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Reconhecimento de demandas estruturantes em sede de invasão de bens públicos
William Paiva Marques Júnior
04/04/2022
Em situações que envolvem a detenção irregular de bens públicos, afigura-se presente a necessidade de propositura de ação judicial de natureza estruturante, posto tratar-se de uma lide complexa por envolver a posse irregular de bem público por diversas famílias, afigurando-se imprescindível a intervenção do Poder Judiciário.
A situação se agrava quando o proprietário é um ente público, visto que o prejuízo à propriedade atinge não apenas a Administração Pública, mas toda a coletividade, beneficiada com a função social dos bens estatais. Em casos tais, tem-se a necessidade de proteção do bem público, o qual deve ser protegido, visto que interessa a toda a população, contrapondo-se o direito fundamental social à moradia dos particulares esbulhadores.
Adotando-se a delimitação conceitual de Owen Fiss [2] são estruturantes as decisões judiciais nas quais, a partir de um litígio que transcende o interesse individual e privado e, portanto, é de interesse público, se busca a reestruturação de determinada organização social ou política pública, com o objetivo de concretizar direitos fundamentais ou interesses socialmente relevantes.
A delimitação conceitual ora esposada amolda-se com precisão à casuística em debate uma vez que trata-se de litígio que transcende o interesse individual, envolvendo direitos fundamentais e interesses socialmente relevantes. Outrossim, a solução não se dá de forma concentrada, havendo a necessidade de intervenção institucional na salvaguarda dos direitos fundamentais das partes envolvidas.
Em diversas situações, mesmo tendo havido decisão jurisdicional favorável, não restou configurada colaboração efetiva das entidades envolvidas (em muitas oportunidades a própria Municipalidade), havendo, portanto a imprescindibilidade do resguardo da autoridade, efetividade e imperatividade das decisões judiciais.
Jurisprudência sobre invasão de bens e litígios de natureza estrutural
Sobre o tema, a jurisprudência firmada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[3], tem entendido que os litígios de natureza estrutural, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, tal qual se dá na hipótese em epígrafe.
Deve-se elucidar que as medidas ora propostas constituem-se em eficaz forma de prevenir ou repelir o esbulho dos bens públicos componentes do patrimônio estatal, resguardando-se o patrimônio público, o qual reverbera em benefícios coletivos para toda a sociedade, transcendendo ao viés meramente individual do regime de propriedade privada.
Tem-se, portanto, que nesse ponto, surge um conflito complexo entre a legítima proprietária (a Administração Pública) e os ocupantes, os quais devem ter sua dignidade preservada pelo Estado. Trata-se, portanto de um conflito complexo e multitudinário a ser devidamente analisado e enfrentado pelo Poder Judiciário, de acordo com o direito fundamental à propriedade e sua função social, perpassando pela moradia e a dignidade da pessoa humana.
Outrossim, é de se ressaltar a característica de imprescritibilidade dos bens públicos, ou seja, a absoluta impossibilidade de o patrimônio imobiliário público venha a ser adquirido por particulares tendo como causa fático-jurídica a prescrição temporal, ou seja, conforme o regime constitucional e legal em vigor, os bens públicos não podem ser objeto sequer de usucapião.
Ou seja, faz-se necessário suplantar a lógica processual tradicional a fim de garantir a ponderação adequada em torno dos direitos fundamentais envolvidos nos casos concretos.
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NOTAS
[1]Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela UFC. Professor Adjunto I do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil II (Direito das Obrigações) e Direito Civil V (Direito das Coisas) e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Metodologia do Ensino Jurídico, Direito Internacional e Metodologia da Pesquisa). Coordenador da Graduação em Direito da UFC (2014 a 2017). Assessor do Reitor da UFC. Foi Advogado Júnior da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), de 2008 a 2011. Professor do PPGD-UFC. E-mail: williamarques.jr@gmail.com
[2] FISS, Owen. The forms of justice. Harvard Law Review, vol. 93, n. 1, 1979. Disponível em: https://openyls.law.yale.edu/bitstream/handle/20.500.13051/422/The_Forms_of_Justice.pdf?sequence=2 . Acesso em: 22.02.2022
[3] Neste sentido, confira-se: ““CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE MENOR POR PERÍODO ACIMA DO TETO LEGAL. DANOS MORAIS. JULGAMENTO DE LIMINAR IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. IMPOSSIBILIDADE. QUESTÃO REPETITIVA QUE NÃO FOI OBJETO DE PRECEDENTE VINCULANTE. EXISTÊNCIA DE INÚMERAS AÇÕES CIVIS PÚBLICAS NO JUÍZO ACERCA DO TEMA. IRRELEVÂNCIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS HIPÓTESES AUTORIZADORAS DO JULGAMENTO PREMATURO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA QUE ENVOLVE LITÍGIO DE NATUREZA ESTRUTURAL. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. INCOMPATIBILIDADE, EM REGRA, COM O JULGAMENTO DE IMPROCEDÊNCIA LIMINAR DO PEDIDO OU COM O JULGAMENTO ANTECIPADO DO MÉRITO. PROCESSO ESTRUTURAL. NATUREZA COMPLEXA, PLURIFATORIAL E POLICÊNTRICA. INSUSCETIBILIDADE DE RESOLUÇÃO PELO PROCESSO CIVIL ADVERSARIAL E INDIVIDUAL. INDISPENSABILIDADE DA COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DO ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL NA CONSTRUÇÃO DE SOLUÇÕES PARA O LITÍGIO ESTRUTURAL, MEDIANTE AMPLO CONTRADITÓRIO E CONTRIBUIÇÃO DE TODOS OS POTENCIAIS ATINGIDOS E BENEFICIÁRIOS DA MEDIDA ESTRUTURANTE. NECESSIDADE DE PRESTAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL DIFERENCIADA E ADERENTE ÀS ESPECIFICIDADES DO DIREITO MATERIAL VERTIDO NA CAUSA, AINDA QUE INEXISTENTE, NO BRASIL, REGRAS PROCEDIMENTAIS ADEQUADAS PARA A RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS ESTRUTURAIS. ANULAÇÃO DO PROCESSO DESDE A CITAÇÃO, COM DETERMINAÇÃO DE INSTRUÇÃO E REJULGAMENTO DA CAUSA, PREJUDICADO O EXAME DAS DEMAIS QUESTÕES.1- Ação ajuizada em 25/01/2016. Recurso especial interposto em 28/05/2018. Atribuído ao gabinete em 09/12/2019.2- O propósito recursal é definir se, em ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima daquele fixado em lei, é admissível o julgamento de improcedência liminar ou o julgamento antecipado do pedido, especialmente quando, a despeito da repetitividade da matéria, não há tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em incidente de assunção de competência.3- Diferentemente do tratamento dado à matéria no revogado CPC/73, não mais se admite, no novo CPC, o julgamento de improcedência liminar do pedido com base no entendimento firmado pelo juízo em que tramita o processo sobre a questão repetitiva, exigindo-se, ao revés, que tenha havido a prévia pacificação da questão jurídica controvertida no âmbito dos Tribunais, materializada em determinadas espécies de precedentes vinculantes, a saber: súmula do STF ou do STJ; súmula do TJ sobre direito local; tese firmada em recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em incidente de assunção de competência.4- Por se tratar de regra que limita o pleno exercício de direitos fundamentais de índole processual, em especial o contraditório e a ampla defesa, as hipóteses autorizadoras do julgamento de improcedência liminar do pedido devem ser interpretadas restritivamente, não se podendo dar a elas amplitude maior do que aquela textualmente indicado pelo legislador no art. 332 do novo CPC.5- De igual modo, para que possa o juiz resolver o mérito liminarmente e em favor do réu, ou até mesmo para que haja o julgamento antecipado do mérito imediatamente após a citação do réu, é indispensável que a causa não demande ampla dilação probatória, o que não se coaduna com a ação civil pública em que se pretende discutir a ilegalidade de acolhimento institucional de menores por período acima do máximo legal e os eventuais danos morais que do acolhimento por longo período possam decorrer, pois se tratam de questões litigiosas de natureza estrutural.6- Os litígios de natureza estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual.7- Para a adequada resolução dos litígios estruturais, é preciso que a decisão de mérito seja construída em ambiente colaborativo e democrático, mediante a efetiva compreensão, participação e consideração dos fatos, argumentos, possibilidades e limitações do Estado em relação aos anseios da sociedade civil adequadamente representada no processo, por exemplo, pelos amici curiae e pela Defensoria Pública na função de custos vulnerabilis, permitindo-se que processos judiciais dessa natureza, que revelam as mais profundas mazelas sociais e as mais sombrias faces dos excluídos, sejam utilizados para a construção de caminhos, pontes e soluções que tencionem a resolução definitiva do conflito estrutural em sentido amplo.8- Na hipótese, conquanto não haja, no Brasil, a cultura e o arcabouço jurídico adequado para lidar corretamente com as ações que demandam providências estruturantes e concertadas, não se pode negar a tutela jurisdicional minimamente adequada ao litígio de natureza estrutural, sendo inviável, em regra, que conflitos dessa magnitude social, política, jurídica e cultural, sejam resolvidos de modo liminar ou antecipado, sem exauriente instrução e sem participação coletiva, ao simples fundamento de que o Estado não reuniria as condições necessárias para a implementação de políticas públicas e ações destinadas a resolução, ou ao menos à minimização, dos danos decorrentes do acolhimento institucional de menores por período superior àquele estipulado pelo ECA.9- Provido o recurso especial para anular o processo desde a citação e determinar que seja regularmente instruída e rejulgada a causa, está prejudicado o exame da alegada violação aos demais dispositivos legais do ECA indicados nas razões recursais.10 – Recurso especial conhecido e provido, para anular o processo desde a citação e determinar que sejam adotadas, pelo juiz de 1º grau, as medidas de adaptação procedimental e de exaurimento instrutório apropriadas à hipótese.”(STJ- REsp 1854842/CE, Relatora: Min. Nancy Andrighi, julgamento: 02/06/2020, DJe 04/06/2020) (Grifou-se)