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Caso Neubauer e outros V. Alemanha e a dimensão intergeracional dos direitos fundamentais
19/10/2021
Neste artigo,Ingo Sarlet, Gabriel Wedy e Tiago Fensterseifer debatem o caso Neubauer e a justiça entre gerações sob o guarda-chuva ambiental
Ingo Wolfgang Sarlet
Advogado e Professor
Gabriel Wedy
Magistrado Federal e Professor
Tiago Fensterseifer
Defensor Público e Professor
A discussão em torno da “justiça entre gerações (ou intergeracional)” tem sido colocada no contexto político contemporâneo de forma emblemática por meio de amplos e progressivos protestos promovidos em diversos lugares do mundo – mas, em especial, no contexto europeu – pelos jovens do movimento estudantil Fridays for Future (em português, “Sextas-Feiras pelo Futuro”) sobre a questão da proteção climática, como bem simboliza a estudante sueca Greta Thunberg, com seus protestos toda sexta-feira na frente do Parlamento do seu País em Estocolmo (desde o mês de agosto de 2018).
Caso Neubauer: o movimento de jovens por justiça climática na Alemanha
Na Alemanha, o movimento de jovens por justiça climática ganhou contornos políticos extremamente significativos nos últimos anos, inclusive impactando o debate político e o resultado das recentes eleições para o Parlamento Federal alemão (Bundestag) no mês de setembro passado, com resultados bastante favoráveis para partidos políticos que enfatizam a proteção climática nos seus programas, como é o caso do Partido Verde alemão.
Entre as lideranças da vertente alemã do Movimento Fridays for Future, destaca-se a jovem ativista climática Luisa Neubauer, que figura como uma das autoras das reclamações constitucionais (Verfassungsbeschwerde) ajuizadas contra a Lei Federal sobre Proteção Climática (Klimaschutzgesetz – KSG), aprovada no final de 2019, julgadas pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht – BverfG) da Alemanha no primeiro semestre de 2021.
As reclamações constitucionais foram ajuizadas por um grupo de nove pessoas, na sua maioria jovens – entre eles, como referido anteriormente, a ativista Luisa Neubauer -, que foram apoiadas por diversas entidades ambientalistas alemãs. Entre os autores das reclamações, há, inclusive, alguns residentes em outros países, como, por exemplo, Nepal e Bangladesh – este último um dos países mais vulneráveis ao aumento do nível do mar derivado das mudanças climáticas -, o que apenas reforça a natureza transfronteiriça da crise climática.
Entre diversos argumentos articulados pelos autores das reclamações, destacam-se as violações ao direito fundamental a um futuro em conformidade com a dignidade humana (menschenwürdige Zukunft) e ao direito fundamental ao mínimo existencial ecológico (ökologisches Existenzminimum).
O entendimento do tribunal alemão sobre o caso Neubauer
Na ocasião, o Tribunal reconheceu a violação aos “deveres estatais de proteção ambiental e climática” no âmbito da Lei Federal sobre Proteção Climática (Klimaschutzgesetz – KSG) de 2019, a qual, segundo a Corte, teria distribuído de modo desproporcional – entre as gerações presentes e as gerações mais jovens e futuras – o ônus derivado das restrições a direitos fundamentais – em especial ao direito à liberdade – decorrentes da regulamentação das emissões de gases do efeito estufa, ao prever metas de redução tão somente até o ano de 2030.
Ao fazer isso, o legislador alemão omitiu-se em relação ao período subsequente, ou seja, relativamente às metas de redução até 2050, ano em que a legislação climática objetiva atingir a denominada “neutralidade climática”. Na fundamentação da decisão, o Tribunal reconheceu que o direito fundamental à liberdade possui uma dimensão inter ou transgeracional, a qual deve ser protegida pelo Estado e se expressa por meio de “garantias intertemporais de liberdade” (intertemporale Freiheitssicherung).
Ao reconhecer a inconstitucionalidade de dispositivos da legislação climática alemã, o Tribunal consignou que o legislador violou o seu dever, decorrente do princípio da proporcionalidade, de assegurar que a redução das emissões de CO2 ao ponto da neutralidade climática – que é constitucionalmente necessária nos termos do art. 20a da Lei Fundamental alemã – “seja distribuída ao longo do tempo de uma forma prospectiva que respeite os direitos fundamentais (…)”.
Ainda de acordo com o Tribunal, “(…) respeitar a liberdade futura exige que a transição para a neutralidade climática seja iniciada em tempo hábil. Em todas as áreas da vida – produção, serviços, infraestrutura, administração, cultura, consumo, basicamente todas as atividades que atualmente ainda são relevantes para o CO2 – os desenvolvimentos precisam ser iniciados para garantir que, no futuro, ainda se possa fazer uso significativo da liberdade protegida pelos direitos fundamentais”.
Alemanha e Brasil
Ao fazer um paralelo entre as realidades constitucionais alemã e brasileira, cabe apenas ressaltar que, tanto o art. 20a da Lei Fundamental de Bonn quanto o art. 225 da nossa CF/1988, consagraram expressamente a proteção e salvaguarda dos interesses e direitos das futuras gerações, reforçando, assim, o regime jurídico de proteção ecológica e a caracterização de deveres estatais climáticos. Igualmente, no caso da CF/1988, deve ser ressaltada a proteção “com absoluta prioritária” que deve ser assegurada à vida, à dignidade e aos diretos fundamentais – entre eles o direito fundamental a viver em um clima limpo, estável e seguro (e à integridade do sistema climático) – titularizados por crianças e adolescentes, como expressamente consignado em dispositivo constitucional (art. 227, caput).
É o direito ao desfrute de uma vida digna e do exercício pleno dos direitos fundamentais – e do direito à liberdade, em particular – no futuro que está em jogo quando se trata da questão climática, como resultou consignado na decisão referida do Tribunal Constitucional Federal alemão.
A decisão em questão deu visibilidade jurídica para a “dimensão intergeracional” dos direitos fundamentais. É possível, nesse sentido, até mesmo constatar certa sub-representação político-democrática dos interesses das gerações mais jovens no Estado Constitucional contemporâneo, assim como das futuras gerações que ainda estão por nascer, protegidas, por exemplo, pelo caput do art. 225 da CF/1988.
A sub-representação política referida está no fato de as crianças, adolescentes (até 16 anos completos) e as futuras gerações não votarem, ou seja, não elegerem os líderes políticos que irão tomar (ou não!) as decisões necessárias para assegurar o desfrute dos seus direitos fundamentais no futuro.
Tal constatação, por sua vez, reforça a importância papel de “guardião” da vida, da dignidade e dos direitos fundamentais de tais indivíduos e grupos sociais vulneráveis atribuído ao Poder Judiciário (e às instituições que integram Sistema de Justiça em geral, como é o caso do Ministério Púbico, da Defensoria Pública etc.), salvaguardando o futuro.
A decisão da Corte alemã, a nosso ver, inovou significativamente na abordagem constitucional da proteção das gerações jovens e futuras, dando visibilidade à deficiência e omissão na proteção dos seus direitos fundamentais.
É, sem dúvida, um dos casos de litigância climática mais importantes julgados até hoje por Tribunais Constitucionais[1], de modo a reforçar a relevância da denominada governança judicial em matéria ambiental e climática, notadamente quando diante de um contexto fático de omissão ou deficiência nas medidas legislativas ou executivas adotadas para o enfrentamento ao aquecimento global.
No Brasil, a litigância climática tomou assento definitivo na agenda do Supremo Tribunal Federam no ano de 2020, com o ajuizamento de (pelo menos) três ações que pautaram essa temática de forma direta, sendo que duas delas foram objeto de audiências públicas realizadas pela nossa Corte Constitucional.
Além das ADPF 708 (Caso Fundo Clima) e ADO 59 (Caso Fundo Amazônia), que tiveram audiências realizadas, respectivamente, nos meses de setembro e outubro de 2020, destaca-se também a última e mais abrangente das ações ajuizadas (ADPF 760 – Caso PPCDAm – Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal),[2] em que diversos partidos políticos, conjuntamente com a atuação a título de amicus curiae de diversas entidades ambientalistas, apontam “graves e irreparáveis” lesões a preceitos fundamentais, decorrentes de atos comissivos e omissivos da União e dos órgãos públicos federais que impedem a execução de medidas voltadas à redução significativa da fiscalização e ao controle do desmatamento na Amazônia.
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NOTAS
[1] No âmbito do Direito Comparado, um dos casos mais emblemáticos de litigância climática, diz respeito ao Caso Urgenda. A Suprema Corte da Holanda, no final do ano de 2019, emitiu decisão de cunho mandamental para que o governo holandês cortasse as emissões de gases de efeito estufa no país em 25% em relação aos níveis de 1990, até o final do ano de 2020. Foi a primeira vez que um Estado foi obrigado por um Tribunal a adotar medidas efetivas contra a mudança climática. De acordo com o Chief Justice da Suprema Corte holandesa, Kees Streefkerg, “por causa do aquecimento global, a vida, o bem-estar e as condições de vida de muitas pessoas ao redor do mundo, incluindo na Holanda, estão sendo ameaçados” Para maiores desenvolvimentos sobre o Caso Urgenda, v. WEDY, Gabriel. O “caso Urgenda” e as lições para os litígios climáticos no Brasil. Consultor Jurídico, Coluna Ambiente Jurídico, 2 jan. 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br>.
[2] No caso da ADPF 760, um dos argumentos dos autores é que, apesar do aumento de 34% nas taxas de desmatamento em 2019 e de estimados outros 34% em 2020, verifica-se a queda no número de autuações nesse período. Segundo os autores, em 2019, o IBAMA autuou 31% menos do que em 2018. Em 2020, a queda é ainda maior: de 43%. Diante da proliferação da ilegalidade ambiental na Amazônia, sustentam que incumbiria à União atuar de maneira efetiva, com a ampliação das ações de poder de polícia ambiental. Outros pontos questionados são a inexecução do orçamento disponível e o congelamento do financiamento da política pública ambiental. Os autores também alegam que há um esforço da União para inviabilizar a atuação do IBAMA, do ICMBio e da FUNAI, por meio da fragilização orçamentária, da execução do orçamento disponível muito abaixo do que praticam historicamente e do déficit significativo de servidores. Por fim, requerem a redução efetiva dos índices de desmatamento na Amazônia Legal e em terras indígenas e unidades de conservação, conforme dados oficiais disponibilizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre outros pontos.