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Teorias do Direito Administrativo Global e fenômenos normativos de fonte não estatal
Otavio Venturini
23/06/2021
O que vem a ser o Direito Administrativo Global (DAG)? Por que “Global”? Há nesse campo algum elemento verdadeiramente inovador a justificar a nomenclatura? O Direito Administrativo Global (DAG) e, especialmente, o seu qualificativo “Global” costumam gerar alguma estranheza entre os estudiosos do Direito Administrativo. Em sua compreensão clássica, oriunda da Europa continental, o Direito Administrativo exsurgiu como fórmula jurídica da organização e instrumentalização das atividades do aparato estatal: um ramo, portanto, ancorado nas estruturas do aparelho estatal e na realidade cotidiana da atividade administrativa. Além disso, publicistas familiarizados com o princípio da territorialidade, que delimita o exercício da autoridade pública dentro dos limites do território do Estado soberano, deparam-se com a dificuldade de situar o denominado “espaço jurídico global”, em que supostamente se insere a força normativa do DAG.
Nota-se suspeição correlata entre internacionalistas “céticos”[1], que ainda “torcem o nariz” com relação à suposta autonomia do DAG em face do Direito Internacional Público, campo erigido sob o primado da soberania dos Estados nacionais e a centralidade, para não dizer “inescapabilidade”, das figuras do Tratado e da Lei.
A proposta analítica do DAG veio à tona em 2005 com a publicação do seminal paperThe Emergence of Global Administrative Law[2]. Nesse paper foram definidas as linhas mestras de um campo teórico aplicável aos mecanismos de governança para além do nível doméstico, isto é, governança global[3], sob o pressuposto de que os instrumentos convencionais do Direito Internacional Público já não eram mais suficientes para regular as relações no âmbito global. O paper foi fruto do Global Administrative Law Project, um projeto bastante audacioso conduzido pelo Institute for International Law and Justice (IILJ) da New York University, sob a liderança de uma parceria bem-sucedida do administrativista norte-americano Richard Stewart, com o internacionalista radicado nos Estados Unidos Benedict Kingsbury, além da participação do alemão Nico Krisch, uma presença articuladora do continente europeu.
O potencial analítico e o caráter inovador do projeto despertaram o interesse de interlocutores de todas as partes do mundo e com os mais variados perfis: entusiastas, céticos e críticos. No continente europeu, os seminários realizados na cidade de Viterbo na Università degli Studi della Tuscia, com a proeminência do professor Sabino Cassese, estabeleceram as pontes do DAG com o Direito Público de matriz europeia continental. Em uma leitura um pouco mais cética, o DAG também encontrou diálogo com pesquisadores do Instituto Max Planck de Direito Público Comparado e Direito Internacional, estabelecido na cidade de Heidelberg na Alemanha. Isso sem mencionar as abordagens de publicistas situados em outros países do continente europeu, como Espanha, Portugal, Reino Unido e França.[4]
A interlocução, no entanto, não ficou adstrita ao eixo Estados Unidos/União Europeia. Uma terceira via de diálogo, de propósito crítico, foi estabelecida por pesquisadores de instituições situadas em países em desenvolvimento que pretenderam problematizar a teorização do DAG a partir dos dilemas da “sul-globalização”. O objetivo central foi a disseminação de pesquisas com intuito de promover a defesa dos interesses desses países de forma mais eficaz diante das ações de agências globais e internacionais. À guisa de ilustração, destacam-se os trabalhos produzidos pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo[5], pelo Centre for Policy Research em Déli (Índia), pela Faculdade de Direito da Universidade Los Andes em Bogotá (Colombia), pela Universidade San Andres em Buenos Aires (Argentina), pela Escola de Direito da Universidade Tsinghua em Pequim (China), e pela Faculdade de Direito da University of Cape Town (África do Sul).[6]
Diante de um projeto tão ambicioso e que foi capaz de movimentar ao mesmo tempo agendas de pesquisadores e instituições com posturas as mais diversas, uma postura investigativa interessante é testar a capacidade analítica do DAG naquilo em que aparenta ser mais inovador: a categorização e a normatização de fenômenos normativos de fonte não estatal.[7] A incidência da proposta normativa do DAG sobre categorias normativas de fonte não estatal, como os standards ou padrões privados, até então ignoradas pelos campos teóricos existentes (refiro-me ao Direito Internacional Público e ao Direito Administrativo) pode promover diretrizes para suprir o déficit democrático na arena global e conferir maior transparência à produção desse tipo de norma, mormente, na forma como os standards são votados e transparência em relação às atividades de standardization dessas organizações. Daí também se extrai a relevância das leituras críticas oriundas do contexto da sul-globalização, uma vez que a standardization verificável em movimentos de convergência regulatória no contexto da globalização jurídica não passa incólume à intensa presença do elemento da disputa política e às relações desiguais entre os países.
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[1] Sabino Cassese propõe classificação em termos próximos. Cf.: CASSESE, Sabino. Global administrative law: The state of the art. International Journal of Constitutional Law, v. 13, n. 2, p. 465-468, 2015. p. 466.
[2] KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The emergence of global administrative law. Law and contemporary problems, v. 68, n. 3/4, 2005.
[3] “Governança” possui um significado mais amplo do que “regulação estatal”, referindo-se aos meios, e não apenas normas jurídicas, utilizados para influenciar o comportamento dos atores regulados. O termo “governança global”, por sua vez, denota a governança para além de um único Estado. O seu emprego ganhou força a partir da constatação de que as agências governamentais de um Estado estão geralmente sujeitas à governança conduzida, pelo menos em parte, por entidades externas ao Estado. Essas entidades podem ser organizações intergovernamentais, ONGs ou mesmo outros Estados, e os diferentes modos pelos quais essa governança é operacionalizada revelam intenso intrincamento de atuação público-privada. Cf.: DAVIS, Kevin E.; KINGSBURY, Benedict; MERRY, Sally Engle. Indicators as a technology of global governance. Law & Society Review, 46(1), 71-104. 2012. p. 80. BRAITHWAITE, John; COGLIANESE, Cary; LEVI?FAUR, David. Can regulation and governance make a difference?. Regulation & Governance, v. 1, n. 1, p. 1-7, 2007. p. 3.
[4] Sobre a sistematização das vertentes do campo teórico, cf.: VENTURINI, Otavio. Teorias do direito administrativo global e standards: Desafios à estatalidade do Direito. São Paulo: Almedina, 2020. Cap. 2.
[5] Destacam-se os trabalhos seminais de Michelle Ratton, como o paper “El Proyecto Derecho Administrativo Global: Una Reseña Desde Brasil”, apresentado no workshop de Buenos Aires em março de 2007 e publicado em 2010. O texto também evidencia o enfoque dos trabalhos posteriores da Escola: “o primeiro – e mais importante – desafio na região é a falta de abordagem crítica ao debate de governança global e o indiferente debate acadêmico em questões conexas”. Cf.: BADIN, Michelle Ratton Sanchez. El Proyecto Derecho Administrativo Global: Una Reseña Desde Brasil. Octubre 2008. Revista de Derecho Público, v. 24. 2010.
[6] Cf.: VENTURINI, Otavio. Teorias do direito administrativo global e standards: Desafios à estatalidade do Direito. São Paulo: Almedina, 2020. Cap. 2.
[7] Em estudo sobre o tema, realizamos análise da produção e ingresso do standard ISO 37001 no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente, a sua exigência em acordos de leniência celebrados pelo MPF e CGU/AGU a partir de 2017 no âmbito da operação lava jato. Cf.: VENTURINI, Otavio. Teorias do direito administrativo global e standards: Desafios à estatalidade do Direito. São Paulo: Almedina, 2020.
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