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Lei anticorrupção permite que inimigo vire colega

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Thiago Marrara

Thiago Marrara

04/07/2017

Há algumas décadas, qualquer administrativista diria ser inaceitável que o Estado dialogasse com infratores. A receita era simples: uma infração administrativa impõe uma sanção. O Estado não se senta à mesa de negociação com o violador da lei. Eis a lógica de gestão pública unilateral, autoritária e impositiva. Eis a leitura inflexível e anacrônica da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.

Hoje, a Administração dialógica ganhou espaço. O administrador público que via no infrator confesso um inimigo mortal, nele encontra um “colega de trabalho”. O Estado dialoga com o infrator! “Contrata” seus serviços! O Estado aceita sua ajuda e, em contrapartida, oferece-lhe os mais amplos benefícios, inclusive a extinção da punibilidade administrativa e penal em alguns casos. Ou seja: recebe apoio do infrator e retribui educadamente.

Mas – certamente perguntará um leitor – que insanidade é essa? A Administração Pública se corrompeu por completo? A indisponibilidade do interesse público, como bem querem alguns, foi realmente sepultada? Ou foi substituída por novos modismos principiológicos e, de vez, esquecida?

Nenhuma das alternativas anteriores! A cooperação com o infrator que se dá por meio da leniência é a própria concretização da supremacia do interesse público. A explicação é simples. O legislador brasileiro, assim como o europeu e o norte-americano, percebeu que as infrações se tornaram grandiosas, complexas e absurdamente nocivas. Percebeu que nem mesmo os poderes investigatórios mais agressivos às inviolabilidades constitucionais (como a busca e apreensão e as interceptações telefônicas) serão capazes de trazer aos entes públicos as provas necessárias a um processo acusatório bem-sucedido. É nesse cenário que o legislador brasileiro passou a se indagar: é mais sábio tentar punir todos e não punir ninguém ou deixar de punir um no intuito de punir alguém? Os brasileiros conhecem bem o dilema a partir do ditado popular: dois voando ou um na mão?

A emergência dos institutos pró-consensuais no exercício da atividade sancionadora está intimamente ligada à segunda opção! Erra, todavia, aquele que vê no modelo de Administração consensual uma substituição integral ou definitiva da ação administrativa unilateral e impositiva! Erra, ainda, aquele que associa a leniência ao sepultamento da indisponibilidade de interesses públicos primários. A leniência desponta como um acordo administrativo que acompanha o processo acusatório e, em última instância, colabora com o exercício eficaz da pretensão punitiva estatal. E esse tipo de administração consensual pode conviver perfeitamente com a administração pública clássica. Aliás, frequentemente é o próprio modelo impositivo de administração que reforça as vias negociais.

Diante disso se compreendem mais facilmente os motivos que levaram o legislador brasileiro a prever o acordo de leniência na Lei Anticorrupção. Trata-se de um instituto análogo ao homônimo existente desde 2000 no processo administrativo empregado pelo Cade no controle de condutas anticoncorrenciais. Análogo igualmente à delação premiada, bem conhecida dos penalistas. No direito estrangeiro, a leniência, amplamente difundida, é designada como “regra do bônus” (Bonusregelung) ou “regra da testemunha da coroa” (Kronzeugenregelung). Resta saber, contudo, qual o efeito potencial do instituto na luta contra a corrupção brasileira e, na prática, quais são seus desafios operacionais. E aqui se demanda uma anotação panorâmica.

É preciso ter em mente que a chamada Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/2013) veio a reforçar as estratégias de combate à “corrupção” em sentido amplo. Ela trata da responsabilidade objetiva civil e administrativa de pessoas jurídicas e físicas que lesem a administração pública, nacional ou estrangeira, seja por atentarem contra o patrimônio público, seja por violarem gravemente princípios administrativos. Nisso se incluem fraudes e cartéis licitatórios, manipulações do equilíbrio econômico-financeiro de contratos da Administração, atos de corrupção ativa, bem como práticas destinadas a obstar a ação fiscalizatória do Estado (art. 5º).

Contra essas e outras condutas nocivas, no âmbito administrativo, a lei previu um processo sancionatório baseado no exercício da polícia administrativa. Dele podem derivar a obrigação de reparação do dano e de publicação de extrato da decisão condenatória, bem como a imposição de multa gravíssima, já que calculada a partir do faturamento bruto das pessoas jurídicas, descontados os tributos – ou, quando impossível, dosada entre R$ 6 mil e R$ 60 milhões.

A previsão de sanções potenciais graves não bastaria, porém, para produzir efeitos dissuasivos intensos. De fato, pouco adianta prever sanções exemplares se vige um clima de impunidade, não raro resultante da reconhecida incapacidade estatal de investigar e descobrir indícios de infrações complexas. É daí que se entende a inserção da leniência na Lei Anticorrupção. Sua função é dúplice.

Vírus de instabilidade

De um lado, a leniência gera um benefício ao Estado diante de infrações concretamente consideradas, pois, mediante acordo, as autoridades (no caso, a CGU) recebem informações e documentos para identificar os demais envolvidos na infração e para comprovar o ilícito. A prova da materialidade e da autoria é facilitada em favor da persecução estatal eficaz. Mas não é só isso. A leniência deflagra um efeito preventivo geral. Ao oferecer benefícios ao “infrator-amigo”, o Estado introduz um vírus de instabilidade nas relações entre potenciais infratores. Além de restar sob o risco constante de investigação e de punição por conta da ação ex officio do Estado, o infrator passa a contar com a incerteza do comportamento dos comparsas. A leniência gera um ambiente de dúvidas e incertezas sobre a “cooperação infrativa”. Abala a confiança entre os infratores. E isso se dá em virtude da regra conhecida como “first serve, first come”, ou seja, pela vedação de se celebrar uma segunda leniência caso já exista um acordo. A proibição de leniências cumulativas gera um estímulo à corrida pelo primeiro acordo, o que reforça a traição entre os infratores.

Embora os efeitos possam ser grandiosos, uma leitura da Lei Anticorrupção pode quebrar todo o otimismo! Nela, há problemas graves que desafiam a atratividade do sistema de cooperação entre infrator confesso e Estado. Em primeiro lugar, a lei não menciona os efeitos penais do acordo. Como já demonstrou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, a ausência de benefícios penais amplos pode ser fatal ao programa, pois o Ministério Público ganhará espaço para usar as leniências no intuito de obter condenações penais contra pessoas físicas (por exemplo, administradores das empresas), além de reparações por danos na esfera civil. Em segundo lugar, o programa de leniência não prevê a extinção da punibilidade administrativa, mas somente uma mera redução da multa em até 2/3. Note-se bem: a lei cria um limite máximo para o bônus, mas não garante um benefício mínimo!

Em terceiro lugar, a lei deixou de prever a leniência “plus”, ou seja, a possibilidade de se firmar uma segunda leniência ao longo do processo administrativo a respeito de uma infração ainda desconhecida pelas autoridades, hipótese em que se abriria uma exceção à regra do “first come, first serve”. E, em quarto lugar, a leniência não impede que o MP – com base no art. 19 da Lei Anticorrupção – ajuíze ação para determinar o perdimento de bens direitos ou valores, a suspensão ou interdição parcial das atividades da pessoa jurídica ou mesmo sua dissolução compulsória!

Ora, que pessoa jurídica confessaria uma infração para obter uma redução obscura no valor da multa administrativa que se lhe aplicaria, para se sujeitar a uma dissolução compulsória e para permitir a punição de seus administradores? A ideia de inserir a leniência no processo administrativo para apuração de atos lesivos a Administração Pública se mostrou inovadora, mas uma análise mais profunda da Lei Anticorrupção infelizmente revela que as contrapartidas do mecanismo dialógico criado dificilmente redundarão em benefícios para o desejado combate à corrupção no país, uma vez que elas não geram atratividade suficiente. Para os que estavam preocupados, um alívio! Não será dessa vez que o Estado passará a colaborar com o “inimigo”, mas não por falta de vontade sua.


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