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Direito Administrativo das catástrofes, contratações públicas no estado de calamidade pública e a MP 1.2212024

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Direito Administrativo das catástrofes, contratações públicas no estado de calamidade pública e a MP 1.221/2024

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

14/06/2024

A inter-relação entre o direito e a realidade é inerente à regulação da vida em sociedade. Assim como a legislação pretende transformar a realidade, os fatos, invariavelmente, impactam na produção normativa. Neste contexto, a legislação reativa tem a finalidade de apresentar uma resposta normativa, com a fixação de regras gerais e abstratas, a partir de determinado fato, geralmente de impacto relevante para sociedade, economia e o meio ambiente.

No Brasil, não raras as vezes, o legislador tem sido reativo aos fatos, o que pode ser simbolizado por dois eventos trágicos recentes que motivaram a elaboração de normas jurídicas específicas de licitações e contratações públicas, a saber: a) a Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, fixou normas sobre as medidas emergenciais para o enfrentamento do coronavírus na pandemia de COVID-19, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)em 11 de março de 2020; e b) a Medida Provisória (MP) 1.221/2024 dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública, que foi elaborada a partir da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, ocorrida nos meses de abril e maio de 2024.

É possível perceber que as duas tragédias, uma de escopo regional e a outra mundial, compartilham uma característica comum no âmbito do direito contratual público: a insuficiência do regime jurídico previsto na Lei de Licitações e Contratos Administrativos – tanto a Lei 8.666/1993, revogada no final de 2023, quanto a Lei 14.133/2021, atual diploma legal a respeito do tema.

As respostas normativas às duas tragédias reforçam a importância de avançarmos em busca de um estatuto jurídico voltado para o Direito Administrativo das catástrofes, Direito Administrativo das emergências públicas ou o estado de necessidade administrativo, notadamente no campo das contratações públicas.

O presente estudo pretende lançar considerações a respeito do regime jurídico especial instituído pela MP 1.221/2024, demonstrando sua importância para a pavimentação do caminho em busca de um futuro estatuto jurídico das contratações públicas em situações emergenciais e calamitosas.

Importante destacar que a MP 1.221/2024 possui aplicação nacional e não se limita a dispor sobre medidas urgentes no âmbito da tragédia gaúcha, revelando que, ao lado do caráter reativo, o citado ato normativo possui, também, caráter preventivo, uma vez que pretende dispor de regime jurídico excepcional a ser aplicado em futuras catástrofes enquadradas como “estado de calamidade”. O regime jurídico especial instituído pela MP 1.221/2024, na forma do art. 18, não impede a aplicação do disposto na Lei 14.133/2021, naquilo que não lhe for contrário. Ademais, as medidas excepcionais introduzidas pela MP 1.221/2024 foram inspiradas, em grande medida, no regime jurídico excepcional e temporário previsto na Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, para o enfrentamento da COVID-19.1

De acordo com o art. 2º da MP 1.221/2024, a administração pública pode: a) dispensar a licitação para a aquisição de bens, a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, observado o disposto no Capítulo III da citada MP; b) reduzir pela metade os prazos mínimos de que tratam o art. 55 e o § 3º do art. 75 da Lei 14.133/2021, para a apresentação das propostas e dos lances, nas licitações ou nas contratações diretas com disputa eletrônica; c) prorrogar contratos para além dos prazos estabelecidos na Lei 8.666/1993 e na Lei 14.133/2021, por, no máximo, doze meses, contados da data de encerramento do contrato; d) firmar contrato verbal, nos termos do disposto no § 2º do art. 95 da Lei 14.133/2021, desde que o seu valor não seja superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais), nas hipóteses cuja urgência não permita a formalização do instrumento contratual; e e) adotar o regime especial previsto no Capítulo IV da referida MP para a realização de registro de preços.

A exigência de declaração do estado de calamidade pública e a competência da sua decretação: necessidade de interpretação conforme a Constituição para prestigiar a autonomia dos Municípios

A adoção das medidas excepcionais indicadas no novo ato normativo pressupõe o “estado de calamidade pública”, revelando-se insuficiente a caracterização da situação emergencial para acionamento do regime jurídico especial.2 O regime jurídico previsto na MP 1.221/2024 somente poderá ser aplicado nas situações em que a decretação do estado de calamidade pública ocorra após a edição da citada Medida Provisória. No tocante ao Estado do Rio Grande do Sul, o art. 19 da MP 1.221/2024 prevê que as medidas excepcionais poderão ser adotadas no prazo previsto no Decreto Legislativo nº 36/2024, dispensada a edição dos atos previstos no art. 1º, § 1º da referida MP.

A aplicação das medidas excepcionais previstas na MP 1.221/2024 depende do preenchimento das seguintes condições (art. 1º, § 1º): a) declaração ou reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Chefe do Poder Executivo do Estado ou do Distrito Federal ou pelo Poder Executivo federal, nos termos do disposto na Lei 12.608/2012; e b) ato específico do Poder Executivo federal ou do Chefe do Poder Executivo do Estado ou do Distrito Federal, com a autorização para aplicação das medidas excepcionais e a indicação do prazo dessa autorização.

É possível perceber que a aplicação do regime jurídico especial e excepcional previsto na MP 1.221/2024 depende da atuação do Chefe do Poder Executivo que deve (i) declarar ou reconhecer o estado de calamidade pública e (ii) autorizar, por meio de ato específico e prazo determinado, a adoção das respectivas medidas excepcionais.

Ocorre que o art. 1º, § 1º, da MP 1.221/2024 determina que as declarações, reconhecimentos e autorizações sejam emitidas pelo “Chefe do Poder Executivo do Estado ou do Distrito Federal ou pelo Poder Executivo federal”, sem mencionar explicitamente o Chefe do Poder Executivo do município. Isso sugere uma limitação na capacidade dos municípios de agir independentemente em tais situações, potencialmente dificultando a resposta rápida em cenários locais de calamidade. A partir da literalidade do dispositivo normativo em comento, em situações de calamidade pública envolvendo os municípios, a declaração ou o reconhecimento do estado de calamidade e a autorização para adoção de medidas excepcionais não seriam responsabilidade dos respectivos prefeitos, mas sim dos Chefes dos Poderes Executivos estaduais ou federal.

Nesse ponto, entendemos que o art. 1º, § 1º, da MP 1.221/2024 deve ser interpretado em conformidade com a Constituição Federal para abranger a possibilidade de decretação ou reconhecimento do estado de calamidade pública, além da autorização para adoção das medidas excepcionais, pelos municípios, por meio dos respectivos Chefes do Poder Executivo, em razão da autonomia federativa estabelecida no art. 18 da CRFB. Ora, no âmbito municipal, cabe ao prefeito a gestão e a adoção das medidas executivas urgentes necessárias ao enfrentamento dos desafios gerados pela calamidade, revelando-se inconstitucional a tentativa normativa de enfraquecer a autonomia federativa municipal, com o condicionamento da adoção de regime jurídico excepcional prevista na MP 1.221/2024 à atuação do Chefe do Executivo de outro ente federativo.

Flexibilização na fase preparatória

No tocante à fase preparatória, o art. 3º da MP 1.221/2024 estabelece o seguinte tratamento jurídico: a) será dispensada a elaboração de estudos técnicos preliminares, quando se tratar de aquisição e contratação de obras e serviços comuns, inclusive de engenharia;3 b) o gerenciamento de riscos da contratação será exigível somente durante a gestão do contrato;4 e c) será admitida a apresentação simplificada de termo de referência, de anteprojeto ou de projeto básico.5

Quanto ao TR, anteprojeto e ETP simplificados, o § 1º do art. 3º da MP 1.221/2024 dispõe que os referidos instrumentos conterão: a) a declaração do objeto; b) a fundamentação simplificada da contratação; c) a descrição resumida da solução apresentada; d) os requisitos da contratação; e) os critérios de medição e de pagamento; f) a estimativa de preços obtida por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros: f.1) composição de custos unitários menores ou iguais à mediana do item correspondente nos sistemas oficiais de Governo; f.2) contratações similares feitas pela administração pública; f.3) utilização de dados de pesquisa publicada em mídia especializada, de tabela de referência formalmente aprovada pelo Poder Executivo e de sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; f.4) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores; ou f.5) pesquisa na base nacional de notas fiscais eletrônicas; e g) a adequação orçamentária.

A definição do custo global de referência de obras e serviços de engenharia será obtido preferencialmente a partir das composições dos custos unitários menores ou iguais à média de seus correspondentes custos unitários de referência do Sistema de Custos Referenciais de Obras – SICRO, para serviços e obras de infraestrutura de transportes, ou do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices de Construção Civil – SINAPI, para as demais obras e serviços de engenharia, na forma do § 2º do art. 3º da MP 1.221/2024.

Independentemente do objeto da contratação, os preços obtidos a partir da estimativa de preços não impedem a contratação por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, desde que observadas as seguintes condições (art. 3º, § 3º, da MP 1.221/2024): a) negociação prévia com os demais fornecedores, segundo a ordem de classificação, para obtenção de condições mais vantajosas; e b) fundamentação, nos autos do processo administrativo da contratação correspondente, da variação de preços praticados no mercado por motivo superveniente. Trata-se de previsão relevante para garantir segurança jurídica ao gestor público responsável pela contratação durante períodos de calamidade, onde a oscilação de preços é comum devido à escassez, dificuldades logísticas, entre outros fatores que afetam a oferta e a demanda.

Em relação à documentação de habilitação, admite-se, também, margem de flexibilização. Em conformidade com o art. 4º da MP 1.221/2024, nas hipóteses de restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relacionada às regularidades fiscal e econômico-financeira, e delimitar os requisitos de habilitação jurídica e técnica ao que for estritamente necessário para a execução adequada do objeto contratual.6

Tratamento especial para dispensa de licitação

Na dispensa de licitação para contratações excepcionais voltadas ao atendimento das necessidades decorrentes do estado de calamidade pública, o art. 5º da MP 1.221/2024 presume a comprovação das seguintes condições:7 a) ocorrência do estado de calamidade pública, na forma do art. 1º da MP; b) necessidade de pronto atendimento da situação de calamidade; c) risco iminente e gravoso à segurança de pessoas, de obras, de prestação de serviços, de equipamentos e de outros bens, públicos ou particulares; e d) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de calamidade.

A referida presunção, que é relativa e admite prova em sentido contrário, tem por objetivo agilizar o processo de contratação e garantir segurança jurídica ao gestor público responsável pela decisão de contratação direta. É importante lembrar que, normalmente, nas contratações emergenciais e no estado de calamidade pública, a legislação autoriza a dispensa de licitação, respeitadas as exigências indicadas no art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021, cabendo ao gestor público a apresentação das justificativas e a demonstração do cumprimento das exigências dispostas do referido dispositivo legal.8

Redução de prazos para a apresentação das propostas e dos lances nas licitações ou nas contratações diretas com disputa eletrônica

De acordo com o art. 2º, II, da MP 1.221/2024, a administração pública está autorizada a reduzir pela metade os prazos mínimos de que tratam o art. 55 e o § 3º do art. 75 da Lei 14.133/2021 para a apresentação das propostas e dos lances em licitações ou contratações diretas com disputa eletrônica.9 Esta medida possibilita a institucionalização do “fast track licitatório”, com a simplificação e abreviação do rito procedimental, notadamente a diminuição dos prazos para apresentação de propostas e lances nas licitações e do prazo para dispensa eletrônica, com o intuito de agilizar os processos seletivos durante o estado de calamidade pública.

Prorrogação dos contratos administrativos

De acordo com o art. 2º, III, da MP 1.221/2024, a administração pública pode prorrogar contratos para além dos prazos estabelecidos na Lei 8.666/1993 e na Lei 14.133/2021, por, no máximo, doze meses, contados da data de encerramento do contrato.10

No contexto do estado de calamidade pública, o regime jurídico excepcional para prorrogação contratual é aplicável aos contratos firmados com fundamento na Lei 8.666/1993 e na Lei 14.133/2021. Nesse ponto, o art. 2º, III, da MP 1.221/2024 não faz distinção entre contratos celebrados por meio de licitação ou de forma direta, em razão da emergência. Assim, na hipótese de contrato celebrado por meio de um processo regular de licitação, com a superveniência da decretação do estado de calamidade, seria possível prorrogar, excepcionalmente, a vigência contratual por mais doze meses, ainda que o contrato tenha atingido o prazo máximo indicado na Lei 8.666/1993 e na Lei 14.133/2021.

Igualmente, no caso de contrato emergencial, apesar de a legislação anterior e atual não admitir prorrogações além dos respectivos limites legais estabelecidos, seria possível a prorrogação do contrato emergencial, no estado de calamidade, por mais doze meses, na forma do art. 2º, III, da MP 1.221/2024, afastando-se a vedação de prorrogação prevista no art. 24, IV, da revogada Lei 8.666/199 e no art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021.

Ampliação dos contratos verbais

A regra do contrato escrito decorre do art. 95, § 2º, da Lei 14.133/2021, que indica a nulidade e a ausência de efeito do contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Com a edição da MP 1.221/2024, ampliou-se o limite para contratação verbal durante o estado de calamidade pública. Nesse caso, o art. 2º da referida MP autoriza a celebração de contrato verbal, nos termos do disposto no § 2º do art. 95 da Lei 14.133/2021, desde que o seu valor não seja superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais), nas hipóteses em que a urgência não permitir a formalização do instrumento contratual.

Regime especial do registro de preços

Outra inovação contida na MP 1.221/2024 refere-se à fixação de regime jurídico especial para formalização do Registro de Preços.

Inicialmente, uma inovação relevante para o sistema de registro de preços na MP 1.221/2024 refere-se à fixação de prazos menores para implementação da intenção de registro de preços (IRP) que será de dois a oito dias úteis (art. 8º).11 Normalmente, o referido prazo seria de, no mínimo, oito dias úteis (art. 86 da Lei 14.133/2021).

Após o prazo de trinta dias, contados da data de assinatura da ata de registro de preços, durante o estado de calamidade, o órgão ou a entidade realizará, previamente à contratação, estimativa de preços a fim de verificar se os preços registrados permanecem compatíveis com os praticados no mercado, promovido o reequilíbrio econômico-financeiro, caso necessário (art. 9º da MP 1.221/2024).

As principais inovações apresentadas pela MP 1.221/2024 no SRP concentram-se, contudo, no tratamento jurídico da adesão às atas de registro de preços.

O art. 7º da MP 1.221/2024 permite a adesão à ata de registro de preços nos seguintes casos: a) adesão por órgão ou entidade pública federal à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora do Estado, do Distrito Federal ou dos Municípios atingidos; e b) adesão por órgão ou entidade do Estado à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora dos municípios atingidos. Aqui, a previsão normativa estabelece tratamento jurídico diverso daquele contido na Lei 14.133/2021 que não admite a adesão por parte da União às atas dos demais entes federados (art. 86, § 8º) e adesão dos estados às atas dos municípios (art. 86, § 3º, II).

Ademais, o art. 10 da MP 1.221/2024 permite a adesão à ata de registro de preços formalizada sem a indicação do total a ser adquirido, com fundamento no § 3º do art. 82 da Lei 14.133/2021, inclusive em relação às obras e aos serviços de engenharia, mantida a obrigação de indicação do valor máximo da despesa. Frise-se que, normalmente, as atas de registro de preços formalizadas sem a indicação do total a ser adquirido, com fundamento no permissivo excepcional contido no § 3º do art. 82 da Lei 14.133/2021, devem indicar, obrigatoriamente, o valor máximo da despesa e não permitem a participação de outro órgão ou entidade na ata, em razão do disposto no § 4º do art. 82 da referida Lei.

Já o art. 11 da MP 1.221/2024 amplia os limites quantitativos para adesão à ata de registro de preços. Normalmente, a adesão à ata de registro de preços deve respeitar os limites quantitativos previstos na Lei 14.133/2021: a) limite individual de adesão por órgão ou entidade: as aquisições ou as contratações adicionais, decorrentes da adesão (carona), não poderão exceder, por órgão ou entidade, a 50% dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório registrados na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes (art. 86, § 4º); e b) limite global das adesões à ata: o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao dobro do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independentemente do número de órgãos não participantes que aderirem (art. 86, § 5º). Diferentemente da previsão contida nos §§ 4º e 5º do art. 86 da Lei 14.133/2021, o art. 11 da MP 1.221/2024 amplia o limite quantitativo total das adesões às atas de registro de preços. Ao invés do limite tradicional (dobro dos itens registrados), no regime especial de calamidade pública, as adesões não poderão ultrapassar, na totalidade, cinco vezes o quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços, independentemente do número de órgãos não participantes que aderirem.

Mencione-se, ainda, o art. 12 da MP 1.221/2024 que afasta os limites previstos tanto no art. 11 da citada MP, quanto nos § 4º e § 5º do art. 86 da Lei 14.133/2021, para adesões às atas de registros de preços gerenciados pela Central de Compras da Secretaria de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

Regime contratual especial

Por fim, os arts. 13 a 16 da MP 1.221/2024 estabelecem regime jurídico especial para as contratações firmadas durante o estado de calamidade pública, com fundamento na referida Medida Provisória.

Em razão do disposto no art. 13 da MP 1.221/2024, as contratações realizadas com fundamento nesta Medida Provisória serão disponibilizadas no prazo de sessenta dias, contado da data da aquisição ou da contratação, no PNCP,12 e conterão: a) o nome da empresa contratada e o número de sua inscrição na Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda ou o identificador congênere no caso de empresa estrangeira que não funcione no País; b) o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de aquisição ou de contratação; c) o ato autorizativo da contratação direta ou o extrato decorrente do contrato; d) a discriminação do bem adquirido ou do serviço contratado e o local de entrega ou de prestação do serviço; e) o valor global do contrato, as parcelas do objeto, os montantes pagos e, caso exista, o saldo disponível ou bloqueado; f) as informações sobre eventuais aditivos contratuais; g) a quantidade entregue ou prestada durante a execução do contrato, nas contratações de bens e serviços, inclusive de engenharia; e h) as atas de registros de preços das quais a contratação se origine, se for o caso.

É possível, excepcionalmente, a contratação de sociedade empresária punida com a sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o Poder Público, quando a empresa, comprovadamente, for a única fornecedora do bem ou prestadora do serviço., exigindo-se, nesse caso, a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 96 da Lei 14.133/2021, que não poderá exceder a 10% do valor do contrato, na forma do art. 13, §§ 2º e 3º, da MP 1.221/2024.13

Inovação importante relacionada à alteração unilateral dos contratos encontra-se prevista no art. 14 da MP 1.221/2024, que autoriza, nos contratos firmados nos termos da referida Medida Provisória, a estipulação de cláusula que permita acréscimos ou supressões, limitados a 50% do valor inicial atualizado do contrato.14 Trata-se de previsão normativa aplicável apenas aos contratos firmados nos termos da Medida Provisória, inaplicável, portanto, aos contratos firmados em data anterior.

Interessante notar que o exercício dessa maior flexibilidade de alteração unilateral depende de previsão expressa no contrato, uma vez que o art. 14 da MP 1.221/2024 utiliza a expressão “a administração pública poderá prever cláusula”, o que revela a discricionariedade da inserção da referida cláusula, devendo ser observados, no caso de omissão contratual, os limites do art. 125 da Lei 14.133/2021.

Quanto ao alcance da referida flexibilidade para alteração unilateral, pode haver dúvida a respeito da sua incidência nas alterações qualitativas, uma vez que o art. 14 da MP 1.221/2024 utiliza a expressão “acréscimos ou supressões”, o que pode sugerir a sua aplicação restrita às alterações quantitativas. O ideal seria a adequação da redação para permitir, com maior segurança jurídica, que a flexibilização dos limites das alterações unilaterais seja aplicável às alterações unilaterais quantitativas e qualitativas nos contratos firmados durante o estado de calamidade, especialmente em razão da desproporcionalidade da restrição e da eventual necessidade de alterações qualitativas em patamares superiores ao normalmente permitido pela legislação, com o intuito de melhor atender o excepcional interesse público.

Em relação à vigência dos contratos firmados durante o estado de calamidade, o art. 15 da MP 1.221/2024 estabelece o prazo de duração de até um ano, prorrogável por igual período, desde que as condições e os preços permaneçam vantajosos para a Administração Pública, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento da situação de calamidade pública de que trata o art. 1º da citada Medida Provisória.

Nas contratações de obras e serviços de engenharia com escopo predefinido, o prazo de conclusão do objeto contratual será de, no máximo, três anos, na forma do § 1º do art. 15 da MP 1.221/2024. Nos contratos de escopo, o prazo de vigência será automaticamente prorrogado quando seu objeto não for concluído no período firmado no contrato, em razão do disposto no art. 15, § 2º, da MP 1.221/2024 e do art. 111 da Lei 14.133/2021.

Quanto aos contratos celebrados anteriormente e em execução na data de publicação do ato autorizativo específico do Chefe do Executivo para aplicação do regime jurídico excepcional indicado na Medida Provisória, o art. 16 da MP 1.221/2024 permite a alteração dos ajustes para enfrentamento das situações de calamidade, observados os seguintes parâmetros: a) apresentação de justificativa; b) deve haver concordância do contratado; c) a alteração pode ocorrer em percentual superior aos limites previstos no § 1º do art. 65 da Lei 8.666/1993 e no art. 125 da Lei 14.133/2021, limitado o acréscimo a cem por cento do valor inicialmente pactuado; e d) não pode transfigurar o objeto da contratação.

Conclusões

Os desafios decorrentes de catástrofes sanitárias e climáticas evidenciam a insuficiência do regime jurídico tradicional das licitações e contratações públicas para o célere atendimento do interesse público, confirmando a maior velocidade dos fatos quando comparada ao tempo da resposta normativa.

No ordenamento jurídico pátrio, as reações normativas apresentadas no combate à pandemia da COVID-19 e, mais recentemente, a tragédia climática do Rio Grande do Sul, parecem confirmar esse diagnóstico. Aliás, como demonstrado ao longo do presente texto, o regime jurídico excepcional introduzido pela MP 1.221/2024 foi significativamente influenciado pelo regime jurídico indicado na Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, elaborada à época para enfrentar os desafios gerados pela pandemia da COVID-19, revelando a insuficiência parcial dos regimes tradicionais da Lei 14.133/2021 e da revogada Lei 8.666/1993.

É provável, infelizmente, que novas catástrofes ocorrem, o que reforça a necessidade de uma atuação não apenas reativa do ordenamento jurídico, mas também preventiva para lidar com tragédias de grandes proporções. Nesse cenário, a Lei 13.979/2020 e a MP 1.221/2024 podem representar embriões de um futuro estatuto jurídico voltado para o Direito Administrativo das catástrofes, Direito Administrativo das emergências públicas ou o estado de necessidade administrativo, especialmente no campo das contratações públicas.

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NOTAS

1 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Estado de necessidade administrativo e poder de polícia: o caso do novo coronavírus. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 18, n. 68, p. 9-23, jan./mar. 2020.

2 Sem desconsiderar a dificuldade na distinção da emergência e do estado de calamidade, verifica-se a tentativa de diferenciação formal e material entre as situações: a) aspecto formal: enquanto o estado de calamidade pressupõe decretação formal pelo Chefe do Executivo, a emergência não depende, necessariamente, de decretação formal, sendo suficiente o reconhecimento pelo próprio gestor; e b) aspecto material: o estado de calamidade envolve danos mais graves, configurando situação mais crítica que a emergência. A referida distinção é retirada, em certa medida, do art. 2º, VIII e XIV, do Decreto 10.593/2020.

3 Destaca-se que a elaboração de ETP é facultativa nas contratações em situações emergenciais e de instabilidade institucional indicadas nos incisos VII e VIII do art. 75 da Lei 14.133/2021, na forma do art. 14, I, da Instrução Normativa SEGES Nº 58/2022. Nas contratações decorrentes do estado de calamidade pública, por sua vez, o art. 3º, I, da MP 1.221/2024 dispensa a elaboração do ETP.

4 Trata-se de previsão semelhante àquela prevista no art. 4º-D da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, para o enfrentamento da COVID-19.

5 A elaboração de TR simplificado ou projeto básico simplificado foi permitida também pelo art. 4º-E, caput e § 1º, da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, para o enfrentamento da COVID-19.

6 De forma semelhante, o art. 4º-F da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, permitiu a flexibilização da documentação de habilitação nas contratações para o enfrentamento da COVID-19: “Art. 4º-F. Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal ou, ainda, o cumprimento de 1 (um) ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade trabalhista e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição Federal”.

7 No enfrentamento da COVID-19, o art. 4º-B da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, também estabeleceu presunções para facilitar a dispensa de licitação.

8 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à nova lei de licitações e contratos administrativos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

9 No contexto da COVID-19, o art. 4º-H da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, reduziu pela metade os prazos do procedimento do pregão.

10 De forma similar, no enfrentamento da COVID-19, o art. 4º-G da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, permitiu prorrogações sucessivas dos contratos, enquanto vigorasse o Decreto Legislativo 6/2020.

11 O dispositivo legal em comento foi inspirado na redação do art. 4º, § 6º, da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, para o enfrentamento da COVID-19.

12 O art. 13, § 1º, da MP 1.221/2024 dispõe: “O registro no Portal Nacional de Contratações Públicas deverá indicar expressamente que a aquisição ou a contratação foi realizada com fundamento nesta Medida Provisória.”

13 Previsão semelhante foi prevista no art. 4º, § 3º e § 3º-A, da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020, para o enfrentamento da COVID-19.

14 No enfrentamento da COVID-19, foi prevista solução semelhante no art. 4º, I, da Lei 13.979/2020, alterada pela Lei 14.035/2020.

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