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Argumentos a favor da arbitragem em matéria ambiental
Paulo de Bessa Antunes
28/11/2024
A arbitragem em matéria ambiental é um “continente escondido” [1]: o comentário resultou da análise de decisão da Suprema Corte britânica que negou aplicação à decisão que condenava uma seguradora — com domicílio em Londres — a pagar a reparação dos danos causados pela ruptura do casco (partiu em dois) e naufrágio do petroleiro Prestige, ocorrido aos 13 de novembro de 2002 nas costas da Espanha e da França, lançando ao mar 77 mil toneladas de óleo.
O processo judicial na Espanha durou cerca de 20 anos. De acordo com o tribunal britânico, o contrato entre as partes determinava que todas as disputas deveriam ser decididas por árbitros independentes, excluída a justiça pública. Segundo Laurentine Doering, “um duro lembrete de que muitas disputas ambientais de alto impacto acabam sendo resolvidas por cortes arbitrais e não pela justiça pública”. A reparação era de 855 milhões de euros.
No Brasil, é crescente o número de arbitragens ambientais, especialmente em relação a descumprimento de contratos em razão de (1) “atrasos” no licenciamento ambiental e (2) responsabilidade por passivos.
Há, contudo, uma terceira possibilidade que não tem sido explorada: a arbitragem contra a administração pública em matéria ambiental. O tema pode parecer estranho, tendo em vista o dogma da “indisponibilidade” do meio ambiente e, sobretudo, da uma certa incompreensão do que é recuperação ambiental e as formas pelas quais ela pode se dar, bem como os amplos domínios do tema ambiental.
Em outro momento, eu me manifestei assim: “todo e qualquer instituto jurídico que possa ser utilizado de maneira a assegurar mais eficiência para a proteção do meio ambiente não deve ser desprezado”[2].
A doutrina e a jurisprudência ambientais brasileiras resistem em aceitar a arbitrabilidade das questões ambientais, com raríssimas exceções [3]. A posição não se sustenta, seja do ponto de vista do Direito interno brasileiro, seja em relação à experiência internacional. Para a compreensão da questão, inicialmente, há que se perceber o que é direito indisponível, quando se trata de meio ambiente.
A Constituição, no artigo 225, define que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, cuidando-se, portanto, de um direito fundamental. A questão, portanto, éa forma de efetivação de tal direito e não o direito em si.
A própria CF estabelece que, além do poder público, a “coletividade” tem o “dever de protegê-lo e preservá-lo”. Logo, do ponto de vista constitucional, existe uma obrigação imposta aos particulares de preservação (rectius: conservar) ambiental, nada impedindo que isso se faça por meios privados e com diminuição do nível de conflito.
Possíveis aplicações
Disputas por limites de parques, zonas de amortecimento, limitações administrativas em áreas protegidas de domínio privado, montantes indenizatórios, discussões sobre limites de descontaminação, podem e devem ser submetidas à arbitragem, como ocorre no cenário internacional.
O Direito brasileiro possui inúmeros exemplos de conservação ambiental privada, inclusive com incentivo financeiro governamental. O primeiro modelo é a Lei nº 9.985/2000 nos artigos 5º, III [4] e 21 [5], dentre outros. A Lei nº 14.119/2012 cuida do pagamento por serviços ambientais que são as “atividades individuais ou coletivas que favorecem a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos”.
Ora, se a “obrigação” do artigo 225 da CF fosse levada a “ferro e fogo” não teria sentido pagar para que o particular a cumprisse. Ocorre que a realidade é muito mais complexa do que parece. O próprio poder público é autorizado a pagar por tais serviços [6].
Está claro que, do ponto de vista legal, é perfeitamente aceitável a transformação em pecúnia dos benefícios e, também, dos danos ambientais. Há que se registrar que importantes instituições do sistema de justiça, e.g., o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [7] e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) têm se dedicado ao tema da quantificação dos danos ambientais [8], buscando soluções para casos concretos e, certamente, não estão “mercantilizando” ou “afrouxando a proteção ambiental”.
É conveniente apresentar o seguinte trecho do documento denominado “Diretrizes gerais para a valoração econômica dos danos ambientais”, elaborado pelo CNJ:
“Um exemplo prático da aplicação deste procedimento é a ação civil pública ajuizada em 2016 pelo Ministério Público Federal para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), tendo como um dos fundamentos para o pedido de reparação preliminar uma analogia jurídica com o paradigmático caso do desastre de plataforma de petróleo da British Petroleum, estimado em R$ 155 bilhões. Sustentou-se que uma análise comparativa poderia ser realizada a partir dos gastos já reconhecidos pela empresa para custeio da reparação preliminar dos danos provocados pelo desastre da Deepwater Horizon, ocorrido no Golfo do México em 2010. Comparou-se, por exemplo, que o vazamento de cerca de 4,9 milhões de barris de óleo, com impactos diretamente de 180.000 km² de águas marinhas e morte de 11 pessoas, foram menores que os impactos em Mariana, com 19 mortes e com a mesma extensão proporcional de água poluída.
Aduziu o Ministério Público Federal, na ação, que seria inadmissível que a valoração do dano ambiental provocado pelas empresas Samarco, Vale e BHP ficasse aquém de US$ 43,8 bilhões, reconhecidos pela empresa responsável pela tragédia no Golfo do México. Registre-se apenas que a comparação analógica para a reparação preliminar pretendida neste processo restringiu-se a uma comparação mais jurídica de reconhecimento inicial de estimativa de valor de reparação preliminar do dano para situações semelhantes em relação aos fatores número de vítimas e poluição hídrica.”
O pedido foi convertido em pecúnia. Agora, cabe uma indagação: caso o pedido de R$ 155 bilhões tivesse sido resolvido em acordo de R$ 130 bilhões, o MP teria “transacionado direitos indisponíveis”? Não! As peculiaridades das situações concretas, a dificuldade de produção de prova e a necessidade de rapidez na solução do problema teria sido consideradas e aconselhado o acordo.
Aliás, diariamente, são celebrados termos de ajustamento de conduta (TAC) e transações judiciais pelo MP, sob o pálio da “indisponibilidade de direitos”, mas que envolvem concessões recíprocas. Há diversas decisões do STJ que expressamente reconhecem a legitimidade de transações em matéria ambiental [9].
O direito dos empregados, individuais ou coletivos, são considerados indisponíveis; apesar disso são perfeitamente arbitráveis, inclusive por disposição constitucional. De fato, o § 1º do artigo 114 da Constituição [10] estabelece que, no âmbito do direito coletivo do trabalho, frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros. A CLT, por sua vez, também admite a arbitragem, desde que prevista no contrato de trabalho e observadas algumas condições [11].
Caso Lage e exemplos internacionais
Em relação à arbitragem levada à efeito contra a administração pública, é útil relembrar a decisão do STF no famoso “Caso Lage” [12], no qual foi reconhecida como legítima a arbitragem contra a Fazenda Nacional. Hoje a arbitragem contra a Fazenda Pública é aceita tranquilamente, sendo objeto de lei, conforme o § 1º do artigo 1º da Lei nº 9.307/1996. Veja-se que o próprio Código Tributário Nacional, desde 1966, já admitia a transação tributária, mediante concessões mútuas [13], assim como a chamada Lei do Petróleo [14].
Alguns exemplos de direitos nacionais indicam que a arbitragem tem sido utilizada em matéria ambiental, na Indonésia o artigo 32 a Lei de Gestão Ambiental [15] admite a indicação de terceira parte (árbitro) para solucionar uma controvérsia ambiental, atribuindo à decisão efeitos vinculantes.
No Japão, há a Lei para a Solução de Disputas sobre Poluição (Pollution Dispute Settlement Law—Act nº 108 of June 1, 1970) [16] que dispõe amplamente sobre arbitragem. A solução alternativa de disputas é amplamente praticada pelos órgãos de controle ambiental dos Estados Unidas da América e tem servido para a redução de custos de transação, proteção ambiental mais colaborativa, diminuição de tempo e, portanto, maiores benefícios ambientais [17].
Na América Latina, pelo menos o Peru [18] e o México [19] se utilizam da arbitragem em matéria ambiental, havendo um projeto de lei na Colômbia [20]. No Peru, a Lei Geral do Ambiente (Lei nº 2861) estabelece em seu artigo 152 que só podem ser submetidas à arbitragem ambiental as “pretensões ambientais determinadas ou determináveis” e que somente podem ser submetidos à arbitragem os casos de:
(1) determinação de valores indenizatórios decorrentes de danos ambientais ou delitos contra o meio ambiente e os recursos naturais;
(2) definição de obrigações compensatórias que possam surgir em um processo administrativo (licenciamento ambiental), sejam monetárias ou não;
(3) controvérsias surgidas em contratos de acesso e aproveitamento de recursos naturais;
(4) precisão para o caso de limitações do direito de propriedade quando da criação e implementação de áreas naturais protegidas;
(5) conflitos entre usuários com direitos “superpostos” e incompatíveis sobre espaços ou recursos naturais sujeitos a ordenamento territorial ou zoneamento.
Obviamente a decisão arbitral não pode contrariar as leis peruanas. Os árbitros podem se certificados pela autoridade nacional ambiental ou por instituições de arbitragem reconhecidas. Há ainda diversos outros argumentos em favor da arbitragem ambiental que serão abordados em futuros artigos.
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NOTAS
[1] DOERING, Laurentine. Mapping the Hidden Continent of Environmental Disputes, https://www.ejiltalk.org/mapping-the-hidden-continent-of-environmental-disputes/
[2] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental, indisponibilidade de direitos, solução alternativa de conflitos e arbitragem, in, Revista de arbitragem e mediação. Ano 8, volume 30. Revista dos Tribunais: São Paulo. 2011, p. 131
[3] FRANGETTO, Flávia Witkowski. Arbitragem ambiental. Campinas: Milenium. 2006
LIMA, Bernardo. A arbitrabilidade do dano ambiental. São Paulo: Atlas. 2010
[4] Art. 5o O SNUC será regido por diretrizes que: (…) III – assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação;
[5][5] Art. 21. A Reserva Particular do Patrimônio Natural é uma área privada, gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica
[6] Art. 2º Para os fins desta Lei, consideram-se: (…)IV – pagamento por serviços ambientais: transação de natureza voluntária, mediante a qual um pagador de serviços ambientais transfere a um provedor desses serviços recursos financeiros ou outra forma de remuneração, nas condições acertadas, respeitadas as disposições legais e regulamentares pertinentes; V – pagador de serviços ambientais: poder público, organização da sociedade civil ou agente privado, pessoa física ou jurídica, de âmbito nacional ou internacional, que provê o pagamento dos serviços ambientais nos termos do inciso IV deste caput ;
[7]https://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/consultas-publicas/quantificacao-de-danos-ambientais/
[8]https://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/14837-diretrizes-para-valoracao-de-danos-ambientais
[9] REsp 1260078 / SC. Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN. 2ª Turma. Julgamento: 17/05/2016. DJe 07/08/2020; CC 144922 / MG: Relatora Ministra Diva Malerbi (Desembargadora Convocada TRF 3ª Região). 1ª Seção. Julgamento: 22/06/2016. DJe 09/08/2016; REsp 802060 / RS. Relator
Ministro LUIZ FUX. 1ª TURMA. Julgamento 17/12/2009. DJe 22/02/2010
[10] Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (…) § 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
[11] Art. 507-A. Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos previstos na lei 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[12] STF -Tribunal Pleno, AI 52181 / GB – GUANABARA. Relator(a): Min. BILAC PINTO. Julgamento: 14/11/1973 Publicação: 15/02/1974
[13] Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.
[14] Lei nº 9478/1997. Art. 20. O regimento interno da ANP disporá sobre os procedimentos a serem adotados para a solução de conflitos entre agentes econômicos, e entre estes e usuários e consumidores, com ênfase na conciliação e no arbitramento.
Art. 43. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais: (…)X – as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional;
[15]Article 32 To facilitate the course of out of court discussion, the parties which have an interest can request the services of a neutral third party which can be in the form of: (a) a neutral third party which does not have decision making authority. This neutral third party functions as a party which facilitates the parties which have an interest such that agreement can be reached. The neutral third party must (1) be agreed to by the parties in dispute; (2) not have familial relations and/or work relations with one of the parties in dispute; (3) possess skill to carry out discussion or mediation; (4) not have an interest in the process of discussion or its outcome. (b) a neutral third party which has decision-making authority functions as arbitrator, and all such arbitration decisions have are of a fixed and binding nature on the parties in dispute.. https://faolex.fao.org/docs/html/ins13056.htm > acesso em 03/10q2024
[16]https://www.japaneselawtranslation.go.jp/en/laws/view/3897/en
[17] SIEGEL, Joeph A. Alternative Dispute Resolution in Environmental Enforcement Cases: A Call for Enhanced Assessment and Greater Use, 24 Pace Envtl. L. Rev. 187 (2007) DOI: https://doi.org/10.58948/0738-6206.1058
[18] Disponível em < https://www.oas.org/juridico/pdfs/mesicic4_per_ley28611.pdf > acesso em 03/10/2024
[19] Lei Ambiental do Distrito Federal. Artículo 295.- De conformidad con lo que establezca el reglamento de este ordenamiento, se podrán aplicar los mecanismos alternativos para la solución de conflictos derivados de infracciones a las disposiciones jurídicas señaladas en la presente Ley. Dentro de dichos mecanismos, se considerarán la mediación, el arbitraje y la conciliación. La aplicación de mecanismos alternativos para la solución de conflictos se determinará atendiendo a los criterios previstos en el artículo 300 de la presente Ley.
En ningún caso los mecanismos alternativos de solución de conflictos pueden implicar eximir de responsabilidad a los responsables de violaciones o incumplimientos de la normatividad ambiental y tendrán por objeto resarcir daños al ambiente y a los recursos naturales.
El reglamento conciliará la aplicación de los mecanismos anotados y los procedimientos de verificación que se instauren.
Disponível em < https://www.sedema.cdmx.gob.mx/storage/app/media/GacetaOficialCDMX/GOCDMX_24-07-18_GOBIERNO.pdf > acesso em 03/10/2024
[20] Disponível em < https://medioambiente.uexternado.edu.co/el-arbitraje-nacional-ambiental-una-solucion-adicional-para-garantizar-el-acceso-efectivo-a-una-justicia-ambiental/ > acesso em 03/10/2024