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Levando a emergência a sério nas contratações públicas: interpretação do art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
10/07/2024
As situações emergenciais, sejam elas decorrentes de eventos imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências desproporcionais, evidenciam a necessidade de aplicação de um regime jurídico extraordinário e flexível capaz de apresentar soluções céleres para os desafios enfrentados, distinto do regime jurídico ordinariamente aplicado às situações de normalidade social, econômica, ambiental e institucional.
No campo das contratações públicas, destaca-se a previsão contida no art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) que autoriza a contratação direta, com dispensa de licitação, de empresas para prestação de serviços, fornecimento de bens e execução de obras, nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando houver risco de prejuízo ou comprometimento à segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, tanto públicos quanto particulares.
Mencione-se, ainda, a recente Medida Provisória 1.221/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública, que foi elaborada a partir da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, ocorrida, especialmente, nos meses de abril e maio de 2024.
O foco do presente texto é apresentar os desafios de interpretação do art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021 que permite a dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública. A compreensão adequada deste dispositivo legal é crucial, pois ele regula as condições sob as quais a Administração Pública pode contratar com maior agilidade em situações críticas, sem a necessidade dos procedimentos de licitação convencionais, garantindo assim uma resposta eficiente e tempestiva em momentos de necessidade urgente.
De acordo com o referido dispositivo legal, é possível a dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública,1 quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de um ano, contado a partir da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso.
A contratação emergencial, assim com os demais casos de contratação direta, exige, em regra, a observância de procedimento formal prévio, que inclui a apuração e comprovação das condições legais para dispensa de licitação, devendo o processo ser instruído com as informações e documentos indicados no art. 72 da Lei 14.133/2021.
Em situações emergenciais, que autorizam a dispensa de licitação, afigura-se razoável, contudo, a flexibilização das exigências formais na fase preparatória, em razão da urgência da contratação para o atendimento do interesse público. Assim, por exemplo, nas contratações em situações emergenciais e de instabilidade institucional, indicadas no inciso VIII do art. 75 da Lei 14.133/2021, é dispensado o registro no plano de contratações anual (PCA), na forma do art. 7º, III, do Decreto 10.947/2022, bem como é facultativa a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP), com fundamento no art. 14, I, da Instrução Normativa SEGES Nº 58/2022.
É possível sustentar, inclusive, que, em situações de extrema urgência, com a necessidade da contratação emergencial imediata, outras exigências formais da fase preparatória sejam afastadas para não comprometer o atendimento do interesse público.2
Não obstante as semelhanças entre o art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021 e o art. 24, IV, da revogada Lei 8.666/1993, existem, ao menos, duas importantes diferenças entre os referidos dispositivos legais, a saber: a) enquanto a legislação anterior estabelecia o prazo máximo de seis meses para contratação, a nova Lei amplia o prazo para um ano, vedada a prorrogação para além do prazo máximo nas duas normas; e b) ao contrário da legislação anterior, a nova Lei proíbe a recontratação de empresa já contratada emergencialmente, com fundamento no referido dispositivo legal.
Registre-se que a proibição de prorrogação se refere ao prazo máximo fixado pela legislação na contratação emergencial, mas isso não impede as prorrogações, nos contratos celebrados por prazos inferiores, até o limite legalmente fixado. Assim, por exemplo, se o contrato emergencial foi celebrado, inicialmente, por prazo inferior a um ano, o ajuste poderia ser prorrogado até completar o referido limite. Nesse caso, naturalmente, o contrato continuaria sendo executado pela mesma empresa. Ao chegar no limite máximo de um ano, o contrato não poderia ser novamente prorrogado e a Administração Pública não poderia recontratar a empresa que executava, até então, o contrato emergencial, na forma da previsão literal do art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021.
Aqui é relevante destacar que as vedações de “prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada”, constantes do inciso VIII do art. 75 da Lei de Licitações, devem ser interpretadas dentro da própria lógica inserida no referido inciso. Vale dizer: ao permitir que a contratação emergencial envolva bens, obras e serviços que possam ser concluídos no prazo máximo de um ano, o legislador acabou por permitir, implicitamente, que o contrato seja celebrado em prazo inferior, com possíveis prorrogações até o limite do prazo anual. Nesse momento, com o atingimento do prazo anual, seria aplicada a vedação da prorrogação e da recontratação da mesma empresa.
De qualquer forma, como sustentamos em outra oportunidade, entendemos que as proibições de prorrogação do prazo, após um ano de contrato emergencial, e de recontratação emergencial da mesma empresa não podem ser absolutas.3
É verdade que o prazo máximo de um ano para contratação diminui as chances de perpetuação da situação emergencial ou de calamidade pública para além do referido prazo, mas, em situações extremas, verificada a necessidade de manutenção da execução do objeto contratual, poderia ser relativizada a limitação temporal.
A interpretação literal do art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021, impediria a prorrogação ou a recontratação da mesma empresa, ainda que houvesse a necessidade concreta da contratação, em razão da permanência da emergência ou da calamidade, e resultaria na eventual celebração de novo contrato emergencial com outra empresa, mesmo que os valores apresentados e as demais condições contratuais apresentem desvantagens em relação àquelas constantes do contrato emergencial anterior.
A partir de uma presunção inadequada de conluio ou má-fé por parte da Administração Pública e da contratada, que revela a duvidosa constitucionalidade da parte final do inciso VIII do art. 75 da Lei 14.133/2021, o legislador optou por proibir a recontratação da mesma empresa já contratada emergencialmente, independentemente da correta execução contratual pela empresa e da permanência das condições mais vantajosas que aquelas apresentadas por outras empresas potencialmente interessadas.
Não se desconsidera a notícia de desvios pontuais e contratações emergenciais irregulares no âmbito da vigência da Lei 8.666/1993, o que deveria ensejar a atuação célere e proporcional das instâncias de controle, com a aplicação de sanções aos envolvidos. O que não se pode admitir, contudo, é que a exceção seja generalizada para se transformar em regra ineficiente e antieconômica. Algo semelhante ocorre com as denominadas “emergências fabricadas”, causadas pela desídia ou falta de planejamento do gestor público, que não impedem a formalização da contratação emergencial, com objetivo de manter a continuidade dos serviços estatais, mas exigem a apuração de responsabilidade dos agentes públicos que deram causa à situação emergencial, na forma do art. 75, § 6.º, da Lei 14.133/2021.
Eventualmente, a excepcionalização do prazo máximo de um ano, quando a situação emergencial perdurar para além desse período, com a impossibilidade devidamente justificada de realização de licitação, seria razoável a flexibilização da vedação de prorrogação e de recontratação da mesma empresa, desde que, no momento da celebração do termo aditivo de prorrogação, a pesquisa de preços demonstre que a empresa contratada anteriormente permanece com condições mais vantajosas que as empresas concorrentes.
Ainda que a interpretação retrospectiva, com apoio na legislação anterior já revogada, não seja recomendável como regra geral, certo é que, na vigência do art. 24, IV, da Lei 8.666/1993, o prazo máximo de 180 dias do contrato emergencial, vedada a prorrogação, não impedia a excepcional e justificada prorrogação para além do prazo semestral, na linha da jurisprudência do TCU.4
Em suma, sustentamos a viabilidade de flexibilização excepcional das vedações contidas na parte final do inciso VIII do art. 75 da Lei 14.133/2021, com o intuito de não prejudicar o interesse público e, portanto, os direitos fundamentais em risco nas situações emergenciais. Seria possível, nesse cenário, a excepcional prorrogação do contrato emergencial para além do prazo de um ano, a partir de justificativas robustas por parte da Administração Pública, com a potencial contratação da mesma empresa, se as condições forem mais favoráveis que aquelas apresentadas pelas empresas consultadas no processo de contratação direta.
Aliás, demonstrando a insuficiência do limite máximo do prazo anual, o art. 2º, III, da MP 1.221/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para contratações durante o estado de calamidade pública, permite a prorrogação de contratos para além dos prazos estabelecidos na Lei 14.133/2021, por, no máximo, doze meses, o que relativiza o limite indicado no art. 75, VIII, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Revela-se necessário levar a sério as situações emergenciais, com a fixação de normas jurídicas que não se transformem em barreiras ao célere atendimento do interesse público e dos direitos fundamentais ameaçados nos casos de emergência ou de calamidade pública. Afinal, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose ministrada.
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NOTAS
1 Sem desconsiderar a dificuldade na distinção da emergência e do estado de calamidade, verifica-se a tentativa doutrinária de diferenciação formal e material entre as situações: a) aspecto formal: enquanto o estado de calamidade pressupõe decretação formal pelo Chefe do Executivo, a emergência não depende, necessariamente, de decretação formal, sendo suficiente o reconhecimento pelo próprio gestor; e b) aspecto material: o estado de calamidade envolve danos mais graves, configurando situação mais crítica que a emergência. De forma semelhante: art. 2º, VIII e XIV, do Decreto 10.593/2020. SARAI, Leandro. Tratado da nova lei de licitações e contratos administrativos: Lei 14.133/2021 comentada por advogados públicos, 2 ed. São Paulo: Editora Juspudivm, 2022, p. 943; MOTTA, Fabrício. Contratação direta: inexigibilidade e dispensa de licitação. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133 de abril de 2021, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 285-286.
2 No mesmo sentido: CHARLES, Ronny. Leis de licitações públicas comentadas, 12 ed. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2021, p. 435-436.
3 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 77/79; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à nova lei de licitações e contratos administrativos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 176/178.
4 No contexto, da Lei 8.666/1993, o TCU admitia, em situações excepcionais e justificadas, a prorrogação para além do prazo máximo de 180 dias. Vide, por exemplo: TCU, Plenário, Acórdão 3.238/2010, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 01/12/2010.