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O confuso regime de subsídio remuneratório
José dos Santos Carvalho Filho
22/08/2016
Quando a Emenda Constitucional nº 19/1998, que pretendeu instituir a reforma administrativa do Estado, estabeleceu no § 4º do art. 39, que o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais deveriam ser “remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”, muitas dúvidas desde logo surgiram quanto à sua real eficácia.
Na verdade, mais do que dúvidas, o dispositivo gerou descrença quanto à sua aplicabilidade, e isso pela singela razão de que os agentes públicos não tinham o costume de ser remunerados por parcela única. Muito ao contrário, a tradição sempre foi a percepção do vencimento-base acrescido de diversas parcelas, as quais, somadas, ultrapassavam habitualmente o próprio padrão vencimental.
O certo é que, na teoria, o mandamento era inteligível, mas, na prática, verificou-se que não poderia sustentar-se diante de uma interpretação rigorosamente literal. E não se desconhece que, quando ocorre esse fenômeno no regime funcional, o efeito, como regra, é o da tendência a certo oportunismo, sempre para propiciar maiores vantagens aos destinatários do que pretendeu o legislador – algumas delas de duvidosa legitimidade.
Apesar disso, é justo reconhecer, como já o fizemos em obra de nossa autoria, que o citado § 4º do art. 39 deve ser interpretado em conjugação com o § 3º do mesmo dispositivo, inferindo-se que, além dos subsídios, possam os agentes perceber vantagens pecuniárias de caráter indenizatório ou excepcionais, como é o caso do adicional de férias, o décimo terceiro salário, o acréscimo de horas extraordinárias e o adicional de trabalho noturno – vantagens essas que constituem direitos sociais. (1)
Assim, a dita “parcela única”, a que alude o art. 39, § 4º, da CF, passou a ter um sentido relativo, de um lado admitindo que a ela sejam acrescidas determinadas verbas e, de outro, sendo vedado o acréscimo de outras, como parece ter sido a intenção primitiva do constituinte. (2) Ou seja: nunca foi “única”.
Apenas à guisa de exemplo, invoca-se aqui a Resolução nº 133, de 21.6.2011, expedida pelo CNJ – Conselho Nacional de Justiça, que, visando equiparar a remuneração dos magistrados à dos membros do Ministério Público, admitiu expressamente a cumulação do subsídio dos magistrados com as seguintes verbas: (a) auxílio-alimentação; (b) licença não remunerada para o tratamento de assuntos particulares; (c) licença para representação de classe, para membros da diretoria, até três por entidade; (d) ajuda de custo para serviço fora da sede de exercício; (e) licença remunerada para curso no exterior; (f) indenização de férias não gozadas, por absoluta necessidade de serviço, após o acúmulo de dois períodos.
Para mostrar como está longe a ideia de “parcela única”, a Resolução nº 10, de 19.6.2006, do CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público, ao tratar da aplicação do teto remuneratório estabelecido no art. 37, XI, da CF, alude, ainda, a outras parcelas suscetíveis de percepção cumulativa com os subsídios, citando-se, dentre outras, a remuneração decorrente de magistério, nos termos do art. 128, II, “d”, da CF, a gratificação oriunda da prestação de serviço eleitoral e a gratificação pela participação, como membro, do CNMP ou CNJ.
Enfim, passados já mais de dezoito anos da referida E.C. 19/1998, ainda não há uniformidade quanto à delimitação das parcelas que podem ser percebidas pelos agentes remunerados pelo sistema de subsídios. Ao contrário, muitas divergências têm ocorrido na matéria e, mais do que isso, muitas soluções adotadas se revelam com esdrúxulo delineamento. Acresce, da mesma forma, que nem sempre o princípio da transparência é fielmente observado pelas instituições, embora nenhum efeito importante advenha desse ocultismo, em virtude do estamento de poder a que pertencem as categorias funcionais mais favorecidas.
Sob o aspecto teórico, o subsídio só poderia comportar o acréscimo de verbas de caráter indenizatório. Como se sabe, tais pagamentos têm o objetivo de cobrir ou reembolsar despesas necessariamente efetuadas pelo agente público, não cabendo a este arcar com esse ônus, sob pena de haver, indiretamente, redução no subsídio a que faz jus.
O problema é que nem sempre há uniformidade de entendimento quanto à linha que demarca as parcelas indenizatória e remuneratória. Conceitualmente, aquela tem o escopo de cobrir despesas não atribuíveis ao agente, mas efetuadas por ele, ao passo que esta alvitra remunerar o agente, caracterizando-se, portanto, como rendimento. Tais linhas conceituais, entretanto, não informam, com exatidão, a diferença entre elas, de modo que frequentes controvérsias são suscitadas sobre a questão.
Não sendo este o foro adequado para o aprofundamento da discussão, parece oportuno, todavia, ventilar o tema diante de voto proferido pelo relator, Ministro Teori Zavascki, do STF, sobre subsidio e gratificação. (3) Ressalva-se, porém, que não se trata de decisão definitiva, já que até o momento o julgamento está inconcluso, em face de pedido de vista do Ministro Luiz Fux.
Em ação direta de inconstitucionalidade, discute-se sobre a possibilidade, ou não, de servidor, por força de lei local, perceber subsídio acrescido de “gratificação de dedicação excepcional”, tendo em vista que o art. 39, § 4º, da CF, impõe a percepção de subsídio em “parcela única”.
Depois de assinalar em seu voto que o dispositivo não poderia ser interpretado literalmente – com o que concordamos e foi visto acima -, o ilustre relator afirmou que o modelo constitucional teve o escopo de impedir que funções inerentes ao cargo, já remuneradas pelo subsídio, o fossem também por outra vantagem pecuniária. Consignou, ainda, o voto que a lei não seria inconstitucional, porque “o pagamento nela previsto retribuiria atividades que extrapolariam às próprias e normais do cargo pago por subsídio”.
Aduziu o relator que as atividades, “a serem retribuídas por parcela própria, deteriam conteúdo ocupacional estranho às atribuições ordinárias do cargo”, culminando por afirmar que o art. 39, § 4º, da CF, pretenderia impedir “que o subsídio fosse cumulado com outras verbas destinadas a retribuir o exercício de atividades próprias e ordinárias do cargo”. E concluiu não haver inconstitucionalidade na lei estadual suscitada na ação direta.
Apesar da ausência ainda de julgamento final, não ficou muito clara a interpretação dada pelo ilustre relator. Em linhas contrárias, o voto provoca mais confusão ainda no que se refere ao que pode ou ao que não pode somar-se ao subsídio.
A “gratificação de dedicação excepcional” tem o mesmo perfil da “gratificação de dedicação exclusiva” e retrata uma vantagem pecuniária de caráter remuneratório, vale dizer, traduz rendimento a maior para o servidor. Na clássica lição de Hely Lopes Meirelles, gratificações “são vantagens pecuniárias atribuídas precariamente aos servidores que estão prestando serviços comuns da função em condições anormais de segurança, salubridade ou onerosidade (gratificações de serviço), ou concedidas como ajuda aos servidores que reúnam as condições pessoais que a lei especifica (gratificações especiais)”. (4)
De nossa parte, procuramos mostrar que não há definição precisa nem das gratificações, nem dos adicionais. Tudo é mera questão de nomenclatura. Dissemos, então, que “o que vai importar é a verificação, na norma pertinente, do fato que gera o direito à percepção da vantagem”. (5) Além disso, cumpre verificar o conteúdo da vantagem pecuniária, com a indicação daquilo a que pretende referir-se.
Não obstante, no caso é induvidoso que a citada gratificação tem evidente perfil remuneratório e representa, na verdade, parcela de ganhos acrescida ao subsídio. Se o servidor está sob o regime ordinário de vencimentos, nenhum óbice há para que os perceba com o acréscimo de outras vantagens pecuniárias, sejam gratificações, sejam adicionais. Mas, sob a égide do regime de subsídio, fica praticamente impossível conciliar essa percepção cumulativa com a vedação estatuída no art. 39, § 4º, da CF.
A justificativa do relator não se coaduna, com a devida vênia, com o texto constitucional. Com efeito, não se entende muito bem o que são “atividades próprias e ordinárias do cargo”, para justificar a percepção do subsídio com alguma vantagem pecuniária. O sistema de subsídio não comporta indagar o tipo de função atribuída ao cargo. O que a Constituição veda, com clareza e peremptoriamente, é o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra vantagem remuneratória, e, ao fixar essa proibição, o Constituinte desconsiderou a natureza da atribuição do cargo.
A interpretação do nobre relator praticamente reduz a zero a vedação constitucional, e isso porque existem várias situações funcionais que não se situam rigorosamente dentro das “atribuições próprias e ordinárias do cargo”. Desse modo, qualquer dessas situações permitiria que o servidor percebesse o subsídio em cúmulo com a vantagem pecuniária.
O hibridismo é inviável na hipótese. Ou se adota o regime de subsídio e, então, não se pode acrescer a ele nenhuma gratificação, adicional ou similar, ou se emprega o tradicional regime de vencimentos, pelo qual podem ser acrescidas (e normalmente o são) todas as vantagens desejadas pelo legislador.
Aguardemos a decisão final do STF sobre a lei estadual que admitiu o somatório de subsídio com gratificação remuneratória. Mas, desde já, causa preocupação a interpretação elástica dada pelo voto em tela, diante do que dispõe a Constituição.
Em semelhante processo, serão ampliadas as dúvidas quanto ao regime de subsídio. E o regime, que já é confuso, estará fadado ao desaparecimento, não mais se distinguindo do regime clássico de vencimentos, embora a marca dessa distinção tenha expressa previsão constitucional.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de Direito Administrativo, Gen/Atlas, 30ª ed., 2016, pág. 784.
(2) No mesmo sentido, ODETE MEDAUAR, Direito Administrativo Moderno, RT, 8ª ed., 2004, pág. 322.
(3) STF, ADI 4941, julg. em 12.5.2016.
(4) HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 39ª ed., 2013, pág. 559.
(5) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual cit., pág. 787.
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