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O Dano Ambiental Potencial e a Responsabilidade Civil Ambiental no Direito Brasileiro

Paulo de Bessa Antunes
27/10/2025
O debate em torno do dano ambiental e de sua reparabilidade é central na consolidação do Direito Ambiental contemporâneo. No Brasil tem surgido uma tendência judicial – ainda em primeira instância – que admite, diante da inexistência de prova da existência de um dano atual e concreto, a imposição de indenização por dano potencial, isto é, por um dano que não tenha ocorrido, mas que, potencialmente, poderia ter sido causado. A possibilidade de indenização do dano ambiental potencial sugere duas questões relevantes: (1) qual a natureza do chamado dano ambiental potencial e (2) quando cabe a imposição de indenização por danos ambientais.
Fundamentos constitucionais sobre o dano ambiental potencial
Inicialmente, convém recordar que a Constituição Federal de 1988, no artigo 225, §3º, estabelece que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitam o infrator a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Essa disposição indica que a reparação civil é consequência jurídica de uma lesão efetiva ao meio ambiente. Não havendo lesão ao meio ambiente, não cabe falar em reparação de dano ambiental. Por isso, sem dano comprovado e/ou comprovável, não há obrigação de reparar. Há, entretanto, uma confusão bastante usual entre dano ambiental e ilícito ambiental. O ilícito ambiental é uma categoria que contém o dano ambiental, não se resumindo a ele. A falta de licença ambiental é um ilícito administrativo que, necessariamente, não implica em um dano ambiental. Portanto, a mera infração administrativa ou o risco abstrato de degradação ambiental não bastam para configurar a responsabilidade civil.
Embora seja objetiva a responsabilidade civil do agente poluidor, faz-se necessária a comprovação da ocorrência do dano para fins de sua responsabilização, de modo que o simples descumprimento de norma administrativa não configura dano ambiental presumido1.
Reparação de dano ambiental e indenização
O Direito brasileiro reconhece que a primeira obrigação em relação à reparação dos danos ao meio ambiente é a busca pela recomposição do bem lesado, muito embora haja o reconhecimento de que a repristinação ao status quo ante é tecnicamente inviável2, diante da não fungibilidade dos bens ambientais3, legislação e a jurisprudência brasileiras adotam como regra a recomposição natural do meio ambiente como forma preferencial de reparação. Aliás, o próprio Código Civil determina que a indenização só é cabível, “[s]e o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada” (art. 947). Dessa forma, a indenização em pecúnia é medida subsidiária, cabível apenas quando a recomposição se mostra impossível ou tecnicamente inviável.
Comprovada a ocorrência de dano ambiental e não sendo possível a restauração do meio ambiente violado, cabe à indenização, ou seja, a compensação em pecúnia a ser pago pelo infrator em montante a ser arbitrado em consonância com as circunstâncias do caso concreto.4
Ademais, o artigo 944 do Código Civil estabelece que ‘a indenização mede-se pela extensão do dano’; assim, se não há dano, não cabe falar em indenização.
Nesse sentido, a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais é paradigmática.
I. CASO EM EXAME Recurso de apelação interposto por Sérvulo Coelho Vicente Cardoso contra sentença que, nos autos de ação civil pública ambiental ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais, julgou procedentes os pedidos iniciais, condenando o réu à suspensão de atividades poluidoras, recuperação de áreas degradadas e pagamento de indenização no valor de R$ 13.500,00. O apelante alega perda do objeto da demanda, com a regeneração natural da área degradada, e pleiteia vistoria para comprovação desse fato, bem como a exclusão das custas processuais. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Há duas questões em discussão: (i) definir se houve perda do objeto da demanda em virtude da regeneração natural da área degradada, afastando-se a responsabilidade civil do apelante; e (ii) determinar se a ausência de dano ambiental atual dispensa a condenação ao pagamento de indenização por danos ambientais. III. RAZÕES DE DECIDIR 1. O art. 14, § 1º, da Lei n. 6 .938/1981 estabelece a responsabilidade objetiva do poluidor, condicionada à prova de nexo causal entre a atividade danosa e o prejuízo ambiental, dispensando a comprovação de culpa. 2. Antes do ajuizamento da ação foi constatada a recuperação natural da área degradada, sem indícios de novas intervenções ou danos. 3 . A regeneração ambiental satisfatória afasta a existência de prejuízo irreversível ao meio ambiente, de forma que não subsiste o dever de indenizar, conforme jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 4. A ausência de dano ambiental atual descaracteriza o objeto da ação, tornando improcedentes os pedidos de reparação ambiental e de indenização pecuniária. IV . DISPOSITIVO E TESE Recurso provido. Tese de julgamento: 1. O dever de indenizar por danos ambientais exige a existência de prejuízo ambiental irreversível, o que não se configura em casos de regeneração natural da área degradada. 2 . A regeneração natural satisfatória de área ambientalmente protegida afasta a responsabilidade civil do infrator por inexistência de dano atual. Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 225; Lei nº 6.938/1981, art . 14, § 1º; Lei nº 12.651/2012, art. 3º, II, e art. 7º, § 1º. Jurisprudência relevante citada: TJMG, Apelação Cível nº 1.0284.16.000387-7/001, Rel. Des. Edilson Olímpio Fernandes, j. 15/02/2023. TJMG, Apelação Cível nº 1 .0000.22.100223-1/001, Rel. Des. Versiani Penna, j. 10/02/2023. TJMG, Apelação Cível nº 1.0400 .13.003918-5/001, Rel. Des. Ana Paula Caixeta, j. 10/02/2022.5
No mesmo sentido veja-se:
1. A Constituição Federal impõe o dever de reparar os danos ocasionados ao meio ambiente (art. 225, § 3º). 2. Demonstrado, por meio de prova pericial, que a queimada controlada foi realizada para colheita de eucalipto em local que não exigia autorização dos órgãos ambientais, bem ainda que não houve dano ambiental, devem ser julgados improcedentes os pedidos de indenização pecuniária e recuperação da área. 3. Sentença confirmada na remessa necessária.6
Dano ambiental potencial entre potência e ato
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), por meio da Instrução Normativa n.º 20/2024, em seu artigo 3º, IV define a compensação econômica ou financeira (Rectius: indenização) como “ solução excepcional adotada quando constatada a impossibilidade de recuperação ambiental7 e de compensação ecológica8 que visa à reparação indireta pelo dano ambiental por meio de equivalente econômico ou financeiro estimado por meio da valoração econômica do atributo ambiental degradado.” A norma procura fixar parâmetros objetivos para a classificação dos danos ambientais, distinguindo: danos de baixa ou alta magnitude, materiais e imateriais9. Há uma classificação ampla que não contempla o dano ambiental potencial. O que se observa é que a tipologia normativa, tem como elemento decisivo a efetiva lesão ambiental.
A potência é um conceito filosófico que, inicialmente, foi trabalhado por Aristóteles em diversas de suas obras. Ela é a capacidade de vir a ser. Assim, a semente da manga tem a potencialidade de vir a ser uma manga.
potência (lat. potentia) 1. Em um sentido genérico, possibilidade, faculdade.
2. Na filosofia aristotélica e na escolástica, a noção de potência opõe-se à de ato, caracterizando o estado virtual do ser. “O ato é o fato de uma coisa existir na realidade, e não do modo como dizemos que existe uma potência, quando dizemos, por exemplo, que Hermes está em potência na madeira” (Aristóteles, Metafsica, IX, 1048). Há várias formas de se dizer que algo está em potência. Um fruto está cm potência na semente. já que na natureza da semente há a possibilidade de esta gerar o fruto, ou seja como um desenvolvimento natural. A estátua de Hermes está em potência no bloco de madeira, já que este contém a possibilidade de ser transformada cm uma estátua.10
A capacidade de vir a ser um dano ambiental depende de circunstâncias concretas, de qualidades intrínsecas que possam vir a se transformar em um dano no futuro. Este dano futuro será reparado ou indenizado, conforme o caso, no futuro. Acresce que sem semente de manga, não há manga; isto é, sem que em determinado acontecimento do mundo fático não haja a presença de elementos poluidores ou danosos à saúde pública, não cabe falar em potencialidade de dano. Veja-se que o dano futuro, não é um acontecimento certo e indiscutível. A este respeito, julgo conveniente relembrar o conto Minority Report de Phillip Dick que se passa em um futuro em que o crime é prevenido antes de acontecer. A sociedade é controlada pelo sistema Pré-Crime, que utiliza três mutantes — os precogs— capazes de prever assassinatos com base em visões do futuro.
O protagonista, John Anderton, é o chefe da Polícia de Pré-Crime e acredita firmemente na infalibilidade do sistema. Contudo, ele é surpreendido ao descobrir que os precogs preveem que ele próprio cometerá um assassinato. Convencido de que há um erro, Anderton passa a investigar a origem da premonição e descobre uma falha fundamental: os precogs às vezes têm visões divergentes, chamadas de“relatórios minoritários”(minority reports), que apontam futuros alternativos. Ao final, Dick questiona a determinização do futuro e a liberdade individual, mostrando que, se o futuro pode ser alterado por uma simples escolha, então o sistema de Pré-Crime é eticamente e logicamente falho.
Conclusões sobre o dano ambiental potencial
O exame do chamado dano ambiental potencial demonstra que tal categoria carece de fundamento jurídico na ordem constitucional e legal brasileira. A responsabilidade civil ambiental — ainda que objetiva — exige, como pressuposto inafastável, a existência de dano efetivo e comprovado, bem como o nexo causal entre a conduta e a lesão ao meio ambiente. O sistema jurídico não admite a reparação de danos hipotéticos ou presumidos, sob pena de romper com os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da justiça distributiva.
O dano potencial, como expressão de mera possibilidade, não se enquadra na noção de “ato lesivo” exigida pelo art. 225, §3º, da Constituição Federal e pelo art. 14, §1º, da Lei nº 6.938/1981. A indenização ambiental, por sua natureza compensatória, somente é cabível quando o bem jurídico ambiental sofre degradação concreta, irreversível ou de difícil recomposição. Nesse sentido, a jurisprudência consolidada tem reiteradamente afirmado que a ausência de dano ambiental atual afasta o dever de indenizar, ainda que tenha havido infração administrativa.
Do ponto de vista conceitual, à luz da filosofia aristotélica, o dano éato, nãopotência: só há reparação possível quando a lesão se concretiza no mundo fático. A mera possibilidade de dano insere-se na esfera da prevenção e da precaução, instrumentos próprios de gestão de riscos ambientais, mas sem natureza indenizatória. Assim, a tutela civil do meio ambiente não se confunde com o poder de polícia ambiental, tampouco pode converter a incerteza em fundamento de condenação pecuniária.
Conclui-se, portanto, que a consolidação de um conceito técnico de dano ambientalé indispensável à segurança jurídica e à coerência do sistema de responsabilidade civil. O reconhecimento de indenizações por “dano potencial” representaria grave distorção teórica e prática, incompatível com a lógica constitucional da reparação ambiental. O direito brasileiro, fiel ao princípio da causalidade, deve continuar a distinguir o risco do dano, a potência do ato, e a prevenção da reparação — garantindo, assim, tanto a proteção efetiva do meio ambiente quanto a preservação da justiça nas relações jurídicas.
Fonte: ConJur

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NOTAS
1 TJPA, 1ª Turma de Direito Público, Rel. Des. Roberto Gonçalves de Moura, j. 21.08.2019.
2 Lei 9985/2000. rt. 2oPara os fins previstos nesta Lei, entende-se por:…. XIII – recuperação: restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada a uma condição não degradada, que pode ser diferente de sua condição original; XIV – restauração: restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada o mais próximo possível da sua condição original.
3 Embora teoricamente se possa substituir uma árvore de Pau Brasil por outra árvore de Pau Brasil, é fato que uma árvore nunca é igual a outra.
4 TJ-MT – AC: 00019026320148110018, Relator.: Graciema Ribeiro de Caravelas, Julgamento: 12/09/2023, Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo, Publicação: 14/09/2023
5 TJ-MG – Apelação Cível: 50001838220208130312, Relator.: Des.(a) Maria Inês Souza, Julgamento: 01/04/2025, 2ª Câmara Cível, Publicação: 07/04/2025
6 TJ-MG – Remessa Necessária: 00296576020138130400 Mariana, Relator.: Des.(a) Raimundo Messias Júnior, Data de Julgamento: 26/02/2019, 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/03/2019
7 IN IBAM 20/2024. Art. 3º XVII – recuperação ambiental: conjunto de ações e medidas adotadas por meio de projetos ou programas que visam à restituição de atributos ambientais a uma condição sustentável, não degradada;
8 IN IBAMA 20/2024. Art. 3º III compensação ecológica: solução apresentada na forma de projeto ambiental voltado para a preservação ou restituição de atributo ambiental equivalente àquele que foi degradado, do ponto de vista socioecológico, para fins de reparação indireta pelo dano ambiental;
9 IN IBAMA 20/2024 art. 3º . V – dano ambiental: é toda lesão causada ao meio ambiente, decorrente da degradação de atributos ambientais por meio de omissões, ações e atividades não autorizadas ou em desacordo com as autorizações vigentes, que atente contra o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; VI – dano ambiental de baixo custo, baixa complexidade ou pequena magnitude: qualquer dano ambiental cujo custo estimado através de sua valoração econômica ou financeira é insuficiente para suscitar esforço institucional para a cobrança de sua reparação; e/ou dano que afeta recurso natural ou ambiente com alta resiliência e grande capacidade de suporte, e que não compromete a saúde, a segurança e o bem-estar humano; VII – dano ambiental de alto custo, alta complexidade ou grande magnitude: qualquer dano ambiental cujo esforço institucional de cobrança na esfera administrativa se revele inadequado ou insuficiente ante o custo estimado para sua reparação; dano que afeta recurso natural, atributo ambiental ou ambiente de forma complexa, podendo envolver o patrimônio histórico-cultural, a saúde, a segurança e/ou o bem-estar humano, ou outro aspecto antrópico, não possível de ser avaliado na esfera administrativa; VIII – dano ambiental material: parcela do dano ambiental que envolve a dimensão concreta e material dos atributos ambientais degradados e para a qual há previsão administrativa de reparação direta ou indireta; IX – dano ambiental imaterial: parcela do dano ambiental que envolve a dimensão abstrata (i.e., simbólica, histórica, cultural, moral) do atributo ambiental degradado e para a qual não há previsão administrativa de reparação direta ou indireta; X – dano ambiental intercorrente, intermediário ou interino: parcela do dano ambiental decorrente do tempo em que o atributo ambiental permaneceu danificado ou interrompido, sem a prestação dos serviços ecossistêmicos de origem.
10 JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.2001. Disponível em < https://raycydio.yolasite.com/resources/dicionario_de_filosofia_japiassu.pdf > acesso em 16/10/2025