio relacionados a tais empreendimentos e atividades (ex. rompimento), conforme segue: “Art. 2º (…) VII – dano potencial associado à barragem: dano que pode ocorrer devido a rompimento, vazamento, infiltração no solo ou mau funcionamento de uma barragem, independentemente da sua probabilidade de ocorrência, a ser graduado de acordo com as perdas de vidas humanas e os impactos sociais, econômicos e ambientais; [8] (…)XIV – desastre: resultado de evento adverso, de origem natural ou induzido pela ação humana, sobre ecossistemas e populações vulneráveis, que causa significativos danos humanos, materiais ou ambientais e prejuízos econômicos e sociais”.
Responsabilidade civil por danos ambientais
No sentido de aplicar o regime especial da responsabilidade civil ambiental tanto em relação ao dano ambiental público (lesão ao meio ambiente propriamente dito), quanto ao dano ambiental privado (ofensa a direitos individuais), destaca-se o julgamento proferido pela 3ª Turma no Recurso Especial nº 1.373.788/SP, sob a relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino:
“A responsabilidade civil por danos ambientais, seja por lesão ao meio ambiente propriamente dito (dano ambiental público), seja por ofensa a direitos individuais (dano ambiental privado), é objetiva, fundada na teoria do risco integral, em face do disposto no art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, que consagra o princípio do poluidor-pagador. A responsabilidade objetiva fundamenta-se na noção de risco social, que está implícito em determinadas atividades, como a indústria, os meios de transporte de massa, as fontes de energia. Assim, a responsabilidade objetiva, calcada na teoria do risco, é uma imputação atribuída por lei a determinadas pessoas para ressarcirem os danos provocados por atividades exercidas no seu interesse e sob seu controle, sem que se proceda a qualquer indagação sobre o elemento subjetivo da conduta do agente ou de seus prepostos, bastando arelação de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e a situação de risco criada pelo agente”[9].
Note-se, ainda, que o regime jurídico aplicado aos danos individuais e coletivos pode apresentar alguma distinção apenas no que diz respeito à incidência, ou não, da prescrição em relação ao dever de reparação, o que, contudo, será objeto de desenvolvimento na próxima coluna sobre o tema.
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[1] “Art. 4º Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. § 1º. Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados. § 2º. As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado.”
[2] STJ, REsp 1.374.284/MG, 2ª Seção, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 27.08.2014, Recurso Repetitivo Tema 707.
[3] STJ, REsp 1.346.430/PR, 4ª Turma, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 18.10.2012.
[4] STJ, REsp 972.902/RS, 2ª Turma, rel. min. Eliana Calmon, j. 25.08.2009.
[5] STJ, REsp 1.071.741/SP, 2ª Turma, rel. min. Herman Benjamin, j. 24.03.2009.
[6] STJ, REsp 1.373.788/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 06.05.2014.
[7] STJ, REsp 1.180.078/MG, 2ª Turma, rel. min. Herman Benjamin, j. 02.12.2010.
[8] Redação anterior do dispositivo: “VII – dano potencial associado à barragem: dano que pode ocorrer devido a rompimento, vazamento, infiltração no solo ou mau funcionamento de uma barragem”.
[9] STJ, REsp 1.373.788/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 06.05.2014.