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ADMINISTRATIVO
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Do poder da administração para impor unilateralmente alterações nas cláusulas dos contratos administrativos, de André de Labaudère
Revista Forense
07/12/2023
SUMÁRIO: I. Teses antagônicas. § 1º A tese afirmativa habitual. § 2º A tese limitativa de JÈZE. § 3° A tese negativa de L’HUILLIER. II. Os dados fornecidos pela jurisprudência. § 1º O poder de dar um fim prematuro à execução do contrato. § 2º O poder de impor modificações na extensão ou nas modalidades de execução das obrigações do co-contratante. III. Discussão e apreciação crítica. § 1° Apreciação da tese de L’HUILLIER. § 2º Apreciação da tese de JÈZE. § 3° Pesquisa de uma definição do alcance do poder de modificação.
* É freqüente que os contratos administrativos – pelo menos aquêles que implicam uma colaboração com os serviços públicos, sob a forma de prestações de serviço pelo particular contratante – prevejam o direito para a administração de impor, unilateralmente, durante a execução de um contrato, certas alterações nas cláusulas inicialmente aceitas pelas partes.
É, por exemplo, freqüente que o caderno de encargos de uma concessão de serviço público inclua a possibilidade, para o outorgante, de prescrever, ulteriormente, extensões do serviço ou de proceder à rescisão da concessão, mediante ressarcimento, antes da expiração do prazo, e que num contrato de fornecimentos ou num contrato de transportes reserve a eventualidade de um aumento ou de uma diminuição da quantidade das provisões a serem entregues ou da tonelagem a ser transportada.
É principalmente nos contratos de obras públicas que se encontram tais estipulações convencionais; todos os cadernos de cláusulas e condições gerais das grandes repartições públicas contêm várias disposições que obrigam o empreiteiro a suportar, mediante compensações pecuniárias diversas, nelas regulamentadas (suplementações de preços, preços novos, etc.), o encargo das prescrições baixadas pelos agentes da administração, por meio de ordens de serviço, e modificando o conteúdo, a extensão ou o prazo de suas obrigações.1
Mas o direito que tem a administração de assim intervir na execução dos contratos administrativos para impor ao seu co-contratante seja novos encargos ou acréscimos, seja quaisquer alterações quanto às cláusulas que figuram no acôrdo primitivo, deverá limitar-se à hipótese de ter sido êle previsto no próprio contrato?
Existirá, ao contrário, no próprio silêncio do contrato, aquilo que geralmente se denomina “poder de modificação unilateral”, capaz de constituir um elemento da teoria geral dos contratos administrativos e demarcar, de um modo particularmente incisivo, a diferença que separa o regime jurídico do contrato administrativo do regime dos contratos de direito privado?
Êsse problema suscita, pelo menos de algum tempo a esta parte, na doutrina, no direito público francês, uma controvérsia. Muito embora o interêsse prático da questão haja diminuído pelo fato de a mesma já ter sido solucionada, freqüentemente, pelos próprios cadernos de encargos, como se acabou de dizer, é evidente que, por se tratar de aspecto assaz fundamental da teoria dos contratos administrativos, não se pode deixar de tomar partido a tal respeito. Esta discussão constitui o objeto do presente estudo.
I. AS TESES ANTAGÔNICAS
Até recentemente, os autores de direito público francês afirmavam, sem que se eleva se, sôbre êste ponto, uma voz discordante, que o poder de modificação unilateral constituía uma regra geral da teoria aos contratos administrativos. Essa tese afirmativa do poder de modificação tem sido, nestes últimos anos, vigorosamente contestada por certos autores.
Em nota publicada na “R. D. P.”, em 1945, GASTON JÈZE, cuja autoridade é inútil ressaltar nesta matéria, enuncia um conceito pelo menos limitativo, segundo o qual o poder de modificação só existiria em certos contratos administrativos devido à sua natureza particular (“R. D. P.”, 1945, pág. 257).
Mais recentemente, o Prof. L’HUILLIER, numa brilhante crônica, desenvolveu uma crítica cerrada à concepção habitual e sustentou a tese integralmente negativa da inexistência do pretenso poder de modificação em todos os contratos administrativos (“Os contratos administrativos assumem foros de lei na administração?”, Dalloz, 1953, “Chron”, página 87).
§ 1º A tese afirmativa habitual
Parece-nos justo qualificar de “habitual” a tese que vê no poder de modificação unilateral da administração um elemento da teoria geral dos contratos administrativos.
Sua expressão mais categórica é certamente aquela que fôra formulada – antes de sua reviravolta doutrinária que adiante descreveremos – por JÈZE em seus “Príncipes généraux du droit administratif” (t. IV, “Théorie générale des contrats de l’administration”). Enunciando, inicialmente, o princípio em si mesmo (“A administração tem o poder de aumentar ou de reduzir durante a execução do contrato a extensão das prestações de serviço a serem realizadas pelo contratante. O princípio é geral e vale para todos os contratos administrativos“, pág. 224), aquêle autor prosseguia com a aplicação do mesmo a propósito das diversas categorias de contratos, não sòmente na concessão de serviço público (págs. 225 e seg.) e no contrato de obras públicas (pág. 240: “O poder…existe sem que haja necessidade de inscrevê-lo nos documentos constitutivos do contrato”), mas também no contrato de fornecimento (pág. 258).
A exemplo ou depois de JÈZE, a tese do poder de modificação unilateral foi adotada pela generalidade dos autores modernos:2
Em nota ao Récueil Sirey, 1915-3-17 (apensa ao aresto C. E., 27 juin 1913, Ville de Toulouse), HAURIOU já escrevera: “Tôda operação administrativa é aleatória no sentido de que ela pode, no decorrer da execução; ser interrompida, retardada ou modificada por motivo de interêsse público. Por conseguinte, tôda convenção relativa a uma operação administrativa é um contrato aleatório”.
Em seu “Précis de droit administratif”, 4ª ed., 1943, pág. 620, BONNARD é ainda mais nítido: “Para os contratos de obras públicas, como para todos os contratos administrativos,…não se aplica estritamente a regra da imutabilidade contratual…Considera-se que a administração pode, a qualquer momento, vir a impor unilateralmente modificações nas cláusulas do contrato”.
Em seu “Traité élémentaire de droit administratif”, 6ª ed., 1951, pág. 559, o professor WALINE salienta, sob o título “Modificações unilaterais do contrato”, que o co-contratante, quer se trate de contratos ou de concessões, se expõe a ver as obrigações que êle contraíra agravadas por uma decisão unilateral da administração no próprio decorrer do período de execução”; e, em nota publicada na “R. D. P.” (1948, pág. 80), o mesmo autor escreveu, a propósito do contrato de engajamento militar: “É um contrato administrativo, cujas cláusulas são, por conseguinte, sempre modificáveis segundo as exigências do serviço”.
A mesma doutrina se encontra no “Traité de droit administratif”, de DUEZ e DEBEYRE (n° 1.262), e nós mesmos a adotamos em nosso “Traité élémentaire de droit administratif” (nº 801).3
Igualmente, ainda, em sua tese de doutorado (“Contribution à la théorie Générale des contrats administratifs”, Montpellier, 1945) e em seu recente estudo sôbre contratos administrativos no “Jurisclasseur administratif” (fasc. 511, ns. 213 e seg.), o professor PÉQUIGNOT desenvolve longamente a teoria da “mutabilidade do contrato administrativo” e declara que “todos os contratos administrativos são unilateralmente modificáveis, no interêsse do serviço público, muito embora nenhuma estipulação preveja expressamente o direito de modificação” (“Juriscl. adm.”, nº 225).
Os autores de estudos especiais consagrados aos diversos contratos administrativos seguem a mesma opinião. Vide, por exemplo: Para a concessão de serviço público, BLONDEAU, “Thèse Grenoble”, 1929; COMTE, “Thèse Paris”, 1934. Para o contrato de obras públicas, DELMAS, “Thèse Paris”. Para os contratos de ocupação do domínio público, AUBY, “Les contrats comportant occupation du domaine public”, Dal., 1953, “Chron.”, pág. 99. Para os contratos de agentes do poder público, WALINE, nota já mencionada. Para os contratos de fornecimento, ARRIGHI, “Essai sur le caractère administratif des marchés de fournitures”, “Thèse Paris”, 1945.
Quanto aos elementos constitutivos dessa teoria do poder de modificação unilateral, que certos autores denominam ainda teoria da mutabilidade do contrato administrativo ou da flexibilidade do caderno de encargos, são suficientemente conhecidos para que nos limitemos a relembrá-los sumàriamente:
a) o poder de modificação unilateral é considerado como sendo de ordem pública; a administração não pode renunciar, prèviamente, a exercê-lo (JÈZE, ob. cit., pág. 225; BONNARD, ob. cit., página 620);
b) o poder de modificação existente fora das estipulações do contrato, quando êste último o prevê, não o criando, entretanto, e apenas regulando suas condições de exercício, particularmente seus limites e suas conseqüências pecuniárias (JÈZE, ob. cit.).
Além disso, um tal poder tem seus limites e contrapartidas; a êsse respeito, a jurisprudência relativa aos limites e contrapartidas das modificações previstas pelo próprio contrato, e utilizável de modo geral, é bastante desenvolvida.
Os limites do poder de modificação são de duas ordens:
De uma parte, as modificações unilaterais só podem afetar as cláusulas do contrato que interessem ao serviço público e às suas necessidades (isto é, as prestações do co-contratante e suas modalidades de execução), com exclusão das cláusulas que regulam as relações de interêsses entre as partes (principalmente as cláusulas financeiras).
Por outro lado, a administração não pode utilizar o seu poder de modificação a ponto de impor ao contratante alterações excessivas, que ultrapassem um limite razoável, isto é, capazes de ocasionar a transformação do próprio objeto do contrato (por exemplo, transformar uma concessão de serviço público em uma “régie” disfarçada: C. E., 18 juillet 1930, Compagnie P. L. M. et autres, “R. D. P.”, 1931, pág. 142, concl. JOSSE) ou exceder as possibilidades técnicas ou econômicas do co-contratante; êste último critério está amplamente esclarecido, por exemplo, pela copiosa jurisprudência relativa, em se tratando de contratos de obras públicas, às noções de “obra nova” e de “transtôrno da economia geral do projeto” (C. E., 23 juin 1920, Briançon, página 626).
Quanto à contrapartida do poder de modificação, ela se encontra no princípio geral de que tôda modificação imposta ao co-contratante de modo a causar-lhe prejuízo, obriga a administração a indenizá-lo, a fim de restabelecer o equilíbrio contratual inicialmente previsto pela intenção comum das partes interessadas.
§ 2º A tese limitativa de JÈZE
É indiscutível que a opinião emitida por JÈZE em 1945 (nota publicada na “R. D. P.”, 1945, pág. 257) constitui de sua parte uma reviravolta doutrinária ou, pelo menos, uma notável inflexão de seu pensamento.
Sem dúvida, em seus “Príncipes généraux”, JÈZE observara que nos contratos de fornecimento “o poder (de modificação) da administração não precisa ser tão extenso nem enérgico” (como nas concessões e nos contratos de obras) e que “se pode mesmo indagar, às vêzes, se êle é absolutamente necessário” (página 258). Apesar disso, êle admitia a sua existência e declarava alhures, como já apontamos mais acima, que o princípio do poder de modificação “é geral e vale para todos os contratos administrativos” (ob. cit., pág. 224).
Ora, em sua nota de 1945, criticando sôbre êste ponto a opinião sustentada em sua tese por PÉQUIGNOT, JÈZE afirma categòricamente que “os poderes da administração de estender ou de reduzir a importância das prestações de serviço a serem feitas pelo contratante” só existem nos contratos de concessão de serviço público e nos contratos de obras públicas. Acrescenta que “êsses poderes especiais se explicam pela própria natureza de tais contratos”. Retomando, em seguida, o caso da concessão de serviço público, JÈZE afirma, segundo uma análise bem conhecida da concessão, que o poder da administração concedente para reorganizar o serviço público concedido nada mais é do que uma aplicação de “seu poder regulamentar em matéria de organização dos serviços públicos”. Conclui que “não cabe à administração modificar as cláusulas de um contrato livremente aceitas pelas partes”.
Em suma, segundo a opinião sustentada por JÈZE, em 1945, o poder de modificação unilateral não existe de maneira geral nos contratos administrativos. Só existe na concessão de serviço público e no contrato de obras públicas. Em tais contratos particulares, êle constitui o exercício do poder regulamentar em matéria de organização dos serviços públicos.
§ 3° A tese negativa de L’HUILLIER
Muito mais radical ainda do que o conceito exposto por JÈZE, em 1945, é a tese desenvolvida por L’HUILLIER em sua já citada crônica. Conforme êsse autor, a afirmação segundo a qual a administração disporia, na execução dos contratos administrativos, de um poder de modificação unilateral seria apenas uma afirmativa gratuita da doutrina, um “falso dogma proposto à fé dos juristas” e que não encontraria apoio algum na jurisprudência, nem correspondência alguma com as soluções positivas admitidas por essa última.
E L’HUILLIER considera – e é nisto que sua tese ultrapassa a de JÈZE e parece particularmente radical – que aquêle conceito é verdadeiro para todos os contratos administrativos inclusive para a concessão de serviço público.
Sua demonstração repousa sôbre dois argumentos reciprocamente complementares: em sua opinião, a doutrina corrente não pode invocar em seu apoio nenhum aresto de jurisprudência e, pelo contrário, poderão ser encontradas decisões que a desmentem expressamente.
Em primeiro lugar, L’HUILLIER observa que os autores sòmente citam, como ilustração do pretenso poder de modificação unilateral, o célebre aresto dos bondes elétricos de Marselha, de 11 de março de 1910, no qual o Conselho de Estado reconheceu que a administração impusera ao seu concessionário um serviço superior àquele que se achava previsto no caderno de encargos. Êsse aresto é o único que se possa assinalar, ao mesmo tempo, em matéria de concessão de serviço público e em matéria de contratos administrativos em geral. Ora, essa decisão não tem, segundo o autor, a significação que lhe atribuem e que os seus comentadores lhe vêm emprestando desde 1910, sem se darem ao cuidado de o reler, porquanto, na espécie, o poder reconhecido à administração concedente sòmente foi outorgado com base em um texto imperativo, particular à matéria a que dizia respeito.
Em segundo lugar e pelo contrário, L’HUILLIER enumera três arestos do Conselho de Estado cujas fórmulas desmentem categòricamente, em sua opinião, a existência de um poder de modificação unilateral nos contratos administrativos em geral e na concessão de serviço público em particular. Trata-se, de uma parte, do aresto de 11 de julho de 1941, hôpital-hospicede Chauny, no qual a Assembléia plenária do contencioso declarou que “não competia à administração modificar unilateralmente as condições de um mandato concluído com um arquiteto”, e, por outro lado, dos arestos de 23 de maio de 1936, Ville du Vésinet, e de 19 de janeiro de 1946, Ville de Limoges, nos quais o Conselho julgou que a administração não podia pretender impor à sua concessionária uma modificação das tarifas estabelecidas no instrumento de concessão.
Assim, a ausência de decisões em favor do pretenso poder de modificação unilateral e a nitidez das decisões contrárias mostram que êsse poder é um mito e, sempre segundo L’HUILLIER, “desmentem não sòmente a teoria que reconhece à administração contratante um poder geral de modificação unilateral, como também a tese intermediária segundo a qual êsse poder ficaria limitado aos elementos regulamentares de operações administrativas complexas, tais como a concessão de serviço público, que somente sob alguns de seus aspectos apresentariam o caráter de um contrato”.
L’HUILLIER admite, todavia, que, em certas condições limitadas e assaz precisas, a administração possa dispor de um certo poder de modificação unilateral fora das cláusulas explícitas do contrato. Assim acontece “quando a prática administrativa geralmente adotada pelas repartições públicas comporta a inserção sistemática, numa certa variedade de contratos, de cláusulas que reservem para a autoridade contratante o poder de pôr um fim ao contrato ou de modificar a extensão das prestações estipuladas em seu benefício”. E especialmente o caso do poder de rescindir prematuramente os contratos de obras públicas. Há, nesse caso, aplicação da regra estabelecida pelo art. 1.135 do Cód. Civil, segundo a qual as convenções obrigam a tôdas as conseqüências que o uso trouxer à obrigação segundo sua natureza. Como se vê, o poder de modificação que L’HUILLIER reconhece, de modo assim tão limitado, à administração é profundamente diverso, em seu alcance, fundamento e natureza, daquele que habitualmente é admitido: longe de sujeitar-se às características próprias do contrato administrativo, êle seria apenas uma eventual “cláusula implícita”, existindo sòmente nesta ou naquela categoria de contratos desde que fôsse consagrado pela prática; e naturalmente daí resultaria que tal poder não teria, por isso mesmo, nenhum caráter de ordem pública, podendo, inclusive, a administração deixar de exercê-lo mediante cláusula expressa do contrato.
II. OS DADOS FORNECIDOS PELA JURISPRUDÊNCIA
As críticas dirigidas por JÈZE e depois por L’HUILLIER ao conceito habitual renovam ou antes suscitam o problema da própria existência do poder de modificação unilateral na generalidade dos contratos administrativos. É êsse problema que se vai discutir mais adiante, com exclusão daquele que se refere aos limites do poder em que tão e daquele que diz respeito às conseqüências pecuniárías de seu exercício. Como já dissemos, a teoria habitual reconhece a existência de tais limites e conseqüências e sua definição não suscita problema fundamental.
O poder de modificação terá, porém, uma verdadeira existência própria? Sua existência, admitida pela maioria da doutrina, é confirmada pela jurisprudência? Ou, pelo contrário, não será ela formalmente desmentida por esta última?
Convém, a tal respeito, distinguir duas manifestações diferentes do poder em questão: de uma parte, o poder de pôr um fim prematuro à execução do contrato; de outra parte, o de impor ao co-contratante modificações na extensão ou nas modalidades de execução de suas obrigações.
§ 1º O poder de dar um fim prematuro à execução do contrato
Quando, em um contrato administrativo, fôr incluída a estipulação de um prazo determinado, poderá a administração cancelar livremente a execução do contrato antes do fim dêste prazo? Poderá ela, igualmente, cancelar o contrato antes que tenha sido efetuada a totalidade das prestações ou realizada a totalidade das operações ajustadas?
Sem dúvida, se reconhecermos tal poder geral de rescisão, achar-nos-emos apenas em presença de uma modalidade particular do direito de modificação unilateral; não teríamos o direito de deduzir daí que tal poder existe igualmente sob duas outras formas, como, por exemplo, aquela que se relaciona com as alterações impostas à extensão das obrigações do contratante.
Pelo menos não se poderá negar, entretanto, que existe nos contratos administrativos um poder de a administração se libertar unilateralmente de certas cláusulas contratuais e, por conseguinte, de provocar certas alterações nas disposições convencionais entre as partes.
A êsse respeito a doutrina corrente considera que, quando a execução do contrato administrativo se torna inútil ao interêsse geral, não correspondendo mais aos reclamos dos serviços públicos, a administração fica sempre livre, sob condição de compensações pecuniárias, para cancelar, imediatamente, o contrato mediante rescisão, apesar das estipulações que o mesmo possa conter no tocante à sua duração ou extensão. Julga que êsse poder não existe apenas na concessão de serviço público, sob a forma que JÈZE denomina de “extinção não-contratual, mediante ressarcimento” (rachat non contractuel), isto é, o direito de extinguir a concessão antes da expiração do prazo convencionado e fora das previsões do caderno de encargos, quando a administração considerar que o serviço público deve ser suprimido ou reorganizado (JÈZE, ob. cit., IV, pág. 231, e VI, pág. 1.211; BONNARD, ob. cit., página 764; WALINE, “Traité”, pág. 388; etc.), mas também, e de modo geral, em todos os contratos administrativos.
A mesma doutrina vê, nessa faculdade, a manifestação de um poder muito amplo de intervenção unilateral que distingue inteiramente a teoria do contrato, em direito administrativo, da teoria do contrato, em direito civil, onde tais faculdades só existem no quadro de disposições particulares (tal como o art. 1.794 do Cód. Civil, segundo o qual, em matéria de locação de trabalho, “o empregador pode rescindir, por sua simples vontade, o ajuste por empreitada, embora o trabalho já tenha sido iniciado”).
Ora, sôbre êste ponto, a jurisprudência parece consagrar, de modo assaz nítido, a existência dêsse poder geral da administração para cancelar unilateralmente a execução doa contratos administrativos.
Em sua crônica já referida, L’HUILLIER interpreta essa jurisprudência como sendo peculiar a certas categorias de contratos (especialmente aos contratos de obras públicas), para as quais ela se justificaria, sem que houvesse necessidade de invocar nenhum poder exorbitante da administração, pela consagração de certas “praxes” administrativas (v. supra); êle acrescenta que tal jurisprudência é “indecisa” porque certos arestos ligam o poder de rescisão ao “direito comum” (C. E., 13 février 1930, Min. des Trav. publ., pág. 180).
Assim procedendo, o referido autor reduz, de maneira injustificada, o alcance da jurisprudência em questão:
Em um aresto de 25 de fevereiro de 1925, “Demouchy”, pág. 121, o Conselho de Estado julgou que a rescisão de um contrato de obras públicas proferida pela administração, “não podendo basear-se no art. 1.794 do Cód. Civil, que não se aplica aos contratos de obras públicas”, só pôde ocorrer “em virtude do poder, pertinente à administração, de rescindir o contrato sob condição de indenizar o particular contratante”.
Essa decisão, citada, aliás, por L’HUILLIER, é relativa a um contrato de obras. Outras decisões, porém, ampliam o alcance do princípio:- O aresto de 9 de dezembro de 1927, “Gargiulo”, pág. 1.198, embora seja, ainda, relativo a um contrato de obras públicas, emprega uma fórmula muito mais significativa e geral; decide que a rescisão do contrato, proferida antes de realizar-se a circunstância que devia extingui-lo, “sòmente ocorreu em virtude do poder geral, pertinente à administração, de rescindir, se o julgar necessário, os contratos celebrados por ela para os serviçospúblicos, sob condição de indenizar o particular contratante”.
A generalidade dessa última fórmula (contratos celebrados para os serviços públicos) é, aliás, confirmada por decisões concernentes aos mais diversos domínios.
Em matéria de contratos de fornecimentos, são numerosos os arestos que reconhecem à administração o “direito de cancelar imediatamente a execução do contrato” (C. E., 9 novembro 1932, Société Weil Haerniger, pág. 941). Ver, também, a série de arestos proferidos após a primeira guerra mundial e consagrando, para a administração, o direito de rescindir os contratos de fornecimentos de guerra “em virtude da cessação das hostilidades e da diminuição das conseqüentes necessidades”. C. E., 9 janvier 1925, Chantiers de Saint-Nazaire, pág. 28; 8 juillet 1925, Chantiers de la Loire, pág. 656; 6 juin 1930, Chantiers du Midi, pág. 610. Já em 1916, em suas conclusões sôbre o famoso aresto do Gaz de Bordeaux, o procurador do govêrno, Sr. CHARDENNET, lembrava que “no caso de contrato de obras públicas ou de fornecimentos, a administração pode sempre rescindir o contrato, exceto para conceder uma indenização ao empreendedor ou ao fornecedor na hipótese de “não haver imputação de falta sob a responsabilidade de qualquer dêsses últimos” (cf. MALDIDIER, “La résiliation sans faute des marchés de fournitures, thèse Paris”, 1949).
Em domínio totalmente diverso daqueles que se referem aos contrato, de obras ou de fornecimentos, o Conselho de Estado ainda enunciou e aplicou o princípio do poder geral de rescisão administrativa. Queremos nos referir ao aresto de 3 juillet 1925, de Mestral (D. P., 1926-3-17, concl. CAHEN-SALVADOR, note TROTABAS), relativo à rescisão de um contrato pelo qual a administração havia concedido por arrendamento uma fazenda-modêlo e encarregado o contratante da direção dessa última; o Conselho de Estado julgou que, na espécie, não só podia cogitar da rescisão – sanção prevista no contrato – na ausência de falta suficientemente grave – mas que competia à administração, em virtude de seus poderes gerais, de pôr um fim, mediante compensação eventual, à execução do contrato”.
Deve-se, portanto, considerar como princípio geral consagrado pela jurisprudência, e não como regra particular a certos contratos e que seria fundada sôbre as “praxes” próprias a esta ou àquela repartição pública, o direito, pertinente à administração, de cancelar, antes do término que pôde ser estipulado e apesar das cláusulas do contrato, a execução dêste último.4
Êsse poder surge como competência unilateral, e por êle a administração não se deixa vincular pelas disposições de prazo que possam ter sido incluídas no contrato, ou, por outras palavras, ela poderá impor uma alteração nessas disposições. Tal competência não se limita a certos contratos, quer de obras públicas, quer de concessão de serviços públicos. Enfim, a jurisprudência parece reconhecer que a administração tem o poder discricionário de apreciar em que casos o contrato se torna inútil ao serviço público; ver, sôbre êste ponto, a fórmula já mencionada do aresto Gargiulo: “Se ela (a administração) o julgar necessário”; veja-se também a decisão: C. E., 16 de nov. 1917, Assoc. des éleveurs calédoniens, pág. 731: “Nenhuma disposição de lei obriga os ministros a motivarem as decisões que derem lugar à rescisão dos contratos de fornecimentos, sob pena de nulidade das referidas decisões”.
§ 2º O poder de impor modificações na extensão ou nas modalidades de execução das obrigações do co-contratante
No que concerne ao segundo aspecto da questão, o conceito habitual do poder de modificação é confirmado pela jurisprudência? Ou será apenas uma afirmação gratuita dos autores? Ou, ainda, semelhante conceito se acha formalmente desmentido pelos arestos?
a)Jurisprudência relativa à concessão de serviço público. Admite-se, geralmente, que o poder para a administração concedente de impor ao concessionário de serviço público modificações na organização do serviço prevista no caderno de encargos foi consagrado pelo Conselho de Estado, no célebre aresto de 21 de março de 1910, Compagnie générale française detramways (“R. D. P.”, 1910, pág. 270, note JÈZE; S. 1911-3-1, conel. L. BLUM, note HAURIOU). Nessa decisão, o Conselho de Estado julgou, como se sabe, que o prefeito de Bouchesdu-Rhône impusera ao concessionário dos tramways de Marselha um serviço superior àquele inicialmente previsto pelo caderno de encargos da concessão. Consagrava, assim, uma reviravolta completa de jurisprudência em relação à decisão de 23 de janeiro de 1903, Cheminde fer économique du Nord, na qual, sôbre a mesma questão e em condições exatamente idênticas, êle havia adotado a solução oposta e declarado que o concedente estava rigorosamente sujeito ao caderno de encargos.
Até aqui a doutrina parecia absolutamente unânime para reconhecer no aresto de 1910 um alcance geral em matéria de concessão de serviço público, isto é, para interpretá-lo como implicando o direito de qualquer concedente em reorganizar o serviço durante o andamento da concessão, apesar das disposições do caderno de encargos.
Em sua crônica já citada, L’HUILLIER põe em dúvida essa interpretação, negando-lhe a exatidão; e não se pode deixar de reexaminar essa questão clássica porque o aresto de 1910 é finalmente o único que se costuma citar a êsse respeito.
Tôda a argumentação de L’HUILLIER repousa sôbre a constatação de que, para reconhecer à autoridade administrativa o poder de impor ao concessionário uma modificação do serviço concedido, o procurador do govêrno L. BLUM e o próprio Conselho de Estado em seu aresto se apoiaram expressamente na existência de um texto próprio à matéria dos caminhos de ferro de interêsse local, a saber, o art. 38 do “R. A. P.” de 6 de agôsto de 1881, que dá ao prefeito o poder de “determinar a escala de serviço dos trens”. O essencial da argumentação de L. BLUM gira efetivamente em tôrno da interpretação e do alcance dêsse texto5 e tudo quanto o Conselho de Estado julgou em seu aresto foi que “o decreto do prefeito foi tomado no limite dos poderes que lhe são conferidos pelo “R. A. P.” de 1881… os quais implicam para a administração o direito… de prescrever as modificações e os acréscimos necessários, etc.” Assim segundo L’HUILLIER, o aresto de 1910 não teria absolutamente o alcance que lhe atribuem, em continuação aos seus primeiros comentadores, JÈZE e HAURIOU; seria apenas a aplicação de um texto particular expresso em matéria determinada, a dos caminhos de ferro de interêsse local.
Essa argumentação pode, à primeira vista, parecer perturbadora. Pensamos, todavia, que ela não é decisiva; e que é legítima a interpretação habitualmente dada ao aresto, no sentido de lhe atribuir um alcance que não úó ultrapassa a matéria em que interveio como a própria aplicação do texto em causa.
Parece, com efeito, que muito embora o procurador do govêrno e o Conselho de Estado se tenham baseado essencialmente na existência de um texto, êsse texto não comportava de forma alguma, em seus têrmos, o reconhecimento de um poder para a administração de modificar contratos concluídos com concessionários. Nela, apenas se reconhecia ao prefeito a competência para “determinar a escala de serviço dos trens”, mas tôda a questão era precisamente de saber se êsse poder de regulamentação do Serviço público, consagrado pelo decreto de 1881, implicava o direito de modificar unilateralmente um caderno de encargos que serviu de base para um acôrdo contratual.
Foi essa questão que o Conselho de Estado respondera negativamente em 1903, ao decidir que o poder do prefeito “devia ter sido conciliado com o caderno de encargos” e que “êste último só pode ser modificado pelo acôrdo recíproco das partes”.
A essa mesma questão o aresto de 1910 respondeu, ao contrário, pela afirmativa. Não é, portanto, ilegítimo considerar, como se fêz até agora, que aquilo que o Conselho de Estado julgou em 1910, contràriamente ao que julgara em 1903, foi que o poder pertinente à autoridade administrativa – seja em virtude de textos particulares, tais como o decreto de 1881, ou seja em virtude de sua competência geral para fixar a organização dos serviços públicos – implica o poder de modificar, por conseqüência, as disposições dos contratos de concessão já concluídos. Acrescentaremos que essa interpretação do sentido e do alcance do decreto de 1910 não é sòmente o fruto de comentadores estranhos ao Conselho de Estado; é igualmente aquela que o procurador do govêrno, Sr. CORNEILLE, desenvolvera em 1918 perante o Conselho, no caso do Gaz d’éclairage de Poissy (“R. D. P.”, 1918, pág. 237): “A concessão não modifica a natureza do serviço concedido; êle permanece um serviço público. Dessa idéia já deduzistes, em decisões recentes (11 mars 1910, Compagnie générale des tramways), essa conseqüência razoável de que a organização do serviço é feita exclusivamente pela administração… e que, por conseguinte, essa organização poderá ser modificada a qualquer instante, conforme as necessidades sociais e econômicas do momento”.
Essa jurisprudência relativa ao poder do concedente de modificar unilateralmente as regras de organização do serviço público concedido deverá ser considerada como contestada em si mesma pelas decisões do Conselho de Estado relativas à imutabilidade das tarifas da concesão?
Parece que a jurisprudência do Conselho de Estado não reconhece à administração o poder de impor ao concessionário a modificação da tarifa das prestações prevista no instrumento de concessão (ver, a êsse respeito, os arestos de 23 de maio de 1936, Commune du Vésinet, pág. 591, e de 19 de janeiro de 1946 Ville de Limoges, pág. 15, citados por L’HUILLIER, aos quais se pode acrescentar o de 16 de maio de 1941, Commune de Vizille, pág. 93).
Ora, a tarifa faz parte das cláusulas concernentes à organização do serviço, sendo-lhe, em geral, reconhecida uma natureza regulamentar. Eis por que muitos autores consideram que o concedente deve ter o direito de impor unilateralmente sua modificação, se isto fôr julgado necessário (JÈZE,. ob. cit., pág. 550; BONNARD, ob. cit. pág. 723; COMTE, thèse précitée, pág. 79). Êsse conceito doutrinário parece bem destacado pelo Conselho de Estado.
Não pensamos, entretanto, que a jurisprudência relativa às modificações da tarifa das prestações deva ser interpretada como um abandono geral dos princípios expostos no aresto de 1910. Pensamos que o seu alcance se restringe precisamente no domínio particular – e bastante delicado – da tarifa do serviço concedido.
É certo, com efeito, que se, por um lado, a tarifa constitui, por sua aplicação aos consumidores ou beneficiários, um elemento da regulamentação do serviço, nem tampouco deixa de ser o modo de remuneração do concessionário e, nestas condições, se relaciona às vantagens financeiras consentidas ao concessionário pelo instrumento de concessão. Tem, assim, um duplo caráter.
É difícil traduzir por uma qualificação jurídica êsse duplo caráter, embora certos autores hajam tentado fazê-lo, ao proporem que se vislumbre aí um elemento que sòmente seria regulamentar e sujeito a modificação unilateral, no tocante às relações com os consumidores ou beneficiários, e não no que se refere às relações entre concedente e concessionário (ver, a êsse respeito, BLAEVOET, “Des modifications apportées au régime des distributions d’energie électrique”, “R. D. P.”, 1926 pág. 53).
Em todo caso, para resolver a questão da modificação das tarifas, a jurisprudência faz prevalecer o caráter de regulamentação das relações financeiras sobre o da regulamentação do serviço. Daí se conclui que, por serem cláusulas imutáveis em todo contrato as vantagens financeiras do co-contratante, a tarifa do serviço concedido só pode ser revista de comum acôrdo. Talvez essa jurisprudência seja criticável. De qualquer forma, não nos parece que deva ser interpretada como implicando a negação de qualquer poder do concedente para modificar as normas de organização do serviço, tais como o caderno de encargos as estabelecera.
b) Jurisprudência relativa aos contratos administrativos, excluída a concessão de serviço público. Exceção feita da concessão de serviço público, a jurisprudência consagra ou desmente o poder da administração de acarretar unilateralmente modificações nas cláusulas do contrato, aumentando ou diminuindo, por exemplo, a extensão das prestações do empreendedor ou do fornecedor, ou modificando um ou outro elemento da situação do agente recrutado por contrato?
Para resolver tal questão, não basta referirmos o caso da concessão de serviço público e invoquemos o aresto dos tramways de Marseille, porquanto, segundo uma opinião geralmente aceita e bem conhecida, a natureza mista do ato de concessão poda explicar que as intervenções da administração apenas constituem o exercício do poder regulamentar no tocante a cláusulas não contratuais, explicação que não é válida para os outros contratos administrativos.
Além disso, não é mais lícito enumerar indiferentemente tôdas as medidas baixadas nelas autoridades administrativas e suscetíveis de provocar repercussões e acarretar modificações na situação do co-contratante. PÉQUIGNOT traçou um quadro das diversas modificações indiretas que podem resultar, para a situação dos co-contratantes, das múltiplas medidas legislativas, regulamentares ou individuais suscetíveis de serem baixadas pelos poderes públicos e englobadas na denominação geral de “intervenções de autoridade pública” – faits du prince (“Juriscl. adm.”, fasc. 511, ns. 243 e seg.). É evidente que tôdas essas intervenções, quaisquer que sejam suas repercussões sôbre os contratos administrativos, não poderiam ser indiferentemente ligadas ao exercício do poder de modificação unilateral, sendo errônea a inclusão que certos autores fazem de tais intervenções sob essa rubrica (ver, por exemplo, VEGLERI, “Des modifications apportées par l’administration à ses contrats”, “thèse Paris”, 1927).
Devemos, a tal respeito, afastar da discussão não sòmente as medidas baixadas por autoridades públicas diferentes da administração contratante, mas também as medidas baixadas por esta última quando, embora não visem a modificar diretamente o contrato, apenas o afetem indiretamente. É evidente que, quando os poderes públicos prescrevem, em tempo de guerra, medidas de escurecimento que tenham por conseqüência reduzir o consumo de eletricidade de uma cidade abaixo do mínimo garantido ao fornecedor de energia elétrica (C. E., 4 mai 1949, Ville de Toulon, pág. 487), aí se trata da repercussão de uma medida administrativa sôbre os contratos, não se podendo, todavia, ver nisso uma competência de modificação dos contratos administrativos. Igualmente nos parece que, quando a própria administração que outorgou uma concessão de limpeza pública ocasiona perturbações na situação de seu concessionário, quer executando uma obra pública ou baixando uma medida de polícia, não se trata, nesse caso, do exercício de um poder pròpriamente dito de modificação unilateral do contrato. Demasiado freqüentes têm sido as tentativas para ver, em intervenções dêsse gênero, exemplos do poder de administração para introduzir alterações nas obrigações do co-contratante. Sòmente devemos escolher, como argumentos válidos, as decisões individuais tomadas pela administração contratante, a respeito de seu co-contratante, e com o objetivo especial de modificar, num ponto qualquer, o conteúdo de suas obrigações contratuais.
Limitada a êsse quadro, a jurisprudência utilizável é incontestavelmente escassa, nelas duas razões que se seguem. A primeira razão é, como já indicávamos no início dêste estudo, a de que o poder de prescrever alterações durante a execução do contrato se acha freqüentemente previsto no próprio contrato, de sorte que as decisões de jurisprudência no assunto nada mais são, na maioria dos casos, do que a aplicação de dispositivos convencionais. Assim acontece, particularmente, em matéria de contratos de obras públicas, onde, entre os inúmeros arestos relativos às alterações prescritas pelo concedente, dificilmente se encontrariam outros que não consistissem na aplicação das cláusulas do contrato. L’HUILLIER faz notar, em sua crônica, que “essa precisão habitual dos contratos administrativos explica a raridade das decisões de jurisprudência, que negaram à administração um poder de modificação unilateral”. Ela explica, outrossim, já se vê, a raridade das que o consagraram. A segunda razão da raridade dos arestos utilizáveis é a de que muitas vêzes os litígios na matéria se apresentam sob a forma de simples reclamações de indenização por parte de co-contratantes, que executaram as prescrições unilaterais da administração; embora haja exemplo em caso semelhante – como veremos mais adiante – é raro que o Conselho de Estado dê a conhecer sua opinião sôbre a legitimidade da medida baixada. Na maioria dos casos, êle se limita a estatuir sôbre a indenização, sem determinar que se trata da reparação de uma falta da administração ou da compensação pecuniária de uma prescrição lícita, porém prejudicial.
É, entretanto, possível enumerar um certo número de decisões assaz explícitas, em matéria de contratos de fornecimentos. Nesse assunto, além de numerosos arestos que dão conta de alterações prescritas pela administração, e que, de fato, foram suportadas pelo fornecedor, mas que só se referem às conseqüências pecuniárias dessas alterações e, por conseguinte, não nos parecem muito convincentes (ver, p. ex., C. E. 5 janvier 1907, Galland – Leverrier, pág. 7: diminuição das quantidades previstas no contrato; 2 avril 1909, Levesque, página 395: indenização por modificação, decorrente de uma decisão do ministro, dos processos de desinfeção previstos pelo caderno de encargos; 14 décembre 1921, Benedic, pág. 1.052: indenização a um fornecedor obrigado a entregar quantidades excedentes do máximo previsto pelo caderno de encargos; 21 novembre 1923, Giboin, pág. 746: indenizações por despesas de lavanderia e de desinfeção não previstas no contrato; 23 juillet 1924; Société des atéliers de la Loire, pág. 718: prescrições da administração que ordenaram o retardamento dos fornecimentos) – podemos enumerar algumas decisões, nas quais o Conselho de Estado parece reconhecer à administração, nos contratos de fornecimentos, o direito de impor ao fornecedor aumentos ou diminuições da quantidade das entregas, sem que nenhuma disposição do caderno de encargos haja previsto tal poder. É verdade que êsses arestos, principalmente o primeiro, são muito antigos, mas, como observa PÉQUIGNOT (ob. cit., n° 225), são, de algum modo, bastante significativos, pois pertencem a uma época em que a noção da imutabilidade contratual era particularmente forte.
No aresto Moreau, de 1° de fevereiro de 1829, pág. 28, o Conselho de Estado concede uma indenização a um fornecedor considerando que o ministro da Guerra tinha o direito de substituir por fogões econômicos os fogareiros e os fogões de chaminés das casernas e de reduzir, em conseqüência, a quantidade doscombustíveis a ser fornecida às tropas aquarteladas, mas que essa medida de economia, não tendo sido objeto de nenhuma cláusula ou ressalva no contrato… a redução não pudera entrar no cálculo da administração contratante… (indenização)”.
Uma decisão menos antiga, Olmer, 14 novembre 1902, pág. 665, é igualmente significativa: “Das informações constantes do processo, resulta que o montante dos fornecimentos exigidos dos requerentes… ultrapassou o triplo do volume em vista do qual foi estabelecido o contrato, de acôrdo com a intenção comum das partes e que uma tal desproporção, que não se pode explicar senão pela satisfação dada a novas necessidades, está em contradição manifesta com as indicações aproximadas, que constituíram um dos elementos essenciais do contrato; que, assim sendo, ela constitui uma verdadeira falta de previsão, cujas conseqüências danosas são de natureza a dar em favor dos requerentes um direito a ressarcimento; e daí se conclui que, embora o ministro não fôsse obrigado a lhes conceder a rescisão do contrato, não poderia recusar-se a indenizá-los em face da entrega de uma quantidade de fornecimentos excessivamente superior àquela que o contrato, corretamente interpretado, colocava sob a responsabilidade dos fornecedores”.
Tais decisões mostram que a noção do poder de modificação, mesmo fora da concessão de serviço público, não é, como se pretendeu, uma opinião puramente teórica, desprovida de qualquer apoio jurisprudencial. Mas, é preciso reconhecer que várias decisões, algumas das quais bem recentes, do Conselho de Estado, em matéria de contratos de fornecimento, tomam um rumo muito diferente daquele que acabamos de indicar e nos obrigarão a procurar um conceito dos poderes da administração mais sutilmente diferençado do que aquêle que habitualmente aceitamos.
Aludimos, com isso, a tôda uma jurisprudência do Conselho de Estado relativa à hipótese de que, num contrato de fornecimento, ou num contrato de transporte, a administração decida diminuir a quantidade de fornecimento ou a da tonelagem previstas no contrato. Podemos citar vários arestos, nos quais o Conselho de Estado declara muito nitidamente que, em semelhante caso, a responsabilidade da administração se acha empenhada por omissão ao contrato ou inadimplemento de suas obrigações. Num aresto, de 4 de abril de 1940, Mayer et Lage, pág. 392, o Conselho de Estado declara que o govêrno, não tendo dado senão 1.600 toneladas para transportar, em vez de 3.000, a sua responsabilidade se acha em jôgo pela evidência de sua omissão ao contrato. De igual modo, no aresto Barré, de 26 de janeiro de 1938, pág. 89 (“Não fornecendo o mínimo de tonelagem prevista no contrato, a colônia do Niger desprezou suas obrigações contratuais e, por esta razão, sua responsabilidade está comprometida”). Da mesma maneira, ainda, um aresto de 30 de outubro de 1951, Société Citroën, pág. 507, a propósito de um contrato de fornecimento abrangendo o equipamento de 83 veículos, o Conselho de Estado julga que “a sociedade tem razão em alegar que, restringindo a realização do contrato a 44 veículos, o ministro do Interior deixou inteiramente de executar suas estipulações e que, nestas condições, a sociedade tem direito a uma indenização pelo não-cumprimento, pelo Estado, de certas obrigações contratuais”.
III. DISCUSSÃO E APRECIAÇÃO CRÍTICA
Em face de uma jurisprudência que se revela, como acabamos de ver, rara no tocante a vários aspectos do problema e de interpretação às vêzes bastante difícil, que apreciação poderemos fazer, a respeito das diversas teses ora analisadas?
§ 1° Apreciação da tese de L’HUILLIER
Conforme deixamos já entrever, ao tratarmos da jurisprudência, a tese sustentada, aliás, com muito vigor e entusiasmo por L’HUILLIER nos parecia excessiva.
“Os contratos administrativos assumem foros de lei para a administração?” – indaga o autor no próprio título de seu estudo.
Que exista uma fôrça obrigatória do contrato administrativo relativamente à administração, eis aí uma coisa certa, e que ninguém nega; pois ninguém considera a existência de uma certa mutabilidade do contrata administrativo como uma negação pura e simples de sua fôrça obrigatória.
Parece, todavia, – e os elementos jurisprudenciais que analisamos, por dispersos que sejam, parecem confirmá-lo, que, nos contratos administrativos, a administração não se acha tão vinculada de modo tão absoluto quanto os particulares nos contratos civis, de sorte que não possa dispor, pelo menos sob certos formas e em certas condições, senão da faculdade de modificar as disposições do contrato, de maneira geral, absoluta e discricionária, pelo menos daquilo que, por ora, nos contentaremos de chamar um certo poder de intervenção unilateral.
Isto é suficiente, pelo menos, para que sejamos obrigados a abandonar a idéia – a que nos conduz a argumentação de L’HUILLIER – de uma imutabilidade do contrato administrativo, análoga à imutabilidade do contrato civil.
§ 2º Apreciação da tese de JÈZE
A opinião exposta por JÈZE, em 1945, não nos pode mais satisfazer. Ela comporta, aliás, uma certa obscuridade devida ao laconismo de uma nota muito breve, na qual o autor não pôde desenvolver suficientemente suas explicações.
Como já dissemos mais acima, o pretenso poder de modificação sòmente existe, segundo JÈZE, em duas categorias de contratos administrativos, a concessão de serviço público e o contrato de obras públicas, e se explica, aí, pela natureza jurídica própria dêsses contratos. Êsse pretenso poder de modificação não é, na realidade, senão o exercício do poder regulamentar, em matéria de organização dos serviços públicos.
Essa opinião de JÈZE seria clara se visasse apenas à concessão de serviço público. Sabe-se, com efeito, que a concessão é geralmente considerada pela doutrina e, pelo menos, por certos procuradores do govêrno junto ao Conselho de Estado (concl. Odent sous C. E. 5 mars 1943, Compagnie générale des eaux, D. 1944, J. 121) como sendo um ato misto, e que também se analisa habitualmente o poder da administração para impor modificações ao concessionário como sendo o exercício do poder regulamentar, no tocante, exclusivamente, às cláusulas regulamentares da concessão.
Essa análise, entretanto, é ordinàriamente considerada como peculiar à concessão de serviço público, porque esta última contém cláusulas que dizem respeito diretamente à situação dos consumidores ou beneficiários quanto ao serviço, dando assim a impressão de terem um alcance geral e uma natureza regulamentar.
Ao assemelhar, do ponto de vista de sua natureza jurídica, o contrato de obras públicas à concessão de serviço público, JÈZE vem lançar uma confusão nessa análise, porque, ao nosso ver, o contrato de obras (trata-se, bem entendido, da empreitada e não da concessão de obra pública, a qual é assemelhável à concessão de serviço público), nunca foi definido como sendo um ato de natureza mista.
É verdade que isto fica, sem dúvida, esclarecido pela teoria sustentada por JÈZE, em seus “Príncipes généraux” (IV, pág. 157), no que concerne à natureza jurídica do caderno de encargos dos contratos administrativos em geral. Nesse seu trecho, JÈZE enuncia a distinção das cláusulas regulamentares (as que se referem à organização do serviço) e das cláusulas contratuais, como sendo aplicável, de um modo geral, a todos os contratos administrativos (embora êle restrinja os seus exemplos apenas à concessão de serviço público). Mas, se assim ocorre, não vemos por que seria a natureza própria da concessão de serviço público e do contrato de obras que limitaria, nesses contratos, os poderes de modificação da administração; é claro, por exemplo, que, num contrato administrativo de recrutamento de agente público, as cláusulas relativas às obrigações do agente oferecem, muito mais do que num contrato de obras, um exemplo de disposições relativas à organização do serviço público.
§ 3° Pesquisa de uma definição do alcance do poder de modificação
A análise dos diversos elementos jurisprudenciais, que acima relatamos, nos leva a pensar que, embora se possam encontrar aí manifestações de um certo poder de modificação unilateral, êsse poder tem um alcance mais limitado do que, em geral, parece lícito admitir.
Quando, em geral, se enuncia a existência dêsse poder, dá-se a impressão de apresentá-lo como uma prerrogativa geral da administração, no domínio contratual um privilégio existente em si e desligado, de qualquer modo, de uma idéia precisa que lhe sirva de fundamento.
Atribui-se-lhe, sem dúvida, um fundamento geral, isto é, as necessidades dos serviços públicos e o caráter mutável de suas exigências. Mas, uma vez estabelecido êsse fundamento inicial e geral, o poder de prescrever ao co-contratante alterações em suas prestações surge, em seguida, como uma dedução que prevalece, doravante, livremente, sem subordinar-se mais a uma idéia precisa e, por conseguinte, sem ficar limitada por essa mesma idéia, os limites sendo apenas, como já lembramos mais acima, a impossibilidade de infringir certas categorias de cláusulas contratuais e de exceder as possibilidades razoáveis do co-contratante.
Relacionando, pelo contrário, o poder de modificação a fundamentos mais precisos, é possível atribuir-lhes limites que estejam mais de acôrdo com os dados da jurisprudência. Dêste modo, seremos levados, como veremos, a tomar em consideração distinções entre diversas categorias de contratos administrativos, não apenas conforme sua natureza jurídica, mas de conformidade com o seu objeto; e tais distinções nos conduzem à conclusão de que, se os poderes da administração não são limitados a certos contratos, o seu alcance deve ser menor em certas categorias do que em outras.
Que idéias são, pois, suscetíveis de servir de fundamento direto e preciso aos poderes da administração?
1°) Uma primeira idéia é a da competência exclusiva das autoridades administrativas para organizar o próprio serviço público, fixar e eventualmente modificar suas normas de funcionamento. Ninguém contesta essa idéia, e ela tem sido freqüentemente divulgada para que seja necessário insistir sôbre êste ponto.
Ora, entre os contratos administrativos alguns existem que, como se sabe, comportam uma participação direta do co-contratante no funcionamento do serviço público, nos quais o próprio objeto das prestações do co-contratante é de fazer funcionar o serviço público ou de colaborar para o seu funcionamento.
Nesses contratos, o poder da administração de trazer modificações às obrigações do co-contratante encontra um fundamento direto e preciso; tal poder não é senão o reflexo, a própria manifestação do poder da administração em face do próprio serviço público.
Apoiando-se nesse fundamento, o poder de modificação deve ter nesse tipo de contratos um alcance muito geral.
O caso típico é naturalmente o da concessão de serviço público. É inútil lembrar, pois, que se tornou de tal modo banal essa observação, que o poder do concedente, consagrado pela jurisprudência no aresto dos tramwaysde Marseille (v. supra), nada mais é do que a expressão dos poderes de que é detentora a administração no tocante ao próprio serviço público.
É verdade que êsse poder é, muito freqüentemente, apresentado como possuindo, ao mesmo tempo, um fundamento de técnica jurídica, a saber: à natureza regulamentar das cláusulas modificáveis. Isso, porém, é, de certo modo um fundamento suplementar. E, pelo contrário, se as cláusulas ditas contratuais do instrumento de concessão são imutáveis, não basta dizer que tal acontece porque elas sejam contratuais; se as mesmas não são modificáveis é porque não se referem à organização e ao funcionamento do serviço e sim ao regulamento das relações de interêsses entre o concedente e o concessionário. A prova disso está em que existe, pelo menos, uma cláusula do ato de concessão à qual se reconhece sempre o caráter contratual, admitindo-se, outrossim, e em geral, que sua imutabilidade desaparece sempre que está em causa a organização do serviço público, a saber: a cláusula que fixa a duração da concessão. Admite-se, com efeito, em geral, que embora essa estipulação proíba ao concedente retirar prematuramente a exploração da concessão, a fim de substituir o concessionário por outro, não, priva, todavia, o concedente do direito de pôr um fim à própria concessão, mediante uma extinção não-contratual, por indenização, se êle julgar que deve suprimir o serviço público ou transformá-lo em régie.6
O contrato de agentes públicos recrutados por êsse modo constitui, ao nosso ver, um outro exemplo de contrato administrativo (quando, bem entendido, êle constitui um contrato administrativo pròpriamente dito, e não um contrato de direito comum), implicando uma participação direta do co-contratante no funcionamento do serviço público. Modificar as obrigações de serviço dêsses agentes é, ainda, modificar as normas de funcionamento do próprio serviço público; eis por que se deve, em nossa opinião, considerar que a administração dispõe de uma tal competência; exercendo-a, ela apenas usa de seu poder de reformar a organização e o funcionamento do serviço público.
É, sem dúvida, difícil apoiar esta opinião em decisões de jurisprudência. É fácil encontrar arestos relativos a modificações impostas à situação dos agentes contratuais; mas essas decisões não têm valor probante no que concerne à questão estudada, porque são de duas espécies. Em primeiro lugar, na maioria dos casos, trata-se de modificações impostas por via de regulamentações gerais à parte regulamentar e não contratual do estatuto dêsse pessoal, porque sua situação é, na realidade, mista, e compreende uma parte estatutária muito desenvolvida (ver, por exemplo, C. E., 2 mars 1949, Syndicat national, página 102: “Considerando que o poder público é sempre livre para modificar as disposições estatutárias que regem os agentes dos serviços públicos mesmo contratuais…”; 4 mars 1953, Syndicat national des ingénieurs, citado na “R. D. P.”, 1953, pág. 753, mesma fórmula). Em outros casos, trata-se de modificações impostas por via individual, mas decorrentes de aplicação de textos particulares formais; era o caso, por exemplo, de uma alteração do cargo e da competência para aplicar verbas, como sucedeu no famoso processo de Robert Lafregeyre, C. E., 26 janv. 1923, “R. D. P.”, 1923, pág. 243, concl. RIVET; igualmente no caso Michaux, C. E., 29 janv. 1947, “R. D. P.”, 1948, concl. THEIS, note WALINE, a propósito de um contrato de engajamento militar.
Citaremos, pelo menos, em apoio do conceito proposto, a opinião expressa em suas conclusões pelo procurador do govêrno, Sr. THEIS, no caso Michaux acima citado (a propósito da alteração na competência, para aplicar verbas, de um militar recrutado por contrato, alteração essa que o interessado considerava contrária às cláusulas de seu engajamento): “O chefe das F. F. L: permanecia senhor da competência para aplicação de verbas, que êle regulava segundo o interêsse do serviço. Essa disposição não teria figurado no texto especial à matéria, se os princípios gerais de organização e de funcionamento dos serviços públicos tivessem conduzido a uma solução idêntica”. Cf. a opinião de WALINE em sua nota, apensa a êste aresto: “Achamo-nos, portanto, em presença de um contrato; não, porém, de um contrato ordinário; é um contrato administrativo cujas cláusulas são, pois, sempre alteráveis segundo as exigências do serviço, devido ao fato de ter sido tal contrato celebrado com o objetivo de assegurar o serviço público da defesa nacional, para o qual o contratante do Estado vai colaborar de modo permanente”.
2º) Uma segunda idéia, bem vizinha da precedente e igualmente suscetível de fornecer um fundamento muito preciso aos poderes de intervenção por parte da administração, é a da competência da administração em face da obra pública. Princípio tão inconteste quanto o precedente, é o de que a administração tem uma competência exclusiva no tocante à obra pública; ela é o dono da obra e guarda sempre o poder de regulamentar o conceito e a orientação do trabalho. Em suma, a competência da administração, em face da obra pública, é da mesma ordem que sua competência para com o serviço público, no sentido de que a administração pode sempre reivindicar o domínio, tanto da primeira quanto do segundo. Chegou-se mesmo a sustentar que uma obra pública outra coisa não era senão um serviço público (R. CAPITANT, “La double notion de travail public”, na “R. D. P.”, 1929, pág. 507). Mesmo que essa definição pareça forçada, a obra pública continua sendo uma operação de interêsse geral, sôbre a qual é princípio inconcusso que a administração deve manter, em qualquer circunstância, o mesmo domínio de organização que exerce sôbre o serviço público.
Essa idéia fornece o mesmo fundamento preciso ao poder de modificação unilateral da administração tanto no contrato de obras públicas como na concessão de serviço público. O raciocínio é o mesmo: o objeto do contrato de obras públicas é a própria realização da obra pelo empreiteiro; por conseguinte, impor, durante a execução do contrato, modificações ao empreiteiro, nada mais é para a administração do que exercer sua competência exclusiva, no tocante ao conceito e orientação da própria obra pública; o poder de modificação no contrato de obras não é, também aqui, senão o reflexo do poder da administração em face da própria obra pública.
Êsses poderes de modificação nos contratos de obras públicas são pràticamente, como dissemos, previstos nos cadernos de encargos. Com base na idéia que acabamos de enunciar, êles devem ser considerados como existentes, mesmo na hipótese do silêncio do contrato. Aliás, parece que a generalidade dos autores admite essa existência, o próprio JÈZE ao apelar para uma pretensa natureza própria do contrato de trabalho e também, ao que tudo indica, L’HUILLIER, nos limites das praxes adotadas na matéria.
3°) Nos contratos administrativos que não visem a uma participação direta do co-contratante no serviço público ou na obra pública, mas apenas a uma colaboração indireta, sob a forma de prestações destinadas a satisfazer as necessidades do serviço, é que a noção de um poder de modificação unilateral cessa de encontrar um fundamento preciso. O tipo é o contrato de fornecimentos. Deve-se considerar que os poderes exorbitantes da administração não cabem mais aqui?
Vimos que a jurisprudência consagrava pelo menos o direito da administração de cancelar o contrato tornado inútil.
Dispõe, entretanto, a administração, como no contrato de obras, também do poder de impor aumentos, diminuições e quaisquer alterações nos fornecimentos a serem feitos?
A jurisprudência recente que citamos pode fazer com que duvidemos da possibilidade dessa competência. Uma leitura atenta, entretanto, talvez permita encontrar, em certas condições, um fundamento possível do poder de modificação unilateral. Confrontando-se o velho aresto Moreau, de 1829, já citado, com as decisões mais recentes, que consideram a diminuição, provocada pela administração, das quantidades de fornecimentos estabelecidas como uma omissão às suas obrigações, percebemos que, apesar das datas que os separam, as suas soluções não são necessàriamente contraditórias. No caso Moreau, o Conselho de Estado havia julgado que o “ministro da Guerra tivera o direito de substituir fogareiros e fogões de chaminés das casernas por fogões econômicos, reduzindo, por conseqüência, a quantidade dos combustíveis a ser fornecida às tropas aquarteladas”. Isto não é o mesmo que dizer, ainda aí, que o poder de modificação em face dos contratos, encontra seu fundamento nos poderes da administração, em face do próprio serviço público? Tratando-se de contratos que apenas comportem uma colaboração indireta nos serviços públicos, o poder de ocasionar alterações nas disposições do contrato sòmente tem fundamento quando tais alterações surgem como a conseqüência de transformações feitos na organização do próprio serviço público.
Se adotarmos êsse ponto de vista, a distinção, outrora proposta – aliás com o objetivo de deduzir conseqüências bem diferentes – entre os contratos que impliquem uma participação direta do co-contratante no funcionamento do serviço público e os contratos que tenham sòmente por objeto assegurar meios de funcionamento a tais serviços (RÉGLADE, “De l’application aux marchés de fournitures de la séparation des autorités judiciaires et administratives”, na “R. D. P.”, 1924, pág. 191), encontraria aqui a seguinte aplicação.
O verdadeiro fundamento dos poderes da administração sendo, em todos os casos, sua competência exclusiva de organização dos serviços públicos, a administração poderá sempre, na primeira hipótese, impor alterações às obrigações de seu co-contratante, porquanto, nesse caso, ela apenas estará usando de seus poderes com relação ao próprio serviço público na segunda hipótese, todavia, ela, só poderá fazê-lo quando as alterações do contrato forem a conseqüência do exercício de suas competências para reorganizar o próprio serviço.
Sem dúvida, seria bastante arriscado pretender que tais pontos de vista sejam, verdadeiramente, os mesmos que a jurisprudência entendeu fazer predominar. Pelo menos, ao nosso ver, êles parecem emanar de um conceito aceitável dessa mutabilidade, que talvez não tenha um alcance tão absoluto como, às vêzes, se pensa, porém, que permanece, entretanto, em nossa opinião, como sendo um elemento da teoria geral dos contratos administrativos.
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Notas:
* N. da R.: Tradução de GUILHERME DOS ANJOS, da “Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à L’étranger”, Janvier-Mars, 1954, nº 1, t. LXX.
1 Todos êsses C.C.G. (cadernos de encargos) prevêem especialmente as “alterações” das condições de execução prescritas pelos engenheiros (p. ex., C.C.G. des Ponts et Chausées, art. 10, 4º), a prescrição de “obras não previstas” (id., art. 29), os “aumentos ou diminuições do vulto das obras” (id., arts. 30 e 31), as prescrições de alterações concernentes à origem dos materiais (id., art. 26).
Ver sôbre todos êsses pontos: DELMAS, “Du pouvoir de l’administration de modifier les prévisions du marché de travail public”, “Thèse Paris”, 1945; MONTMERLE, “Commentaire du C. C. G. des Ponts et Chausées”, 4ª ed., 1951; PRIEUX, “Traité pratique du droit des travaux publics”; BONNEAU, “Le marché de travaux publics”, “Jurisclasseur adm.”, fascs. 520 a 522.
2 Em sua crônica, já citada anteriormente, L’HUILLIER apresenta a tese do poder de modificação unilateral como sendo própria (afora a doutrina primitiva de JÈZE) a alguns autores muito recentes. Após a tese de PÉQUIGNOT, tal concepção recentemente encontrou guarida pela primeira vez nos livros de ensino destinados aos estudantes de segundo ano. Trata-se do “Traité de droit administratif” de DUEZ e DEBEYRE e do “Traité élémentaire” (do autor do presente trabalho). As citações apresentadas no texto mostram, na realidade, que a tese do poder de modificação se acha muito mais generalizada na doutrina francesa.
3 Em seu “Précis de droit administratif”, o professor ROLLAND sòmente faz alusão ao poder de modificação unilateral a propósito da concessão de serviço público. No que diz respeito aos contratos de obras, êle se limita a assinalar que o próprio caderno de encargos prevê habitualmente esse poder.
4 Em certos contratos administrativos o poder de rescisão se baseia, ao mesmo tempo, em outros princípios particulares, por exemplo – em matéria de concessão de serviços de limpeza pública – sôbre o princípio da precariedade das ocupações dominiais.
5 Embora em vários trechos de suas conclusões, muitas vêzes citados a partir de então, L. BLUM parece enunciar uma teoria muito geral da mutabilidade do contrato de concessão: “Como a obrigação primordial do concessionário é, antes de tudo, assegurar ao serviço concedido uma execução suficiente, segue-se que os encargos iniciais do concessionário poderão ampliar-se de acôrdo com as necessidades dêsse serviço. Essa extensão dos encargos do concessionário pode ser prevista no próprio contrato… Mas se não constar do contrato, será preciso que a intervenção do Estado venha suprir o seu silêncio… O Estado permanece como responsável pela execução do serviço perante a universalidade dos cidadãos… O Estado intervirá, portanto, necessàriamente para impor, caso seja preciso, ao concessionário uma prestação de serviço superior àquela que fôra estritamente prevista… etc.”
6 Em seu “Précis de droit administratif”, BONNARD explica (pág. 731) que o poder do concedente de reorganizar o serviço se acha ligado à natureza regulamentar das cláusulas que interessam o serviço público. “Isto explica”, acrescenta êle, “que a administração deve limitar as modificações dessas normas e que não pode torná-las extensivas à outra parte do instrumento de concessão, porque essa parte não regulamentar constitui um contrato e aqui é que se nos depara o princípio da imutabilidade contratual“. Esta última frase é surpreendente da parte de um autor que adota, aliás formalmente, a idéia da mutabilidade dos contratos administrativos.
Mas precisamente a propósito da rescisão, mediante ressarcimento, da concessão que mais adiante (pág. 764) êle estuda BONNARD é induzido a adotar um ponto de vista assaz diferente: “O poder, de cancelamento, mediante indenização”, escreve êle, “existe em beneficio da própria administração no caso de silêncio do contrato. Poder-se-ia duvidar disso, porque o prazo da concessão é uma estipulação contratual…Entretanto é possível haver tal cancelamento, por indenização…porque é um direito inalienável e discricionário da administração decidir sôbre o modo de organização dos serviços públicos…”
Sobre o autor
ANDRÉ DE LABAUDÈRE, Professor da Faculdade de Direito de Paris
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