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Direitos fundamentais e o desastre climático no RS

Ingo Wolfgang Sarlet
Ingo Wolfgang Sarlet

06/06/2024

As enchentes registradas no mês de maio de 2024 no Rio Grande do Sul entrarão para a história como o maior desastre climático já verificado no Brasil até agora. O rio Taquari já havia batido o seu recorde de alta histórica alguns meses atrás, nas enchentes que assolaram o estado gaúcho em setembro de 2023, alcançando 29,5 metros em registro feito no município de Lajeado.Spacca

Em 2024, bateu novo recorde e chegou a 33,3 metros no dia 1º de maio. A ponte sobre o rio Taquari na BR-386, entre os municípios de Estrela e Lajeado, nunca havia ficado submersa e sido interditada — e menos ainda destruída — em razão de uma enchente, desde a sua construção (1962). Uma imagem que circulou muito nas redes sociais e veículos de comunicação, com a ponte Estrela-Lajeado, a BR-386 e uma loja da Havan quase totalmente submersas, registrou o cenário climático apocalíptico descrito.https://imasdk.googleapis.com/js/core/bridge3.643.0_en.html#goog_1582213520https://csync-global.smartadserver.com/3356/CookieSync.html

Na sequência, no dia 5 de maio, foi a vez do lago Guaíba alcançar a marca histórica (também novo recorde) de 5,33 metros, alagando diversos bairros de Porto Alegre e revelando uma paisagem urbana distópica, com barcos circulando por lugares inusitados como o centro histórico, o aeroporto Salgado Filho, os estádios Beira-Rio (do Internacional) e Arena (do Grêmio), entre outros cartões postais da cidade.

Nem o tradicional monumento do Laçador foi poupado, ficando completamente ilhado. Nunca uma enchente no Brasil causou um espectro tão amplo de destruição, atingindo aproximadamente 450 municípios do Estado de Rio Grande do Sul (90%, de um total de 497) e obrigando um contingente gigantesco pessoas a deixarem suas casas e buscarem abrigo em outras localidades. Mais de meio milhão de deslocados climáticos. Algumas cidades da região metropolitana ficaram (total ou parcialmente) submersas, como se viu de forma dramática nos municípios de Canoas, Eldorado do Sul, entre outros. Os últimos dados (ainda provisórios) divulgados pela Defesa Civil em 15/5/2024 registram: 148 óbitos, 124 desaparecidos, 538.545 desalojados e 2.124.203 pessoas afetadas. [1]

Nesse triste contexto, calha lembrar que o mês de abril de 2024 foi reconhecido como o mês mais quente da história pós-revolução industrial) segundo dados do Copernicus, o serviço de monitoramento climático da União Europeia. Não se trata, outrossim, de uma mera coincidência, pois tragédias dessa natureza têm sido de há muito anunciadas em diversos foros científicos.

O sexto e último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC), cuja síntese final foi publicada no mês de março de 2023, cravou, como consequência do aquecimento global e das mudanças climáticas, um cenário alarmante de episódios climáticos extremos (ex. enchentes, secas etc.) cada vez mais frequentes e intensos. É o preço a pagar por um conjunto de ações e omissões humanas, não só, mas em especial desde a primeira revolução industrial, de meados do século 18I.

De lá para cá, com destaque para o período denominado de a “Grande Aceleração”, iniciado após a 2ª Guerra Mundial e que segue até hoje. De cada três partículas de CO² presentes na atmosfera terrestre, uma foi colocada lá pelo ser humano. O secretário-geral da ONU, António Guterres, descreveu os fatos revelados pelo AR6 do IPCC como um “código vermelho para a humanidade”.

Infelizmente, as advertências dos cientistas ainda não foram suficientemente levadas a sério, o que se dá também no caso do Brasil. A verdade (inconveniente, para muitos) revelada por eles — e elas, como é o caso da brasileira Thelma Krug, vice-presidente do IPCC — não encontrou ressonância expressiva na sociedade brasileira.

Mudança de percepção

Esse cenário, contudo, parece estar mudando, tendo em conta que, conforme pesquisa Quaest divulgada na última semana, 99% dos entrevistados acreditam que as enchentes no Rio Grande do Sul possuem ligação com as mudanças climáticas. [2]

Afinal de contas, por mais “fake news” e narrativas paralelas e dissonantes da realidade que sejam injetadas nas redes sociais pelos adeptos do negacionismo climático, vai ser difícil empurrar para debaixo do tapete um Estado inteiro destruído, bem como o sofrimento de milhões de pessoas. Afinal, tudo tem limites, tanto as pessoas, quanto o planeta Terra.

Ao que parece, as vozes do negacionismo no Brasil foram — pelo menos, temporariamente — caladas pelos fatos. A força imperativa dos fatos, paralisou vários Projetos de Lei (PL) — do chamado “Pacote da Destruição” (da natureza) — estavam engatilhados no Congresso para serem votados. Entre eles, destacam-se negativamente o destrutivo PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais, de autoria de um deputado federal gaúcho e com relatório de outro deputado federal, também Gaúcho, aprovado Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e o igualmente nefasto PL 3.334/2023, o qual objetiva a alteração do Código Florestal e redução expressiva (de 80% para 50%) da reserva legal na Amazônia. O “Pacote da Destruição” representa um total de quase três dezenas de projetos de lei e três propostas de emendas constitucionais, conforme levantamento do Observatório do Clima [3].

Antes tarde do que nunca, a sociedade começou a ligar os pontos, pois é praticamente impossível não relacionar os desastres climáticos no Rio Grande do Sul com a proteção ambiental e, consequentemente, com as “boiadas” legislativas passadas e em vias de passarem, tanto no plano federal quanto estadual e municipal.

A brutal flexibilização legislativa levada a efeito pelo novo Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Lei 15.434, de 9 de janeiro de 2020), é sintomática nesse sentido. O novo diploma alterou cerca de 500 pontos do código anterior, tendo sido foi aprovado após apenas 75 dias de tramitação e uma única audiência pública, inclusive sem passar pela Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa.

Um dos seus pontos mais polêmicos é o assim chamado “auto licenciamento” — que, na prática, com o sucateamento deliberado dos órgãos públicos ambientais, representa um “não-licenciamento”, ou seja, um verdadeiro laissez faire ambiental. Mas isso também tem um preço, e o Rio Grande do Sul está pagando um preço altíssimo pela falta de cuidado com o meio ambiente e a ausência e/ou manifesta falta de eficácia de medidas preventivas.

Neste momento, no qual a primeira prioridade é salvar e ajudar ao máximo as vítimas da tragédia — registrando-se a existência de uma imensa e notável corrente solidária – gaúcha, a sociedade também necessita começar a se empenhar em cobrar dos governos e parlamentos uma moratória legislativa para qualquer iniciativa de flexibilização da legislação ambiental e climática brasileira.

O desastre climático no RS deveria catapultar uma espécie de ponto de não retorno ou inflexão de natureza social, como apontado por Johan Rockström. [4] Ou seja, um momento de tomada de consciência coletiva em torno da emergência climática que já assola as nossas vidas e que, se nada significativo for feito para mudar o curso, se agravará ainda mais no futuro, com eventos climáticos extremos, tal como verificado no RS, ocorrendo de forma cada vez mais frequente e com maior intensidade.

O suscitado ponto de inflexão social, por sua vez, deveria impulsionar a reivindicação, pela sociedade, por mais proteção ambiental e climática, e não a flexibilização e fragilização dos instrumentos legislativos e administrativos, como, infelizmente, temos visto acontecer, em especial nos últimos anos. Nas mais de quatro décadas do Direito Ambiental no Brasil, a contar da edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), posteriormente fortalecido pela consagração do direito fundamental a um meio ambiente equilibrado na CF/1988 (artigo 225), nunca se viu um movimento tão forte de retrocesso legislativo na seara ambiental como o que se tem verificado nos últimos anos.

Além disso, dada a sua natureza nefasta e desagregadora do tecido social, é preciso suplantar de uma vez por todas a polarização política que vivenciamos no Brasil e no Mundo, de modo a promover uma união necessária e urgente em prol de algo maior, que, queiramos ou não, representa um interesse comum da humanidade e diz respeito à dimensão mais sensível das nossas vidas.

A natureza e o sistema climático não têm ideologias políticas, porquanto apenas respondem à nossa intervenção destrutiva, esta sim, ideologicamente impregnada. O que está em causa — calha frisar — não é um pleito pela desideologização em si do ser humano como “ser político”, mas sim, que as ideologias e crenças de modo geral sejam responsivas positivamente no que diz respeito à luta por um meio ambiente saudável e equilibrado, condição material para o exercício de todos os direitos fundamentais de todas as dimensões.

É de se recordar, ademais, uma evidência que de há muito assumiu feições de obviedade, mas que ainda assim parece ser recorrentemente esquecida, qual seja, a de que a degradação ambiental e climática não tem fronteiras, assim como não as pode ter a proteção do meio ambiente e o combate às mudanças climáticas e suas causas.

O desmatamento irresponsável da Amazônia ou de qualquer outro bioma continental brasileiro impacta o regime climático nas demais regiões do Brasil, inclusive na região Sul, como, aliás, já demonstrado e conhecido. Tudo está conectado, como apontam a ciência climática e a ciência da Terra (Earth Science[5]. Portanto, reitera-se, são os fatos e o conhecimento científico, e não as “fake news”, que devem guiar a reconstrução do estado do RS e a adoção das medidas necessárias de reforço da proteção climática no presente e no futuro (mitigação, adaptação e reparação de danos às vítimas), a fim de salvaguardar a presente e as futuras gerações de novos desastres ambientais e climáticos.

Na mesma lógica dos objetivos de desmatamento zero e neutralidade climática, deveríamos adotar como ponto de partida daqui para a frente um “retrocesso legislativo ambiental/climático zero”! Nenhum passo atrás na proteção ambiental, na linha do princípio da proibição de retrocesso ambiental consagrado pela doutrina [6] e jurisprudencial, notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF).[7]

Pelo contrário, deveríamos avançar progressivamente no fortalecimento do regime jurídico de proteção ecológica e climática, como, aliás, está colocado no Acordo de Paris (2015), tratado internacional dotado de hierarquia supralegal (vide ADPF 708/DF julgada pelo STF no ano de 2022) ao qual o Brasil está juridicamente vinculado. [8]

Como referido pelo ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “É a degradação da lei levando à degradação ambiental”.[9]  É crucial que tenhamos boas notícia a dar aos brasileiros e ao mundo na COP30, a ser realizada no Brasil, em novembro de 2025, e não apenas a lamentação dos nossos desastres ambientais da última década, entre os quais, junto com os casos trágicos de Mariana (2015), Maceió (2018 e novamente no final de 2023) e Brumadinho (2019), passou a figurar a enchente do Rio Grande do Sul de 2024. O fato é que o clima mudou, e com ela também as nossas vidas, que o digam agora os milhões de Gaúchos que tiveram suas vidas direta ou indiretamente afetadas e mesmo ceifadas, isso sem computar aqui todas as consequências que ainda se farão sentir para o povo e o Estado do RS, mas também para o Brasil.

Por outro lado, a despeito da extrema gravidade da situação, há também que sublinhar, a necessidade e viabilidade de uma pauta positiva, a começar pela forte corrente de solidariedade que tem unido (a despeito das tentativas em contrário) os habitantes do RS e mobilizado o apoio oriundo de outras regiões do Brasil e mesmo de outros países, assim como uma espécie de parceria informal entre poder público e sociedade civil.

Isso sinaliza que, mesmo que não se atinja níveis ideais de proteção ambiental, é possível avançar significativamente. Tanto é que não fossem os avanços já ocorridos em uma série de setores, a situação certamente já estaria mais deteriorada. Que todos, cada qual fazendo o que está a seu alcance, tenhamos a vontade pessoal e política de vencer essa verdadeira guerra pela sobrevivência e por um futuro, onde todos tenham uma vida com dignidade.

Fonte: ConJur

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NOTAS

[1] Disponível em: https://estado.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-14-5-12h.

[2] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/05/09/quaest-64percent-acreditam-que-tragedia-no-rs-tem-ligacao-com-as-mudancas-climaticas.ghtml.

[3] Disponível em: https://www.oc.eco.br/novo-pacote-da-destruicao-ameaca-direitos-socioambientais/.

[4] ROCKSTRÖM, Johan; GAFFNEY, Owen. Breaking Boundaries: The Science of Our Planet. New York: DK (Penguin Random House), 2021, p. 206-211.

[5] SCHELLNHUBER, H. ‘Earth system’ analysis and the second Copernican revolution. In: Nature, 402, C19–C23 (1999). Na literatura brasileira, v. VEIGA, José Eli da. O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra. São Paulo: Editora 34, 2019.

[6] SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. 4.ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2023, p. 474-488.

[7] A título de exemplo, v., entre vários outros julgados do STF no mesmo sentido: STF, ADPF 651/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 04.05.2022.

[8] “Reconhecendo a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança do clima com base no melhor conhecimento científico disponível.” (Preâmbulo do Acordo de Paris de 2015)

[9] BENJAMIN, Antonio Herman. Princípio da proibição de retrocesso ambiental. In: COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE DO SENADO FEDERAL (Org.). O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal/CMA, 2012, p. 72.

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