GENJURÍDICO
Teoria da Imprevisão — Contrato Administrativo — Revisão de Preço

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ADMINISTRATIVO

CLÁSSICOS FORENSE

REVISTA FORENSE

Contrato Administrativo – Revisão de Preço – Teoria da Imprevisão

CONTRATO ADMINISTRATIVO

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 155

Revista Forense

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11/11/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 155
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

  • Intervenção Econômica do Estado Modernorevista forense 155

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A Conclusão de Atos Internacionais no Brasil, Hildebrando Accioly
  • O Federalismo e a Universidade Regional, Orlando M. Carvalho
  • Inelegibilidade por Convicção Política, Osni Duarte Pereira
  • Embargos do Executado, Martins de Andrade
  • Questão de Fato, Questão de Direito, João de Oliveira Filho
  • Fantasia e Realidade Constitucional, Alcino Pinto Falcão
  • Da Composição da Firma Individual, Justino de Vasconcelos
  • A Indivisibilidade da Herança, Gastão Grossé Saraiva
  • O Novo Consultor Geral da República, A. Gonçalves de Oliveira
  • Desembargador João Maria Furtado, João Maria Furtado

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Caio Tácito, consultor jurídico do Departamento Administrativo do Serviço Público.

PARECERES

Contrato Administrativo – Revisão de Preço – Teoria da Imprevisão

– A teoria da imprevisão apenas cogita da álea econômica extraordinária, que, pela impossibilidade de previsão e pelo excessivo pêso de sua incidência, deve ser dividida entre ambos os contratantes.

– Os atos voluntários da administração que possam afetar a economia do contrato sòmente autorizam a indenização em casos especiais.

PARECER

Em exposição de motivos nº 1.139, de 26 de dezembro de 1952, o Ministério da Viação e Obras Públicas solicita autorização presidencial para pagar à firma B. Dutra & Cia. Ltda. a importância de Cr$ 1.301.211,10, a título de reajustamento de preço das obras parciais da construção do pôrto de Corumbá, no Estado de Mato Grosso.

2. Segundo esclarece o Departamento Nacional de Portos, Rios e Canais, a quantia corresponde às seguintes parcelas a serem indenizadas:

Cr$ a) pagamento de repouso semanal remunerado….. 555.515,20 b) impôsto de vendas e consignações sôbre o material da obra

83.253,90 c) acidentes com tubulões e fundações, em virtude de cheia no rio

662.211,00 Total 1.301.211,10

3. A firma em causa obteve, em 1944, mediante concorrência pública, contrato para construção do pôrto de Corumbá, cujos projetos e orçamentos foram aprovados pelo dec. nº 15.369, de 13 de abril de 1944. Não se tendo iniciado as obras, foi procedida a rescisão amigável do contrato, em 5 de fevereiro; de 1947 (fls. 62). Nesse mesmo arfo, tendo sido aprovados novos orçamentos e projetos, foi concedida dispensa de concorrência pública e lavrado, com a mesma firma, outro contrato para execução de parte das obras de construção do pôrto.

4. Fixado, pelo dec. nº 24.139, de 29 de novembro de 1947, o custo total do empreendimento em Cr$ 16.982.437,60, o contrato de empreitada parcial, assinado em 14 de junho de 1948, abrangia obras no valor de Cr$ 6.000.000,00.

5. À vista de novos estudos técnicos, os orçamentos e projetos globais foram alterados pelo dec. nº 31.086, de 5 de junho de 1952, elevando-se a previsão da despesa a Cr$ 22.345.000,00 e incluindo-se na respectiva discriminação parcelas atinentes ao pagamento do repouso semanal remunerado e do impôsto de vendas e consignações.

6. Como o contrato de construção, depois de sucessivas prorrogações de prazo, já se ultimou, tendo sido concluídas as obras portuárias, consulta o Sr. diretor da Divisão de Obras se poderá ser feito têrmo aditivo ao ajuste já consumado, solicitando, ainda, o meu pronunciamento sôbre “os demais aspectos legais que envolvem o assunto”.

7. A amplitude da consulta faculta-me superar os aspectos meramente formais da questão, de modo a examinar-lhe a própria essência, ou seja, a existência de obrigação, por parte da União, a indenizar as verbas arroladas.

8. Não basta que o último orçamento aprovado tenha discriminado, em rubricas especiais, as quantias reclamadas, a título de cobertura do pagamento de repouso semanal remunerado e do impôsto estadual sôbre o material utilizado. O orçamento global das obras não é parte integrante do contrato de empreitada, que foi convencionado por preço certo. Tampouco nêle se determinou que a firma em apreço devesse ser a beneficiária dêsses itens da despesa estimada. As obrigações financeiras da União, no tocante às obras empreitadas, são aquelas fixadas no têrmo de ajuste, que é o contrato administrativo em execução.

9. A obrigação de pagar à firma B. Dutra & Cia. Ltda. o teor das despesas extracontratuais sòmente nascerá se, em novo vínculo bilateral acessório, fôr reconhecida a dívida. Na oportunidade do favor que ora se pleiteia, com o acréscimo, ainda, de outra verba imprevista, cabe, portanto, examinar o próprio mérito da pretensão.

Contratos administrativos

10. Os contratos administrativos, ressalvadas as suas peculiaridades, regulam-se pelos mesmos princípios gerais que regem os contratos de direito comum (artigo 766 do Regulamento Geral de Contabilidade Pública). Vigoram, assim, na empreitada de obras públicas, os ditames que, segundo a lei civil, disciplinam essa modalidade de convenção.

11. Sendo, como é sabido, a empreitada uma forma de contrato a preço certo, em que o empreiteiro assume o risco do custeio de mão-de-obra e dos materiais, se ao fornecimento destes se obrigou (Código Civil, arts. 1.238 e 1.239), as oscilações do custo real, sejam elas superiores ou inferiores à previsão, não podem afetar a obrigação pecuniária do outro contratante. Os eventuais acréscimos ou decréscimos representam o ônus ou a vantagem de negócio, constituindo matéria de economia interna do empreiteiro, sem nenhum reflexo sôbre as cláusulas do contrato.

12. O art. 1.246 do Cód. Civil consagra, expressamente, o princípio da Imutabilidade do preço nos contratos de empreitada:

“O arquiteto ou construtor que, por empreitada, se incumbir de executar uma obra segundo plano aceito por quem a encomenda, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que o dos salários, ou o do material encareça, nem ainda que se altere ou aumente, em relação à planta, a obra ajustada, salvo se aumentou ou alterou por instruções escritas do outro contratante e exibidas pelo empreiteiro”.

13. Ao conteúdo civil de obrigação de executar o serviço por preço certo e inalterável ainda se acrescenta, no caso de obras públicas, o resguardo da eficácia da concorrência pública, porque a aceitação de refôrço posterior do preço seria, na palavra de HAHNEMANN GUIMARÃES, “permitir que o empreiteiro conseguisse feliz êxito para o ardil com que poderia ter vencido seus concorrentes, oferecendo preço muito baixo para conseguir a primazia, na expectativa de obter mais tarde o reajustamento” (“Pareceres do Consultor Geral da República”, vol. IV, pág. 233).

14. A obrigação de pagar não se altera, no contrato de empreitada., salvo quando se acresceu, a mando do outro contratante, a obrigação de fazer. Não importa saber o valor ou o custo da obra realizada: o preço é sempre o convencional, ou seja, o estipulado no ajuste do serviço.

Princípio da imutabilidade

15. É certo que a doutrina e a jurisprudência consagram, em condições excepcionais, um relativo temperamento ao princípio absoluto da imutabilidade dos pactos. À regra pacta sunt servanda aditou-se, por construção dos tribunais, a cláusula rebus sic stantibus.

16. Em antigo parecer emitido como procurador do I. A. P. C., estudei, em 1945, as origens históricas da teoria da imprevisão, especialmente em suas relações com os contratos administrativos. São dêsse trabalho as seguintes passagens, a que me reporto, pela propriedade de sua invocação no caso atual:

“8. O princípio da imutabilidade das convenções consagrado na fórmula clássica pacta sunt servanda não parece ter sofrido qualquer restrição no direito romano.

Coube aos pós-glosadoras, com fundamento presumível em texto do Digesto (XII-4-8) e ao direito canônico, a primazia na elaboração da chamada cláusula rebus sic stantibus, pela qual, nos contratos a têrmo ou de execução sucessiva, se presumia implícita a condição da permanência do estado existente à época do acôrdo de vontades:

“Contratus qui habent tractum sucessivum et devendentiunz de futuro rebus sic stantibus intelliguntur”.

9. Adotada em alguns Códigos de origem germânica, como o Codex Maximilianus Bavarius Civilis, de 1756, o Código prussiano e o Código austríaco, a cláusula rebus sic stantibus, depois de um período de extrema influência nos séculos XIV e XVI, entrou a declinar, até se extinguir, de todo, no século XVIII.

O Código NAPOLEÃO, que coloriu todo o direito civil do século XIX, e o Código italiano de 1856 abandonam o princípio e restabelecem a máxima individualista da autonomia da vontade e, conseqüentemente, a da inalterabilidade das convenções.

10. Foi o conflito mundial da segunda década do século atual que veio reavivar a teoria já recolhida ao museu histórico do direito.

As violentas flutuações econômicas geradas pelo desequilíbrio social político oriundo da guerra exigiram dos intérpretes e dos tribunais a mitigação do princípio rígido da imutabilidade dos contratos.

Sem atingir o limita de impossibilidade absoluta, a execução dos contratos pactuados, sob condições anteriores substancialmente modificadas, tornava a obrigação excessivamente onerosa para o devedor e gerava conseqüências ruinosas para o comércio e a indústria, tanto em suas relações internas, como internacionais.

Na França, a cláusula rebus sic stantibus ressurge, inicialmente, em várias decisões do Conselho do Estado e, embora rejeitada, em alguns casos, pelos tribunais, é, afinal, consagrada na lei FAILLIOT, de 21 de janeiro de 1918, que logo inspirou a lei belga de 11 de outubro de 1919. Na Itália, o decreto real de 27 de maio de 1915 já admitia a guerra como eximente jurídica no caso de se haver tornado excessivamente onerosa a prestação.

Graças à pressão imperativa do fator econômico, porque “a ordem jurídica é, em grande parte ou na sua porção maior e mais importante, expressão e revestimento da ordem econômica”, na lição excelente de FRANCISCO CAMPOS (“Educação e cultura”, 1941, pág. 74), tomou franco desenvolvimento a chamada teoria da imprevisão.

Reconhecendo a realidade social, essa doutrina jurídica moderna admite a revisão dos contratos quando a superveniência de condições imprevisíveis à época de sua formação, tornando excessivamente onerosa a obrigação, gera a impossibilidade subjetiva de execução do contrato.

11. A larga construção doutrinária que se tem feito em tôrno da teoria da imprevisão e da intervenção do Estado nas relações contratuais ainda não penetrou na totalidade das legislações contemporâneas.

No relatório final apresentado por NIBOYET à Conferência Jurídica Internacional, realizada em 1937 em Paris, as legislações atuais foram classificadas em dois grandes grupos: o revisionista e o não-revisionista, colocando-se, em separado, pelas suas condições específicas, o direito inglês (“Travaux de la Sémaine International de Droit”, 1937).

Dentro dessa divisão dicotômica poderão ser colocadas no primeiro grupo, entre as nações revisionistas, a Alemanha, a Hungria, a Suíça, a Polônia e a Noruega.

Entre aquelas que, embora excepcionalmente adotando, em leis especiais, o princípio da imprevisão, mantêm o sistema da imutabilidade das convenções estarão a França, a Bélgica, a Itália, a Argentina, o Japão, a Romênia, Portugal e a Espanha.

12. No direito brasileiro, a cláusula rebus sic stantibus foi expressamente consignada no dec. nº 19.573, de 7 de janeiro de 1931, que permitiu a rescisão ou modificação dos contratos de locação de prédios celebrados por funcionários públicos, civis ou militares. A intervenção do Estado na revisão contratual também se fixou em outros atos legislativos: o decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933, que aboliu a cláusula-ouro; o decreto nº 20.632, de 9 de novembro de 1931, que permitiu a rescisão de contratos de locação celebrados pelo Departamento de Correios e Telégrafos; o dec. nº 24.150, de 20 de abril de 1934, sôbre a renovação das locações comerciais e industriais e na recente legislação sôbre a prorrogação dos contratos de locação, consolidada no decreto nº 6.739, de 26 de julho de 1944.

13. Larga tem sido a controvérsia sôbre a conciliação da cláusula rebus sic stantibus com o sistema atual do Código Civil brasileiro.

ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA, em sua monografia nunca assaz citada, que constitui, sem favor, o melhor e o mais completo trabalho nacional sôbre o assunto, passa em revista as várias opiniões em que se situam os autores e os tribunais do país.

O recente Congresso Jurídico Nacional, reunido em 1943, embora aconselhando a adoção do princípio, aprovou a conclusão de “não conter o nosso direito, atualmente, nenhum dispositivo expresso, de aplicação geral, que permita a revisão do contrato” (relatório geral da Comissão de Direito Civil, nº 33, pág. 12).

Também HAHNEMANN GUIMARÃES, eminente mestre e atual consultor geral da República, ensina: “O nosso direito não permite que os contraentes se possam furtar ao cumprimento das obrigações, apesar do desequilíbrio sofrido em conseqüência de fatos imprevistos nas relações contratuais. Só a impossibilidade absoluta do cumprimento da prestação pode tornar ineficaz o contrato. A execução exageradamente onerosa do contrato não se equipara à, impossibilidade… No direito brasileiro domina irrestritamente o princípio da convenção-lei pacta sunt servanda” (“REVISTA FORENSE”, vol. 97, pág. 290).

14. Não obstante, a sua aplicação pela jurisprudência dia a dia se acentua em feliz antecipação da reforma legislativa prevista no art. 322 do anteprojeto do Cód. de Obrigações, que, à semelhança do modêlo suíço, reconhece plenamente a teoria da imprevisão.

O Supremo Tribunal Federal, rejeitando por cinco votos contra dois os embargos opostos ao acórdão no recurso extraordinário nº 2.675, reconheceu que “a regra rebus sic stantibus não é contrária a texto expresso da lei nacional” (acórdão de 5 de janeiro de 1938, publicado na “REVISTA FORENSE”, vol. 77, página 79).

Também endossou a cláusula rebus sic stantibus o Tribunal de Apelação do Distrito Federal em acórdão na apelação nº 1.733 (“REVISTA FORENSE”, vol. 95, págs. 334 e segs.), em matéria relativa à extinção da cláusula-ouro regulada no dec. nº 23.501, de 1933.

De forma ainda mais expressiva, o mesmo Tribunal admitiu, expressamente, a revisão judicial de um contrato de empreitada, em decisão unânime da 5ª Câmara, em 28 de agôsto de 1943, com notável voto do relator, desembargador SABÓIA LIMA (“REVISTA FORENSE”, volume 97, pág. 111), e de outro, de compra e venda mercantil, em acórdão de 26 de junho de 1943 da mesma Câmara, na apelação nº 2.404 (“REVISTA FORENSE”, vol. 78, pág. 97).

15. Na jurisprudência administrativa, a teoria da imprevisão foi ponderada, recentemente, em dois casos submetidos à decisão do Sr. ministro do Trabalho.

No primeiro dêles foi negada a possibilidade de revisão do contrato (“Diário Oficial” de 11 de maio de 1944, com retificação feita em 16 de junho de 1944).

A matéria foi mais amplamente debatida, em caso que muito se assemelha ao do presente processo, quando a firma Construtora Dourado S. A. pleiteou, igualmente, aumento de preço no contrato de empreitada para a construção do arcabouço do edifício-sede dêste Instituto, à rua México (“Diário Oficial” de 7 de agôsto de 1944).

Depois de minuciosos estudos técnicos, o Sr. ministro do Trabalho negou o acréscimo pleiteado, com o apoio em pareceres dos Drs. consultor jurídico do Ministério e consultor geral da República, que, embora adotando o princípio da revisão do contrato administrativo, entenderam não estar provada a excessiva onerosidade da prestação que justificaria a majoração do preço pactuado.

16. Desenvolvendo a tese, o ilustrado Dr. consultor jurídico, em artigo recentíssimo, na “Rev. de Direito Administrativo” (ano I, nº 1, janeiro de 1945, páginas 32 e segs.), fixou, com muita nitidez, os limites da imprevisão nos contratos a breve têrmo, que, segundo propõe, se deverá guiar pelas normas seguintes:

“1ª, as flutuações econômicas e as alterações de mercados não devem constituir normalmente motivo para que sejam pleiteadas alterações contratuais ou majorações de preços;

“2ª, sòmente a mutação inesperada e violenta das condições econômicas e sociais, trazendo consigo a característica de verdadeira fôrça maior, é que poderá justificar alterações nas condições de tempo ou de custo dos contratos de empreitada”.

17. É necessário, em suma, o advento de condições econômicas imprevisíveis que, tornando iníqua e ruinosa a prestação, importem lucro exorbitante e injusto do credor, traduzindo insuportável gravame para o devedor. Caracterizada essa situação excepcional e inesperada, o contrato deverá ser reajustado ao novo e imprevisto estado de fato, restabelecendo-se o equilíbrio das obrigações extremamente desproporcionadas” (“REVISTA FORENSE”, vol. 103, pág. 451).

17. A acolhida, em nosso direito, da teoria da imprevisão é opinião correntia e predominante. JAIR LINS (`’REVISTA FORENSE”, vol. 40, pág. 512), ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA (“Caso fortuito e teoria da imprevisão”, 2ª ed., 1943), PEDRO BATISTA MARTINS (“O abuso do direito e o ato ilícito”, pág. 67), NOÉ AZEVEDO (“REVISTA FORENSE”., vol. 115, pág. 393), CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (“REVISTA FORENSE”, vol. 92, pág. 797), CARLOS MEDEIROS SILVA (“REVISTA FORENSE”, vol. 122, pág. 65), SAN TIAGO DANTAS (“REVISTA FORENSE”, vol. 139, pág. 6), ALFREDO DE ALMEIDA PAIVA (“REVISTA FORENSE”, vol. 141, pág. 29), entre outros, estudaram a adoção do princípio da revisão contratual por causas supervenientes e imprevisíveis.

18. A condição implícita da permanência do estado de coisas contemporâneo à convenção, traduzida na cláusula rebus sic stantibus, não é incompatível com os contratos administrativos. Nesse sentido se harmonizam, em nossa literatura jurídica, vozes autorizadas como as de TEMÍSTOCLES CAVALCÂNTI (“Tratado de Direito Administrativo”, vols. II, pág. 339, e VI, pág. 396; “Pareceres do Consultor Geral da República”, págs. 199 e 543), OSCAR SARAIVA (“Rev. de Direito Administrativo”, vols. I, pág. 32, V, pág. 277, X, pág. 284, e 25, pág. 357), LÚCIO BITTENCOURT (“Rev. de Direito Administrativo”, vol. II, pág. 812), CARLOS MEDEIROS SILVA (“REVISTA FORENSE”, vol. 122, pág. 65), J. GUIMARÃES MENEGALE (“Rev. de Direito Administrativo”, vol. 23, pág. 312) e ALCINO SALAZAR (“Rev. de Direito Administrativo”, vol. 31, pág. 301).

19. No direito comparado não se modifica o panorama. Na França, onde a cláusula rebus sic stantibus renasceu com a famosa decisão do Conselho de Estado de 30 de março de 1916 (Compagnie Générale d’Eclairage de Bordeaux c. Ville de Bordeaux), a teoria da imprevisão consolida os contratos administrativos, abalados pela álea extraordinária e intolerável. A ela se referem, sem discrepância apreciável, os mestres do direito administrativo gaulês, como HAURIOU (“La jurisprudence administrative de 1892 à 1929”, vol. III, pág. 602), JÈZE (“Princípios generales del Derecho Administrativo”, vol. 4, págs. 3 e segs.), BONNARD (“Précis de Droit Administratif”, 1935, pág. 566), WALINE (“Traité élémentaire de Droit Administratif”, 1950, pág. 584), DUEZ e DEBEYRE (“Traité de Droit Administratif”, 1952, pág. 572) e LAUBADÈRE (“Traité élémentaire de Droit Administratif”, 1953, pág. 454).

20. Na Argentina, BIELSA (“Derecho Administrativo”, vol. I, pág. 354), M. A. BERÇAITZ (“Teoria general de los contratos administrativos”, pág. 329) e, especialmente, ROBERTO TELLO (“La Teoria de la imprevisión en los contratos de derecho público”, 1946) trataram da matéria que, na Itália, foi regulada, de modo permanente, pela legislação, segundo informa ZANOBINI (“Corso di Diritto Amministrativo”, vol. IV, pág. 376).

21. A nossa jurisprudência administrativa, em vários casos, recentemente arrolados nos trabalhos de ALFREDO DE ALMEIDA PAIVA e ALCINO SALAZAR, acima indicados, tem admitido o exame do reajustamento de preços, à luz da teoria da imprevisão e do chamado “fato do príncipe”. Também os nossos tribunais, como indicou ALCINO SALAZAR, não repelem a revisão excepcional dos contratos, pela superveniência de condições imprevistas e excessivamente onerosas.

Teoria da imprevisão

22. A teoria da imprevisão salva ao princípio da imutabilidade dos contratos, de aplicação excepcional e restrita, sobretudo quando contraria norma legal expressa, como, no caso, o art. 1.246 do Cód. Civil. A sua invocação pressupõe um estado de crise, uma revolução na matéria de fato que tenha, inesperadamente, submetido o empreiteiro a um prejuízo intolerável. Não é demais insistir, com o refôrço de GASTON JÈZE, na sobriedade da terapêutica:

“La teoria de la imprevisión és una teoria excepcional; por lo que es preciso aplicarla en forma restrictiva y no extensiva” (ob. cit., pág. 44).

23. A álea ordinária, o encargo previsível ou suportável, cabe, por fôrça de lei e do contrato, a quem se obrigou a construir. É o ônus usual do negócio, o risco comercial comum, que não pode recair sôbre o outro contratante. O fato de se verificar, no curso da execução do contrata, acréscimo no custo de mão-de-obra ou dos materiais não propicia, por si só, a revisão do preço pactuado.

24. A teoria da imprevisão apenas cogita da álea econômica extraordinária, que, pela impossibilidade de previsão e pelo excessivo pêso de sua incidência, deve ser dividida entre ambos os contratantes.

25. Definem DUEZ e DEBEYRE, em obra recente, o âmbito do remédio de exceção:

“… la théorie de l’imprevision, pour entrer en jeu, suppose des evenements économiques indépendents de la volonté des parties et qui présentent une triple caractéristique: 1º – faits exceptionnels, ils sortent pour leur nature ou pour leur amplitude, de la normale; 2º – faits imprévisibles: il n’était pas vraisemblablement possible de les prévoir lors de la passation du contrat; 3º – faits déterminant un bouleversement de la situation financière du concessionnaire, telle qu’elle resulte du contrat” (“Traité de Droit Administratif”, 1952, pág. 573).

26. O prejuízo tolerável, embora inesperado, não configura a hipótese, nem tampouco aquêle que, razoàvelmente, pudesse ser previsto. É necessário que o dano seja, ao mesmo tempo, imprevisível e insuportável, para que se possa receitar a cirurgia heróica, convocando-se o juiz, ou a autoridade administrativa, para violar a fisionomia do contrato, normalmente intangível.

27. A teoria da imprevisão se endereça, como ficou assinalado, aos fatos independentes da vontade de ambas as partes. Os atos voluntários da administração que possam afetar a economia do contrato sòmente autorizam a indenização em casos especiais. Quando a medida administrativa atinge, especial e diretamente, o contratante particular, tornando mais onerosa a execução contratal e gerando benefício para a administração, a teoria do “fato do príncipe” autoriza seja Indenizado o prejuízo.

28. É necessário, contudo, à sua configuração, que se trate de ato voluntário da própria entidade pública contratante. Os prejuízos decorrentes de leis ou regulamentos de ordem geral não se enquadram na teoria do fato do príncipe, mas na imprevisão. Nesse sentido são uniformes a doutrina e a jurisprudência francesas, que servem de paradigma à tendência revisionista (WALINE, ob. cit., pág. 526; DUEZ e DEBEYRE, ob. cit., pág. 570; LAUBADÈRE, ob. cit., pág. 450; “Revue du Droit Public et de la Science Politique”, janeiro-março-1952, tomo 68, nº 1, página 202).

29. Entre nós, a revisão de preços em contratos administrativos de empreitada sòmente tem sido acolhida nas bases acima expostas, ou seja, com a exigência da imprevisibilidade e da intolerância das mutações financeiras supervenientes.

Declara TEMÍSTOCLES CAVALCÂNTI, em parecer emitido como consultor geral da República:

“A simples imprevisão não basta para justificar a aplicação da doutrina da revisão dos contratos, especialmente de empreitada”.

“É preciso considerar, em primeiro plano, a boa-fé no contrato e, em segundo lugar, a superveniência de acontecimentos tão graves que hajam influído na própria estrutura econômica do contrato, ocasionando prejuízos ao empreiteiro” (“Rev. de Direito Administrativo”, vol. III, pág. 393).

OSCAR SARAIVA anuncia, como pressuposto indispensável à aplicação da cláusula rebus sic stantibus, que “sòmente a mutação inesperada e violenta das condições econômicas e sociais, trazendo consigo a característica de verdadeira fôrça maior, é que poderá justificar alterações nas condições de tempo ou de custo dos contratos de empreitada” (“Revista de Direito Administrativo”, vol. I, página 36).

30. FILADELFO AZEVEDO falou em “inopinada subversão de valores que influiria não apenas para diminuir ou suprimir lucros esperados do negócio, mas para ameaçar de ruína o contratante”, e FRANCISCO CAMPOS alude a “acontecimento extraordinário e inevitável que, se estivesse na sua previsão, teria impedido a formação do contrato” (apud ALFREDO DE ALMEIDA PAIVA, “REVISTA FORENSE”, vol. 141, págs. 31-32).

Considerações sobre o caso

31. A concessão do favor pleiteado pela firma B. Dutra & Cia. Ltda. reclama, portanto, a comprovação daqueles fatores essenciais: 1º, o de que se verificaram fatos supervenientes, de previsão impossível ou difícil; 2°, que dêsses fatos resultou deficit na execução das obras, e 3º, que, em virtude dêsse deficit, a emprêsa em causa foi onerada, de forma intolerável e excessiva.

32. Não encontro, no processo, qualquer elemento que possibilite uma conclusão afirmativa sôbre qualquer dêsses pressupostos. Não basta, como é óbvio, que a execução das obras tenha excedido o preço contratado, para que se reconheça a obrigação de indenizar. É necessário que o deficit tenha como causa, direta ou indireta, fatos inesperados e imprevisíveis.

33. A indenização pleiteada compreende, como vimos, três parcelas distintas: o pagamento do repouso semanal remunerado, o do impôsto de vendas e consignações e a cobertura de danos resultantes de cheia do rio. Serão tais motivos suficientes para elevar o preço da empreitada, que a lei declara imutável? Estão dotados daquele requisito de imprevisibilidade, de surprêsa, de desconhecimento total que se exige para o benefício de revisão contratual?

34. O pagamento aos empregados do repouso semanal remunerado é obrigação constante do art. 157, nº VI, da Constituição de 1946, que o contratante não podia ignorar. Por outro lado, à data da assinatura do contrato, já se achava em adiantada elaboração o ato legislativo que, afinal, se converteu na lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949. Adotando, como base de cálculo para custo de mão-de-obra, valores que, notòriamente, não iriam subsistir, durante o prazo de duração do contrato, o empreiteiro assumiu o risco do acréscimo da verba de pessoal, que, aliás, deve ter sido agravada pelo atraso na conclusão dos serviços que, estabelecida para fevereiro de 1949, foi, sucessivamente, prorrogada até janeiro de 1952 (fls. 201).

35. Menos lógica, ainda, é a pretensão de transferir à União o ônus de pagamento do impôsto estadual de vendas e consignações que incidiu sôbre o material aplicado nas obras. Trata-se de obrigação fiscal de responsabilidade da firma contratante, que não podia ser por ela ignorada. Se a firma entende indevido ou inadequado o impôsto, deve agir em defesa de seus interêsses perante o fisco local. Não se justifica, porém, que a União seja convocada a pagar impostos estaduais a que não está obrigada, entre outras razões, à vista da imunidade tributária recíproca das pessoas de direito público (Constituição, art. 31, nº V, a).

36. Finalmente, não há elementos comprobatórios de que os alegados acidentes com tubulões e caixões de obras fôssem imprevisíveis ou inevitáveis. Os trabalhos de construção em área fluvial estão, normalmente, sujeitos às variações do nível hidrográfico, cabendo ao executor providenciar no sentido de não ser por elas surpreendido em fase inconveniente da realização das obras. Nenhum indício foi indicado de que a cheia verificada no rio excedesse, por sua natureza ou violência, à previsão comum.

37. Em conclusão, o contrato de empreitada, firmado por preço certo, não pode ser modificado no tocante às suas cláusulas financeiras (art. 1.246 do Código Civil), a não ser na hipótese da álea econômica extraordinária, favorecida pela cláusula rebus sic stantibus. O risco do negócio, a margem normal de lucros ou perdas, é matéria de exclusivo interêsse do empreiteiro, com a qual nada tem a ver a União.

38. Nenhuma prova ou indício foi oferecido da existência de fatos inesperados e imprevisíveis, nem tampouco de que dêles tenha resultado ruína iminente ou prejuízo intolerável e vultoso para a firma. Não se fêz, nesse sentido, nenhuma verificação ou perícia contábil, como nem sequer se documentou a exatidão dos créditos reclamados.

39. Sou, assim, de parecer que, não se tendo comprovado, na hipótese, as circunstâncias extraordinárias que, segundo a teoria da imprevisão, facultam, excepcionalmente, o reajustamento de preço em empreitadas de obras públicas, não se justifica o pagamento da importância pretendida.

É o meu parecer, S. M. J.

Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1953. – Caio Tácito, consultor jurídico do Departamento Administrativo do Serviço Público.

I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:

  1. Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
  4. A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
  5. O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
  6. As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.

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