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O princípio da congruência nas ações de improbidade administrativa
01/08/2022
O princípio da congruência traduz a ideia de que o juiz, uma vez iniciada a prestação jurisdicional, não pode se afastar do pedido do autor, devendo a ele cingir-se, apreciando a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte (art. 141 do CPC).
Por força desse mesmo princípio, é defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado (CPC, art. 492).
É como se a parte ativa elaborasse na petição inicial uma figura geométrica e o juiz, para decidir, tivesse de colori-la. Na metáfora, o ato de postular equivale ao de desenhar a figura geométrica e o de colorir equivale ao de decidir. O juiz não pode se negar a colorir a figura apresentada pelo autor e, em substituição, escolher pintar outra criada por ele; nada dentro dos limites da figura apresentada pelo autor pode ficar sem cor; e a pintura não pode transcender os limites da figura elaborada pelo autor.
Artigo 492 do CPC e a previsão de adstrição da sentença
Apesar de o artigo 492 do CPC prever uma adstrição da sentença somente ao pedido formulado pelo autor, ela também existe para a causa de pedir, sendo tradicional a lição que determina não poder a sentença ser fundada em causa de pedir diversa da constante do processo. Havendo a limitação da sentença à causa de pedir, não pode o juiz conceder o pedido elaborado na petição inicial com fundamento em causa de pedir não descrita pelo autor em sua petição inicial. Se desconsiderar essa vinculação, proferirá decisão extra causa petendi.
É indiscutível que o fundamento jurídico da pretensão integra a causa de pedir, mas a vinculação exigida entre causa de pedir e a sentença não é exigida quanto a este elemento. Há lições doutrinárias[1] e decisões judiciais[2] que liberam o juiz em sua decisão no tocante ao fundamento jurídico do pedido, restando a vinculação limitada aos fatos jurídicos narrados na petição inicial.
Noutras palavras, o fundamento jurídico do pedido integra a causa de pedir, mas não vincula o juiz e o seu ajuste na decisão à luz da demanda inicial não importa em violação da regra da congruência, consubstanciada nos arts. 141 e 492 do CPC.
Dever do juiz
Nos limites do pano de fundo estabelecido pela causa de pedir e pedido, ao juiz sempre foi dada a possibilidade de enquadramento da pretensão na melhor moldura oferecida pelo ordenamento jurídico, o que se encontra consagrado nas máximas iura novit cúria ou narra mihi factum dabo tibi ius.
Note-se, contudo, que o fato de o juiz poder conhecer de ofício do direito não o desonera do dever de submeter sua perspectiva jurídica previamente às partes (vedação à decisão surpresa), acaso os horizontes da discussão do processo não tivessem divisado aquela[3]. Dito de outro modo, ainda que o magistrado não se encontre adstrito aos fundamentos jurídicos apresentados pelas partes, tendo liberdade para atribuir, aos fatos da causa, a qualificação jurídica que lhe pareça mais adequada a uma solução substancialmente mais justa, tal prerrogativa não o desobriga de oferecer às partes a oportunidade para se manifestarem previamente sobre o tema, em homenagem ao contraditório e à ampla defesa.
Postas essas premissas, questão interessante é saber se o juiz, nas ações de improbidade administrativa, pode discordar da tipificação adotada pelo autor na inicial e condenar o réu como incurso em outro tipo legal da Lei 8.429/1992 (LIA)[4]. Exemplificativamente, se o autor da ação imputa ao réu a prática de fraude à licitação e enquadra tal conduta na tipologia do artigo 10, VIII, da LIA, poderá o juiz modificar na sentença a tipologia da conduta para condenar o réu como incurso no artigo 11, inciso V[5], do mesmo diploma legal?
Juriprudência
Entendemos que sim, uma vez que na ação de improbidade administrativa o juiz está adstrito aos fatos e não aos fundamentos jurídicos do pedido. Nesse sentido, inclusive, estava consolidada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Confira-se[6]:
O pacífico entendimento do STJ é no sentido de que não há ofensa ao princípio da congruência quando a decisão judicial enquadra os supostos atos de improbidade em dispositivo diverso daquele trazido na exordial, uma vez que os réus se defendem dos fatos que lhes são imputados, competindo ao juízo, como dever de ofício, sua qualificação jurídica, vigendo em nosso ordenamento jurídico os brocardos iura novit curia e o da mihi factum, dabo tibi ius.
Ressalte-se que tal prerrogativa não desonera o magistrado de oferecer às partes a oportunidade para se manifestarem sobre a nova tipologia por ele visualizada. Por óbvio, acaso o réu se antecipe, discutindo previamente uma determinada posição jurídica, o reconhecimento de tal questão pelo magistrado independe de nova e prévia manifestação[7].
Lei 14.230/2021 e o caráter ainda mais restritivo ao princípio da congruência
Ocorre que a Lei 14.230/2021, ao promover uma ampla e profunda reforma na Lei 8.429/1992, aparenta ter conferido um caráter ainda mais restritivo ao princípio da congruência nas ações de improbidade administrativa, ao exigir que a adstrição do juízo seja tanto aos fatos jurídicos como ao fundamento jurídico alegado pelo autor. Desse teor do artigo 17, § 10-C, da LIA:
Art. 17 (…) § 10-C. Após a réplica do Ministério Público, o juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor (incluído pela Lei n. 14.230/2021).
Por outro lado, o texto reformado fixa a nulidade da sentença na ação de improbidade administrativa que condenar o réu por tipo diverso do indicado na inicial (LIA, artigo 17, §10-F, I)[8].
Para parte da doutrina, a conjugação dessas duas regras deixa clara a intenção da Lei 14.320/2021 de conferir um novo significado ao princípio da congruência no domínio da probidade administrativa, ao exigir que a adstrição do juízo seja tanto aos fatos jurídicos como ao fundamento jurídico alegado pelo autor da ação de improbidade administrativa[9]. Em sendo assim, ainda que o fato imputado ao agente ímprobo esteja corretamente descrito na petição inicial, o emprego da tipologia incorreta pelo autor na petição inicial impede o juiz de condenar o réu por tipo diverso.
Ousamos discordar desse entendimento. A rigor, a interpretação literal das disposições acima pode fomentar juízo de inconstitucionalidade.
Com efeito, a vedação à alteração da tipificação da conduta, reconhecida no saneamento (artigo 17, §10-C), associada à nulidade da sentença que condenar por tipo diverso do indicado na inicial (artigo 17, §10-F, I) colide frontalmente com a garantia de acesso à justiça, prevista no artigo 5º, XXXV, da CF[10]. Esta não se esgota na possibilidade de propor a demanda em juízo, alcançando a efetiva chance de obter tutela jurisdicional, com decisão favorável ou desfavorável ao autor. A partir do momento em que uma regra impede o juiz de aplicar a qualificação jurídica que lhe pareça mais adequada a uma solução substancialmente mais justa, resta esvaziada a garantia de acesso à justiça.
A vedação em questão também parece esbarrar na estrutura de divisão de poder e de seu exercício, impedindo que o juiz cumpra seu papel, ou seja, julgue. Nessa perspectiva, a realidade jurídica se impõe como existência: o juiz não pode aplicar uma norma que não existe, nem se abster de aplicar uma norma que existe, ainda que as partes não a tenham invocado ou que a tenham invocado uma pela outra. Proposta a ação, o juiz terá que se ater à norma existente, a qual não pode ser ignorada. Deve, pois, conhecer e aplicar a norma correspondente, suprindo, se for necessário às partes, em seus erros e deficiências. Por consectário lógico, “o juiz disporá também, em iniciativa e extensão, de um ilimitado poder informativo”[11].
Noutro flanco, não podemos olvidar que nem mesmo na esfera penal, ultima ratio do direito sancionador, o juiz está vinculado à capitulação jurídica dada ao fato criminoso pelo autor na peça vestibular acusatória. Ao contrário, o artigo 383 do Código de Processo Penal autoriza expressamente o juiz a atribuir uma definição jurídica diversa ao fato contido na denúncia ou queixa[12].
Propõe-se, assim, uma interpretação desses dispositivos em conformidade com a Constituição Federal, em ordem a concluir que a sentença que condenar o réu por tipo diverso do indicado na inicial só será nula quando o juiz, para alcançar tal resultado, modificar os fatos jurídicos descritos na petição inicial.
Em conclusão, a melhor forma de se harmonizar os princípios da congruência e da vedação à decisão surpresa no domínio LIA consiste em autorizar o magistrado a modificar na sentença a tipologia da conduta imputada ao réu, mediante a observância de duas condições: (i) não-modificação da descrição do fato contida na petição inicial; e (ii) faculdade às partes para se manifestarem previamente sobre o tema.
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NOTAS
[1] DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. II. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 407-422.
[2] STJ, 1ªT., AgInt no AREsp 1.415.942/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 17.11.2020
[3] Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
[4] Art. 10, inciso VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;
[5] Art.11, V – frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros;
[6] AgInt no AREsp 1.415.942/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 17.11.2020. No mesmo sentido: REsp 1.375.840/MA, 2ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, j. 07.06.2018; REsp 842428, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, j. 24.04.2007, DJ 21.05.2007. No mesmo sentido: REsp 439280/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 26.10.2004, DJU 16.06.2003; REsp 1.096.702/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, j. 04.02.2010, DJe 22.03.2010.
[7] Confira-se, nesse sentido: DELLORE, Luiz (et al.). Comentários ao Código de Processo Civil. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 25.
[8] Art. 17, § 10-F. Será nula a decisão de mérito total ou parcial da ação de improbidade administrativa que: I- condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial;
[9] GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. FAVRETO, Rogério. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5 ed. São Paulo: RT, 2021, p. 357.
[10] Nesse sentido: LEONEL, Ricardo de Barros. Processo e procedimento na nova Lei de Improbidade Administrativa. https://www.conjur.com.br/ , publicado em 26.11.2021.
[11] PALAIA, Nelson. Fato notório. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 130
[12] CPP, Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave.