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A Reforma Administrativa e o Desmonte do Serviço Público

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A Reforma Administrativa Proposta: Um Desmonte Institucional sob o Manto da Eficiência

REFORMA ADMINISTRATIVA

SERVIÇO PÚBLICO

Bruno Betti Costa

Bruno Betti Costa

09/10/2025

Sob a égide de uma suposta modernização e busca por eficiência, foi apresenta à sociedade brasileira uma Proposta de Emenda à Constituição que, a pretexto de aperfeiçoar a governança e a gestão pública, promove um profundo e perigoso desmonte do serviço público brasileiro. A justificativa que acompanha o texto evoca nobres intenções, como a transformação digital, a profissionalização e a extinção de privilégios. Contudo, uma análise detida das alterações propostas revela uma realidade distinta: um projeto sistemático de fragilização das garantias dos servidores, de precarização das relações de trabalho no seio do Estado e de subversão de institutos jurídicos consolidados, cujas consequências recairão, em última instância, sobre a qualidade dos serviços prestados à população e sobre a integridade da própria Administração Pública. Longe de ser um avanço, a reforma desenha um futuro de instabilidade, ineficiência e vulnerabilidade à corrupção, configurando-se não como uma reforma da Administração, mas como uma reforma contra o servidor público.

1) A Aberração Jurídica do Cargo Efetivo a Termo: A Contradição Insanável do Art. 37, II-B

Um​ dos pontos mais alarmantes e conceitualmente falhos da proposta é a criação da figura do “cargo efetivo” com investidura a termo, conforme previsto no novo art. 37, inciso II-B. Esta disposição representa uma contradição em seus próprios termos, uma verdadeira aberração jurídica que busca fundir dois institutos ontologicamente incompatíveis: a efetividade e a transitoriedade. 

O cargo efetivo, em sua essência, pressupõe permanência, continuidade e estabilidade, sendo o pilar sobre o qual se assenta a construção de um corpo burocrático profissional e imune a ingerências políticas conjunturais. A investidura em tal cargo ocorre mediante a aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, um processo rigoroso, oneroso e demorado, concebido justamente como um investimento de longo prazo do Estado na qualificação de seus quadros. Em contrapartida, o vínculo a termo é, por definição, precário, temporário e destinado a situações específicas e passageiras.

A proposta tenta justificar essa criação anômala ao exigir, em sua alínea “b”, que a investidura a termo seja fundamentada na “transitoriedade da necessidade a ser atendida”. Ora, o ordenamento constitucional vigente já oferece uma solução precisa, célere e economicamente mais racional para necessidades transitórias: a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, prevista no art. 37, inciso IX, da Constituição Federal. Este mecanismo, regulamentado por lei, permite a contratação de pessoal através de um processo seletivo simplificado, muito menos complexo e custoso que um concurso público. Portanto, a reforma propõe a utilização de um instrumento complexo e mais oneroso – o concurso público – para uma finalidade que já é adequadamente atendida por um procedimento mais simples e apropriado. Trata-se de uma irracionalidade administrativa gritante, que despreza a lógica e a economicidade que a própria reforma alega buscar.

A consequência prática de tal medida é a criação de uma subclasse de servidores públicos: aqueles que, apesar de terem superado todas as exigentes etapas de um concurso para cargo efetivo, serão submetidos a uma espada de Dâmocles, com um vínculo precário e prazo de validade. Essa insegurança jurídica não apenas desestimulará profissionais altamente qualificados de ingressarem no serviço público – que perderá seu atrativo de estabilidade sem oferecer, em contrapartida, as remunerações mais elevadas do setor privado –, como também abrirá uma perigosa fresta para o apadrinhamento político e a perseguição. A decisão de renovar ou não um contrato a termo, ao final de dez anos, poderá facilmente se converter em um instrumento de coação e controle, minando a impessoalidade e a moralidade que devem reger a Administração Pública. Em vez de profissionalizar, a medida precariza; em vez de fortalecer, fragiliza.

2) A Delegação da Soberania Administrativa e a Violação do Pacto Federativo no Art. 37, II-C

Outra inovação de inconstitucionalidade manifesta é a permissão contida no art. 37, inciso II-C, para que Estados, Distrito Federal e Municípios possam aderir a concursos públicos realizados pela União. Esta proposta, sob o pretexto de uma suposta racionalização de custos, representa uma afronta direta à autonomia dos entes federados, um dos pilares da nossa República, consagrado no art. 18 da Constituição Federal. Cada ente da federação possui competência e responsabilidade para organizar seus próprios serviços e, consequentemente, para selecionar o pessoal que irá executá-los, de acordo com suas realidades, necessidades e planejamentos específicos. Um concurso público não é um ato genérico; seu edital é a lei do certame, um documento que deve espelhar as particularidades da administração que o promove, detalhando as atribuições do cargo, os conhecimentos exigidos e o perfil profissional desejado para atender às demandas locais.

A ideia de que um município no interior do país possa simplesmente “aproveitar” o cadastro de aprovados de um concurso federal para a mesma área é de uma irracionalidade atroz. As competências, os desafios e os recursos de um analista administrativo da União, por exemplo, são drasticamente diferentes dos de um servidor municipal que desempenha função análoga. Permitir essa adesão cega é negar a própria essência do planejamento administrativo. Se a reforma se propõe a instituir uma cultura de gestão por resultados e planejamento estratégico, como pode, ao mesmo tempo, sugerir que um ente federado abdique de sua prerrogativa mais basilar de escolher seus quadros com base em um diagnóstico próprio e intransferível? A medida transforma o concurso público em um mero balcão de mão de obra, desprovido de qualquer conexão com a realidade e as políticas públicas do ente contratante.

Na​ prática, tal dispositivo levaria à contratação de servidores com formação e expectativas desalinhadas com as funções que irão exercer, gerando frustração profissional, baixa produtividade e, em última análise, a prestação de um serviço público de qualidade inferior. A suposta economia com a realização do certame seria rapidamente suplantada pelos custos da ineficiência, da necessidade de retreinamento e da alta rotatividade de pessoal. Trata-se de uma das maiores violações ao pacto federativo já concebidas, uma centralização indevida que, em nome de uma falsa eficiência, sacrifica a autonomia administrativa e a inteligência gerencial dos Estados e Municípios, tratando-os como meros apêndices da administração federal.

3) A Negação da Natureza Jurídica dos Honorários Advocatícios: O Confisco Institucionalizado pelo Art. 169-A

De​ forma particularmente agressiva e conceitualmente equivocada, a proposta de emenda, em seu art. 169-A, busca redefinir a natureza jurídica dos honorários de sucumbência, declarando-os como “receitas públicas”. Esta afirmação é uma violência contra a própria essência do instituto. Honorários advocatícios, sejam eles contratuais ou sucumbenciais, públicos ou privados, constituem remuneração pelo trabalho do advogado. Não se trata de uma liberalidade do legislador, mas de um direito intrinsecamente ligado ao exercício da profissão, conforme reconhecido há décadas pela legislação infraconstitucional, notadamente pelo Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994) e pelo Código de Processo Civil. 

Dizer que os honorários de sucumbência pertencem ao ente federado é uma ficção jurídica tão absurda quanto decretar que a força da gravidade não existe. A natureza de um instituto jurídico não se altera por um mero ato de vontade legislativa; ela é fruto de uma construção histórica, doutrinária e jurisprudencial que reconhece sua função e titularidade.

O argumento falacioso de que os advogados públicos já recebem um subsídio e, portanto, não fariam jus aos honorários, ignora a duplicidade de natureza da sua remuneração. O subsídio remunera a disponibilidade do servidor e o exercício ordinário de suas funções de consultoria e representação. Os honorários de sucumbência, por outro lado, são uma verba de caráter variável e meritocrático, que premia o êxito em uma demanda judicial específica. Eles representam a materialização da remuneração por desempenho, um conceito que, paradoxalmente, a própria reforma administrativa alega querer promover. Ao defender a instituição de bônus de resultado, a proposta contraditoriamente extingue a forma mais tradicional e eficaz de remuneração por performance existente na Administração Pública para uma carreira inteira.

Afastar, reduzir ou mitigar os honorários da advocacia pública é uma medida absolutamente contraproducente. É desincentivar a combatividade na defesa do erário, a busca pela recuperação de créditos e a eficiência na representação judicial do Estado. Os honorários funcionam como um poderoso estímulo para que o corpo jurídico público atue com o máximo de zelo e diligência, pois o sucesso individual de cada advogado se reverte em benefício para toda a carreira e, em última análise, para o próprio Estado, que economiza ou arrecada recursos graças a essa atuação vitoriosa. O art. 169-A, ao confiscar essa verba, desmantela esse sistema de incentivos e promove um desinteresse pela busca de resultados, o que, a longo prazo, custará muito mais aos cofres públicos do que a manutenção do sistema atual. A proposta nega a natureza das coisas, atenta contra o direito de propriedade dos advogados sobre sua remuneração e sabota a eficiência que falsamente proclama.

4) A Superficialidade da Inovação: O Governo Digital que Apenas Reafirma o Óbvio

A reforma administrativa dedica uma seção ao que chama de “Governo Digital”, buscando imprimir um ar de modernidade e inovação ao texto constitucional. No entanto, uma leitura atenta do proposto art. 38-B e de outras disposições correlatas revela que, em grande medida, a proposta não traz novidades substanciais, limitando-se a constitucionalizar diretrizes e práticas que já estão em curso ou previstas em legislação ordinária. A transformação digital da administração pública brasileira é um processo em andamento há anos, impulsionado por iniciativas como o processo eletrônico nos tribunais, a plataforma Gov.br, a Lei de Acesso à Informação, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e a própria Lei do Governo Digital (Lei nº 14.129/2021).

As​ diretrizes listadas, como a interoperabilidade de sistemas, a identificação única nacional, a segurança cibernética e a transparência, são princípios já consolidados na gestão pública contemporânea. Elevá-los ao texto constitucional, embora não seja prejudicial em si, pouco contribui para a superação dos verdadeiros desafios da inclusão digital no Brasil. A proposta é eloquente em seus objetivos, mas silente sobre os meios para alcançá-los. Os verdadeiros gargalos para a efetivação de um governo digital universal e eficiente não residem na ausência de normas constitucionais, mas na persistente exclusão digital de uma parcela significativa da população, na carência de investimentos em infraestrutura de conectividade em regiões remotas e na necessidade de capacitação contínua tanto dos servidores quanto dos cidadãos. A reforma oferece um verniz de modernidade tecnológica, mas falha em abordar os problemas estruturais que impedem que a tecnologia se traduza em um acesso verdadeiramente universal e equitativo aos serviços públicos.

5) Conclusão: Um Ataque ao Estado, Não uma Reforma para o Cidadão

Em​ suma, a Proposta de Emenda à Constituição analisada não representa uma reforma administrativa genuína, voltada para o aprimoramento do Estado e a melhoria dos serviços ao cidadão. Pelo contrário, configura-se como um conjunto de medidas regressivas, concebidas para fragilizar o serviço público, precarizar o trabalho dos servidores e minar as bases de uma burocracia profissional e autônoma. A introdução de um cargo efetivo temporário, a violação da autonomia federativa na seleção de pessoal, o confisco da remuneração de advogados públicos e a superficialidade das propostas de governo digital convergem para um único e lamentável resultado: o enfraquecimento da capacidade estatal. Ao afastar talentos do serviço público, ao introduzir a instabilidade como regra e ao desmantelar sistemas de incentivo à eficiência, a reforma pavimenta o caminho não para a modernidade, mas para a inoperância, a precarização dos serviços essenciais e o aumento da vulnerabilidade do aparelho estatal à corrupção e ao clientelismo. Ao final, a conta desse desmonte não será paga pelos servidores, mas por toda a sociedade brasileira, que verá a qualidade dos serviços públicos se deteriorar e a promessa de um Estado eficiente e justo se tornar ainda mais distante.

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