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ADMINISTRATIVO
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
As Obrigações Do Servidor Público Fora De Seu Serviço, de Philippe Biays

Revista Forense
28/05/2025
SUMÁRIO: Introdução. As obrigações de caráter administrativo. Disciplina do serviço. Obrigações de caráter político. Obrigações para com a Nação. Obrigações para com o regime político. Obrigações para com o govêrno estabelecido. Conclusão.
INTRODUÇÃO
* O Estatuto do funcionário foi elaborado, segundo a fórmula de HAURIOU,
em tôrno da idéia de que êste é um cidadão especial, sujeito a obrigações que em nada se confundem com as dos demais cidadãos. O fato de que o servidor detém uma parcela, por pequena que seja, de, poder público, exige de sua parte submissão a uma série de obrigações particulares.1
A aplicação dos princípios democráticos leva a reconhecer-se, ao funcionário, perfeita igualdade no cotejo com os outros cidadãos. Mas as necessidades da hierarquia e da disciplina impedem a aceitação pura e simples dêste ponto de vista. O pertencer à função pública obsta o pleno exercício, pelo servidor, de suas liberdades, seja no exercício de suas funções, seja fora de seu serviço.
Que, no exercício de suas funções esteja o servidor submetido a uma série de obrigações que não são as dos demais cidadãos, é coisa normal. É razoável que a liberdade de ação do funcionário seja limitada; esta limitação é necessária para que os governantes e as autoridades públicas competentes possam cumprir o seu dever de administrar e de fazer funcionar o serviço segundo as necessidades do interêsse geral. Vinculado pelo dever da obediência, o funcionário tem uma tarefa a cumprir, sendo necessário consagrar-lhe todos os instantes que passa em seu serviço. Não é, decerto, em seu local de trabalho que o servidor poderá ceder aos atrativos da política: “A repartição não é um forum.”
Fêz-se durante muito tempo uma distinção particular entre duas liberdades, cujo exercício, de parte do funcionário, é inseparável de sua atividade profissional, e cuja compatibilidade com o princípio da hierarquia administrativa se discutia: a liberdade sindical e a liberdade de greve.
Assim, pois, no exercício de suas funções, o servidor figura como uma categoria especial de cidadão.
Mas, uma vez cumprida a sua tarefa, terminadas as suas horas de “serviço”, não volta o funcionário a igualar-se a todos os outros cidadãos? Não será acaso normal que, fora de sua repartição, êle recupere a liberdade de movimentos comum a todo cidadão, a qualquer simples particular?2
Embora seja um cidadão, especial, o funcionário de modo nenhum é um cidadão diminuído, atingido por alguma capitisdeminutio que faria dos agentes públicos cidadãos de, segunda classe. Não obstante, a função é uma espécie de túnica de Nesso que o servidor não pode despir por completo.
Com efeito, não existe solução de continuidade, nenhuma brecha aberta entre o serviço e o que ocorre fora dêle. A liberdade do funcionário fora da repartição é limitada em sua vida extraprofissional: de um lado, na vida privada, e de outro, na vida política.
As necessidades do serviço, em primeiro lugar, impõem ao funcionário, fora de suas funções, uma série de obrigações. A utilização que êle faz de seu tempo de folga não deve absorver as suas fôrças e sua atividade ao ponto de pô-lo em estado de inferioridade, sob o ângulo meramente técnico, para o cumprimento de sua tarefa de funcionário, que é a sua missão primordial. Ademais, é preciso ter em mente que o servidor deve manter um grau de dignidade que lhe permita desempenhar de modo satisfatório o seu emprêgo público. A autoridade do funcionário em seu pôsto depende, em certa medida, da atitude por êle observada fora de sua repartição. “O laço entre o funcionário público e o serviço excede o tempo durante o qual êste é desempenhado; ultrapassa o lugar onde o cargo é exercido”.3
Em segundo lugar, a vida política do funcionário fora de sua repartição está sujeita a uma série de obrigações. É preciso, todavia, partir do princípio de que a liberdade política existe para o funcionário como para todos os outros cidadãos. Esta liberdade vincula-se à essência mesma da democracia. O servidor se torna um zelador, um propagandista do govêrno constituído, sòmente nos países totalitários ou sob o spoilsystem americano, condenado pela lei de 10 de janeiro de 1883,4 em virtude do qual cada mudança de orientação política era acompanhada de uma renovação do pessoal das administrações públicas, excluía tôda liberdade de opinião do funcionário.5
Em França os textos consagram a liberdade de vida política do servidor fora do âmbito de seu serviço. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclama, em seu art. 10, que “ninguém será molestado em razão de suas opiniões, mesmo as religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”, e o artigo 11 explícita: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever e imprimir livremente, ressalvada a responsabilidade pelo abuso desta liberdade, nos casos determinados em lei”. A doutrina, unânime, reconheceu que, não havendo ocorrido nenhum texto legal para limitar o campo de aplicação desta liberdade em detrimento dos servidores públicos, podiam êstes reivindicar aquêles benefícios como todos os outros cidadãos. A liberdade de opinião dos funcionários é ainda muito mais certa, no plano do direito positivo, desde a entrada em vigor da Constituição de 27 de outubro de 1946. Em seu Preâmbulo, com efeito, restitui ela o valor constitucional à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. O mesmo Preâmbulo precisa, em sua alínea 5ª, que “ninguém será lesado em seu trabalho ou em seu emprêgo por motivo de suas origens, opiniões ou crenças”. Por fim o art. 16 da lei de 19 de outubro de 1946, que estatui o desempenho da função pública, dispõe que “não poderá figurar nos assentamentos individuais do funcionário menção nenhuma às opiniões políticas, filosóficas ou religiosas do interessado”, o que significa claramente que, em caso nenhum, poderá o servidor ser prejudicado sob êste triplo ponto de vista.
A liberdade de opinião política, que condiciona a liberdade de consciência, a liberdade de expressão, a liberdade de reunião, aparece destarte assegurada ao funcionário, fora de seu serviço, de forma completa.
Sem embargo, deve-se conciliar esta liberdade com os imperativos da função pública e a necessária coesão da ação governamental. Na verdade, se a liberdade é uma coisa, a manifestação desta liberdade é outra. Assim o funcionário será submetido a um conjunto de deveres exteriores ao seu serviço, no que tange às manifestações de sua vida política em face do govêrno ao qual serve, deveres êstes, aliás, consideràvelmente reforçados para certos funcionários.
As obrigações do servidor fora de sua repartição apresentam, por conseguinte, um aspecto administrativo e um aspecto político.
Aspecto administrativo: as necessidades do serviço – com os seus imperativos de imparcialidade e de disciplina imporão ao funcionário uma série de obrigações.
Aspecto político: o Estado, a cujo serviço se encontra o funcionário, exigirá dêste, fora de suas funções, uma certa atitude a seu respeito.
O art. 5º da lei de 14 de setembro de 1941 sôbre o estatuto da função pública, declarada nula pela ordenação de 9 de agôsto de 1944, abrangia perfeitamente, êste conjunto de obrigações de parte o funcionário fora do serviço. “O funcionário deve em sua vida privada evitar tudo o que possa, por sua natureza, comprometer a dignidade da função pública; deve, em quaisquer circunstâncias, respeitar e fazer com que seja respeitada a autoridade do Estado”.
Com efeito, o próprio conceito de função pública realiza uma verdadeira osmose entre o administrativo e o político.
I. AS OBRIGAÇÕES DE CARÁTER ADMINISTRATIVO DO SERVIDOR FORA DE SEU SERVIÇO
Faz-se mister remontar ao princípio que está no fundamento da organização da função pública. É preciso partir desta idéia, de que a situação do servidor deve ser estabelecida sob o ponto de vista do interêsse do serviço público. As regras desta situação devem ser concebidas de modo a assegurar o bom funcionamento do serviço público, não devendo existir tais regras senão na medida em que forem necessárias. Deverão ser reforçadas se se constatar que tal refôrço é de molde a facilitar a consecução do objetivo visado. A extensão dessas obrigações estranhas ao serviço fica, pois, essencialmente condicionada às necessidades do mesmo.
Por um lado, certas obrigações do funcionário fora de suas funções são decretadas para garantir a independência do serviço. Por outro lado, impõem-se ao servidor deveres suplementares, exteriores ao seu cargo, para garantir a disciplina do serviço.
A. As obrigações do servidor fora de suas funções, e a independência do serviço
Certas obrigações do servidor, fora de suas funções, são decretadas no interêsse do serviço, a fim de lhe garantir a independência. Não existe, na verdade, absoluta solução de continuidade entre o serviço e o que se passa fora dêle. O que ocorre fora, da repartição tende a agir sôbre a independência do funcionário, e, portanto, do serviço. Para assegurar a sua independência – e garantir a do serviço ver-se-á submetido o funcionário a um conjunto de deveres, além dos atinentes às suas funções:
a) deveres que têm por fim garantir a independência do servidor na função pública por êle exercida;
b) deveres que têm por fim garantir a independência do servidor em relação aos administrados.
Uma série de dispositivos6 tem por objetivo em primeiro lugar garantir o total devotamento do servidor ao seu cargo, impedindo-o de exercer alhures interêsses passíveis de colisão com os seus deveres funcionais. Está, pois, regulamentada a atividade profissional paralela do funcionário.
Um decreto de 4 de abril de 1934, em seu art. 6°, já vedara a todos os funcionários o preenchimento, fora de seu serviço, das funções de diretor, administrador, consultor técnico, jurídico ou fiscal nas sociedades comerciais, industriais e financeiras. No mesmo sentido, a lei de 11 de janeiro de 1936 interditou aos funcionários o declinarem e fazerem publicar a sua condição, em seguida aos seus nomes, em prospectos e anúncios das emprêsas de finalidades comerciais, industriais ou financeiras.
Os arts. 8º e 9º da lei de 19 de outubro de 1946, que estabelece o Estatuto dos Funcionários Públicos, fixam o princípio da incompatibilidade da condição de funcionários com certas atividades. Estipula o art. 8°: “É vedado a todo funcionário, qualquer que seja o seu cargo, possuir, por si mesmo ou por interposta pessoa, e sob qualquer título, em uma emprêsa sujeita ao contrôle de sua administração ou serviço, interêsses suscetíveis de comprometer a sua independência“. A jurisprudência administrativa sanciona tal interdição. Assim no aresto Pourcher, de 6 de julho de 1952,7 o Conselho de Estado indeferiu a petição do diretor do Estabelecimento Regional de Navegação Aérea da Algéria, que fôra condenado a um retrocesso ao cargo inicial de sua carreira e à transferência para a metrópole, tendo em vista que êste funcionário participara simultânea e ativamente em numerosas emprêsas particulares que, quase tôdas, passaram a ser fornecedoras da repartição por êle dirigida.
Nos têrmos do art. 9º, “é vedado a todo funcionário o exercício, a título profissional, de atividades privadas lucrativas de qualquer natureza; as condições em que, excepcionalmente, poderá ser levantada esta interdição, estão estabelecidas pelo decreto de 29 de outubro de 1936 e nos textos subseqüentes”.
Esta noção – da proibição do exercício de uma atividade particular – já fôra desenvolvida no decreto-lei de 29 de outubro de 1936,8 modificado pela ordenação de 25 de agôsto de 1944 e pela lei de 20 de setembro de 1948, relativa às acumulações de cargos e vencimentos. Estipulava êsse decreto-lei, em seu art. 1º: “É vedado aos funcionários, agentes e trabalhadores dos serviços públicos do Estado, dos departamentos e das comunas, repartições (offices), estabelecimentos públicos e colônias, o exercício de uma profissão industrial ou comercial, o desempenho de um cargo privado remunerado, ou a execução, a título particular, de um trabalho mediante pagamento.
A lei de 28 de abril de 1952, que estatui a situação do pessoal público das comunas, reproduzir tais disposições, em seus arts. 4º e 5º.
O Conselho de Estado, chamado a pronunciar-se acêrca da questão de saber se um funcionário pode fora de seu serviço ser membro do Conselho de Administração de uma sociedade anônima, respondeu pela negativa em seu acórdão de 9 de fevereiro de 1949, considerando “que por um lado, do disposto na lei de 19 de outubro de 1946 e no decreto de 29 de outubro de 1936, modificado, e dos trabalhos preparatórios da lei de 19 de outubro de 1946, resulta que, sendo o objetivo de uma sociedade anônima, em princípio, a consecução de um lucro, o exercício das funções de administrador de tal sociedade é, por isto mesmo, uma atividade privada lucrativa interdita pelos dispositivos constantes do art. 9º da lei de 19 de outubro de 1936; que, por outro lado, esta proibição não seria passível de aplicação ao caso de uma sociedade que, embora revestida do aspecto de uma seriedade anônima, visa na realidade, um propósito desinteressado”.
O fato de se desligar um funcionário de seu serviço não o isenta inteiramente
de dependência em relação às suas antigas funções, quer se trate do servidor pôsto em disponibilidade, quer do servidor aposentado.
No que concerne ao primeiro,9 que continua a pertencer ao seu quadro de origem, convém recordar que permanece sujeito às interdições previstas nos artigos 8º e 9° da lei de 19 de outubro de 1948, a saber, a proibição de possuir interêsses cuja natureza possa comprometer a independência do funcionário.
A fim de verificar se o servidor em disponibilidade respeita tais determinações, deve a autoridade administrativa, em obediência ao art. 119 do Estatuto Geral, certificar-se, por meio de inquéritos, realizados em qualquer época e no mínimo duas vêzes por ano, de que a atividade do funcionário pôsto em disponibilidade realmente corresponde aos motivos por efeito dos quais foi colocado nesta posição.
No que se refere ao funcionário aposentado, intervieram os textos legais para evitar que êle ponha a sua experiência, seus conhecimentos e, em alguns casos, as suas relações, à disposição de interêsses particulares cuja vigilância lhe estava antigamente afeta. Nos têrmos do art. 136 do Estatuto Geral, certas atividades privadas são proibidas ao funcionário, após o seu afastamento do seu servido, e, segundo a sua categoria, durante dois, quatro ou seis anos.
Todavia, a êsse princípio de interdição de atividade anexa escapam algumas exceções e abrandamentos de ordem prática: de um lado, para a produção de obras científicas, literárias ou artísticas, e de outro, em beneficio dos membros do magistério, que podem exercer as profissões liberais decorrentes da natureza de suas funções. A mesma interdição aplica-se aos litígios pertinentes a jurisdições estrangeiras ou que envolvam potências estrangeiras, salvo prévia autorização dada pelo competente ministro de Estado.
É ainda, em segundo lugar, a idéia de independência, mas desta, vez a independência do funcionário em relação aos administrados, que vai acarretar para o servidor uma série de obrigações estranhas ao seu serviço.
Em princípio, o funcionário não tem que prestar contas das atividades de seu cônjuge. Não obstante, o art. 10 do Estatuto declara que, quando o cônjuge do servidor exerce uma atividade privada lucrativa a título profissional, “o funcionário deve declarar êste fato à administração, e a autoridade competente tomará, quando cabíveis, as medidas adequadas à salvaguarda dos interêsses do serviço, depois de ouvida a comissão administrativa paritária”. Neste casso, trata-se òbviamente de uma questão de bom-senso. Não há nenhum inconveniente, por exemplo, em que a mulher do carteiro mantenha uma mercearia; o mesmo não se daria, contudo, se a espôsa do fiscal dos impostos diretos abrisse um escritório de contencioso fiscal. O funcionário não se torna passível de nenhuma sanção disciplinar em conseqüência do fato. Não se pode obriga-lo a fazer cessar a atividade de seu cônjuge, mas a administração pode tomar medidas de precaução, legitimadas pelo interêsse do serviço, como, por exemplo, mudar as atividades ou a residência do funcionário, quando inconvenientes, tendo-se em vista a atividade do cônjuge.10
O Conselho de Estado lembra, em um aresto de 17 de fevereiro de 1922,11 que “a autorização marital exigida a tôda mulher casada comerciante… não poderia ser dada pelos funcionários senão em condições compatíveis com os deveres gerais pertinentes a suas funções; que, ao se reservar o direito de exercer, nesta conexão, um contrôle prévio destinado a lhe permitir apreciar, em cada caso de espécie, se a profissão ou o comércio que a mulher de um de seus subordinados se propõe a exercer é de molde a ferir a dignidade ou a “independência” dêste último, o chefe de polícia agiu dentro do limite dos poderes, que lhe incumbem, de zelar pelo bom funcionamento dos serviços a êle cometidos”.
O decreto de 19 de junho de 1950, que regula a situação dos prefeitos, dispõe, em seu art. 23, que não lhes é facultado desempenhar as suas funções em departamento onde o seu cônjuge exerça uma atividade lucrativa, pública ou privada.
Precisa o art. 13 do Estatuto que os funcionários são obrigados à observância da discrição profissional, independentemente dos preceitos penais (art. 378 do Cód. Penal) relativos ao sigilo profissional, para tudo, o que concerne aos fatos e as informações de que tomam conhecimento por ocasião ou no exercício de suas funções. Impõe-se-lhes esta obrigação no desempenho de seus cargos evidentemente, mas também fora do serviço. Não se admite que o funcionário aufira vantagens do que pôde conhecer no decurso de suas funções,12 e com isto subentendem-se, por exemplo, os agentes do fisco, para fora de sua repartição favorecer e informar fulano ou beltrano.13
A idéia da independência do serviço público está na base de tôdas as obrigações impostas aos funcionários fora de seu serviço. É uma idéia de disciplina inerente a certas funções públicas – dando-se a esta expressão o seu mais lato sentido – que está na origem dos deveres suplementares impostos aos servidores fora de suas funções.
B. As obrigações do servidor fora de suas funções e a disciplina do serviço
Pode parecer estranho, à primeira vista, o estabelecimento de uma certa correlação entre as obrigações do funcionário fora de seu serviço e a disciplina dêste. Afastado de sua função, estaria o servidor vinda submetido à disciplina do serviço? Deve-se responder pela afirmativa. A disciplina do serviço “persegue” os funcionários mesmo fora de seu trabalho, impondo-lhes obrigações em sua vida particular:
a) seja quando a boa marcha do serviço puder ser afetada pela atitude, pelo comportamento dos funcionários em sua conduta;
b) seja quando as necessidades do serviço justificarem uma intervenção administrativa na vidafamiliar de certos funcionários.
“A vida privada deve ser murada”, dizia ROYER-COLLARD. Em princípio, o funcionário desfruta em sua vida privada, de inteira liberdade de pensamento, de plena liberdade de atitudes. O art. 16 da lei de 19 de outubro de 1946 timbra em afirmar que “não poderá constar dos assentamentos individuais do servidor menção nenhuma das opiniões políticas, filosóficas ou religiosas do interessado.14 Mas esta regra comporta uma limitação. Em nenhuma hipótese pode a liberdade do funcionário culminar no escândalo. O escândalo é o que mais teme a administração. “Considerando”, declare o Conselho de Estado em um aresto de 16 de julho de 1947, BensmainGhalemBenHadj, “que, em virtude de seus direitos gerais, cabe à administração o direito de demitir os agentes culpados de faltas que impossibilitem a sua manutenção no exercício de suas funções, muito embora tenham sido essas faltas cometidas fora das ditas funções…”
Subentende-se que êste dever, impôsto ao servidor e m sua vida privada, é função da categoria do agente e da natureza do cargo que ocupa. Um escrivão de polícia em uma cidade da província pode tornar-se objeto de uma medida disciplinar por motivo do escândalo ocasionado por sua vida particular. E o Conselho de Estado no aresto Féry, de 22 de julho de 1949, faz questão de ressaltar que, neste caso, a sanção foi legítima “em atenção às funções desempenhadas pelo requerente”. No mesmo sentido, pode-se citar o aresto Athiel, de 6 de abril de 1951: “É de molde a justificar uma sanção disciplinar, relativa ao cargo que exerce, o fato de que um guarda mantenha as suas relações ou companhias duvidosas e incompatíveis com o dito cargo”.
O Conselho de Estado controla a apreciação feita pela administração. Recusa-se a anular as sanções disciplinares infligidas aos funcionários quando foram arrogadas por “fatos maculadores da honra e da probidade”, “considerando – específica, no aresta Bérard, de 3 de janeiro de 1947 – “que o senhor B…, inspetor de polícia, foi exonerado de suas funções em virtude de incidentes escandalosos nos quais estêve envolvido em 1937, em Oudjda, e que eram de natureza a comprometer a sua honra”. “Fatos de notório mau comportamento “justificam uma recusa de reintegração”, específica um aresto SenhoraRicon, de 4 de julho de 1947. Mas por vêzes basta uma simples ofensa à dignidade do cargo. No aresto Houssais, de 9 de julho de 1948, o Conselho de Estado indefere o requerimento de um funcionário cuja mulher explorava uma loja de bebidas, “considerando que a nomeação dêste agente, subordinada que estava à cessação daquele negócio, pôde ter legalmente revogada pelo fato de que essa condição não fôra preenchida”.
Em se tratando de independência do serviço como vimos, as obrigações recaem mesmo sôbre o funcionário saído do serviço. Neste caso, a administração lança mão de seus “poderes gerais” – repetindo a fórmula do Conselho de Estado – para exonerar servidores por motivo de fatos anteriores à sua nomeação, se êstes fatos, comprometendo gravemente a moralidade, são, por sua natureza, inconciliáveis com o exercício da função rública”. Em um aresto Sarrail, de 5 de dezembro de 1930, o Conselho de Estado denega provimento a o recurso de um agente de polícia demitido pela administração, porquanto, vários anos antes, fôra êle condenado a uma pena correcional, muito embora apagada, por uma anistia. Ainda mais típico é o aresto Grego, de 16 de maio de 1931. Após a realização de um concurso para o cargo de extranumerário do Fisco, a administração vem a ter conhecimento de fatos graves inquinando a idoneidade de um candidato aprovado. Consultado, o Conselho de Estado rejeita a petição do candidato, “considerando que se o sr. G… houvesse sido nomeado extranumerário, os atos em aprêço teriam justificado a sua exclusão logo após o seu ingresso no serviço de impostos”.
Há muito mais; cargos existem para os quais a vida privada não se separa da vida pública. Nestes casos a administração não se contenta em sancionar disciplinarmente os fatos concernentes à conduta do funcionário, vai a ponto de intervir na vida familiar dos titulares dêsses cargos. A liberdade da vida particular será ainda restrita sob certos aspectos: o matrimônio e o domicílio.
No que se refere ao casamento, de há muito os textos legais subordinaram o de certos funcionários à necessidade de uma autorização dada por uma autoridade pública. Isto ocorria com os militares, em virtude de decretos remontando a 1808, e, com os diplomatas, por fôrça de um decreto de 18 de junho de 1841 (ver, desde então, para os militares dos exércitos de terra e mar, a lei de 31 de marco de 1928, art. 58; decreto de 26 de outubro de 1937, art. 29; para os agentes diplomáticos e consulares, decreto de 19 de setembro de 1951, arts. 43 a 46). O art. 6° da lei de 14 de setembro, de 1941, que dispunha sôbre o Estatuto, ia mais longe. Os regulamentos próprios de cada administração podiam subordinar o casamento dos funcionários a uma autorização do secretário de Estado. A disposição era de considerável gravidade. Não se compreende que em tôdas as repartições aparecem regulamentos condicionando o matrimônio à necessidade de uma permissão. Nenhum dispositivo dêste gênero foi reproduzido na lei de 19 de outubro de 1946, que dispõe sôbre o Estatuto geral da função pública.
Outra limitação atual toca o domicílio de certos funcionários. Ainda neste caso, a lei de 14 de setembro de 1941 era muito mais geral, ao estipular que os regulamentos próprios de cada repartição poderiam compelir os servidores a fixar a sua residência, no interêsse do serviço, em um lugar determinado. Embora tal disposição geral não fôsse retomada na lei de 19 de outubro de 1946, nem por isso deixam certos servidores de estar obrigados a estabelecer a sua residência em lugar determinado. É o que ocorre com os magistrados. Também o prefeito tem o dever de residir na capital do departamento e dêle não se pode ausentar sem autorização. O mesmo sucede com os militares, a quem não é facultado se afastarem de sua guarnição senão mediante licença, cuja concessão depende do poder discricionário do respectivo comandante.
Todos os funcionários, contudo, participam, em graus desiguais, do poder público: desde as autoridades administrativas que, por delegação ou instituição, detêm o direito de decisão, até os menores agentes executivos. Esta participação do servidor no poder público suscita o problema de sua subordinação ao Estado.
II. AS OBRIGAÇÕES DE CARÁTER POLÍTICO, DO SERVIDOR FORA DE SEU SERVIÇO
Aborda-se aqui um problema de direito constitucional, vez que não é mais o funcionamento do serviço que está em jogo, mas sim a aplicação dos princípios mesmos do regime democrático. A liberdade de opinião “no estado puro” é absoluta. Mas como a manifestação, pelos servidores, de suas opiniões pode pôr em perigo a estrutura do Estado democrático ou a coesão da ação governamental exercida em nome da maioria, as obrigações são impostas ao funcionário, fora de seu serviço, para com a Nação, o regime, o govêrno.
A. Obrigações do servidor, fora de seu serviço, para com a Nação
Para todo funcionário, há um dever de lealdade para com a Nação. Êste dever se lhe impõe como a todos os outros cidadãos, mas, para êle, pode ser disciplinarmente sancionado. A obrigação em aprêço foi evocada em uma decisão do Conselho de Estado de 25 de janeiro de 1935, o aresto Defrance. O Sr. D…, servindo na direção da artilharia naval em Cherburgo, havia exclamado, durante uma reunião política: “É a bandeira vermelha que abaterá a ignóbil bandeira tricolor”. A lei penal não sanciona o insulto à bandeira. Uma medida disciplinar – diminuição de antigüidade com retenção dos vencimentos durante um ano – foi imposta pelo ministro da Marinha. O recurso impetrado pelo Sr. D… perante o Conselho de Estado foi rejeitado. A lealdade para com a Nação é uma noção esquiva. Poder-se-á ver uma violação dela na hipótese – aliás, hipótese limite – da recusa, de um diretor de escola, em participar das cerimônias oficiais organizadas por ocasião da comemoração do Armistício de 11 de novembro de 1918? O Conselho de Estado, no aresto Vrecord de 5 de novembro de 1952, ressaltou o caráter faltoso dessa abstenção e se recusou a anular a sanção disciplinar inflingida.
De certa forma o legislador sancionou de maneira mais geral esta obrigação de lealdade em matéria de depuração. Dessarte, pôde o Conselho de Estado considerar como uma infração a êste dever, suscetível de provocar – além da eventual cominação de sanções penais – a aplicação do direito disciplinar, o fato de haver um servidor colaborado com o inimigo ou de se ter entregue à propaganda em favor dêle. A propaganda, feita por um funcionário fora de suas funções, declara o aresto Pichon de 18 de julho de 1947 em favor do movimento “A Rosa dos Ventos”, justifica uma recusa de ressarcimento. O aresto Carricaburu, de 21 de fevereiro de 1947, é ainda mais claro. Nêle o Conselho de Estado negou-se a anular uma sanção disciplinar infligida a um diretor de escola, “considerando que o Sr. C… manifestou com veemência, na escola e fora dela, opiniões favoráveis… à política de colaboração com a Alemanha”. É certo que afirmações isoladas, proferidas em particular, não constituem fatos de molde a justificar uma punição segundo a ementa da ordenação de 27 de junho de 1944 sôbre a depuração administrativa; em conformidade com o que especifica o aresto Gilbert, de 8 de janeiro de 1948, sòmente podem ser interpretadas como propaganda afirmações exprimidas em público. A cumplicidade com o inimigo é contrária ao dever de lealdade do servidor para com o seu país, dever êste anterior e estranho a qualquer texto legal. A propósito, é de se notar ainda que o funcionário permanece sujeito a tais obrigações de lealdade mesmo após a sua aposentadoria. O Conselho de Estado considerou válido, em um aresto Brévié, de 6 de janeiro de 1950, um decreto que visava, a título de depuração, um governador de colônias, aposentado, por motivo de atos realizados por êle mesmo depois de sua admissão à aposentadoria. “Conciderando”, reza o aresto Gilbert, de 9 de janeiro de 1948, supramencionado, “que das disposições do art. 1º da ordenação de 27 de junho de 1944, relativa à depuração administrativa, resulta que a todos os funcionários, em atividade ou aposentados, podem ser infligidas sanções disciplinares em razão de seus atos…”
Mas está obrigação de lealdade para com a Nação é de difícil formulação, motivo pelo qual o juiz administrativo freqüentemente se vale da lei penal para definir faltas de natureza duvidosa. O Conselho de Estado, referindo-se de modo implícito à lei penal de 28 de julho de 1894, que tem por objeto reprimir Os Movimentos anarquistas, negou-se a anular uma medida disciplinar condenando um funcionário por suas opiniões anarquistas, manifestadas fora do seu serviço. É a hipótese verificada no aresto Chobeaux, de 19 de dezembro de 1919, no qual o Conselho de Estado especifica que “não é inquinada de abuso de poder a medida disciplinar tomada contra um agente dos Correios, Telégrafos e Telefones (P. T. T), motivada por artigos de jornal, escritos por êsse agente, e instigando à revolta os cidadãos”.
Na realidade, porém, encontramo-nos aqui no limiar de um outro problema: a lealdade para com o regime.15
B. Obrigações do servidor, fora de seu serviço, para com o regime político
O aparecimento, em diferentes países, de um partido político visando à total supressão do Estado tal como nêles é concebido, e a uma subversão do regime estabelecido, fêz volver à atualidade êste outro aspecto da lealdade do funcionário: a lealdade para com o regime.
Em Portugal exige-se a todo os funcionários uma declaração, legalmente autenticada, de anticomunismo. O Conselho Federal suíço deliberou, em 5 de setembro de 1950, expulsar os comunistas dos serviços federais. Decidiu o govêrno belga, em 12 de setembro de 1950, “afastar, de todos, os serviços do Estado, as pessoas que apóiem abertamente a atividade de um grupo que haja sido qualificado, pelo govêrno, de revolucionário ou de antinacional”, medida que de fato visava aos comunistas. Na Grã-Bretanha, o Sr. Attlee declarava, nos Comuns, em 4 de abril de 1950: “A política do govêrno consiste em certificar-se de que nenhum membro do partido comunista, nem pessoa associada a êsse partido, esteja empregado em trabalhos que interêssem à segurança do Estado”. Mas é sobretudo nos Estados Unidos, em virtude do poderoso apoio que, neste sentido, prestaram certos senadores, que esta obrigação de lealdade de parte dos funcionários para com o regime, conheceu amplitude considerável. A idéia de “defesa do regime” foi expandida para submeter os servidores americanos – e até mesmo os funcionários internacionais (!) – a uma série de medidas destinadas a pôr à prova a sua lealdade. Pela obrigação de responder a certos quesitos ou a determinados inquéritos, sob juramento, chegou-se à exclusão de todo servidor simplesmente suspeito de outras opiniões-comunistas.
Todavia “é certo que, tôda vez que se esboça uma política no sentido de excluir da função pública os funcionários propagadores de lemas políticos, é difícil deter-se a meio caminho e não chegar à exclusão de todos os suspeitos, mesmo os que não sejam propagandistas”.16
Em França, a questão foi levantada perante o Conselho de Estado. Em agôsto de 1953, o secretário de Estado na Presidência do Conselho denegou, a cinco candidatos, inscrição no concurso de habilitação à Escola Nacional de Administração.17 Havendo os interessados recorrido, o Conselho de Estado, estatuindo no contencioso, anulou, por seu aresto de 28 de maio de 1954, as decisões ministeriais.18 O comissário do govêrno, Sr. Letourneur, havia afirmado que, dentre os motivos para a anulação, o Conselho de Estado podia reconhecer, como o sustentaram os recorrentes ao fornecerem uma série de presunções às quais o secretário de Estado nada respondeu, que as exclusões inquinadas basearam-se em motivos políticos. Ora… as opiniões políticas, que não se manifestem em condições incompatíveis com o exercício das funções solicitadas, não podem, legìtimamente, fundamentar um indeferimento do pedido de admissão ao concurso”.
O govêrno é periòdicamente acusado de excluir das funções públicas certos candidatos, por motivo de suas opiniões ou crenças. Aqui, porém, surge novo problema: o dos deveres do servidor face ao govêrno estabelecido.
C. Obrigações do servidor, fora de seu serviço, para com o govêrno estabelecido
Estas obrigações serão determinadas em função de dois princípios: o da democracia e o da hierarquia.
O princípio democrático assegura ao funcionário, fora de seu serviço, tôda a liberdade em relação ao govêrno. Exige que não se reduza o servidor, foro do âmbito de seu trabalho, ao papel de zelador, de propagandista do govêrno. Seria isto contrário ao Preâmbulo da Constituição de 27 de outubro de 1948 e ao artigo 16 da lei de 19 de outubro de 1948, que timbra em assegurar que, nos assentamentos cadastrais do funcionário, não poderá figurar “menção nenhuma às opiniões políticas, filosóficas ou religiosas do interessado”. A mais típica aplicação dêste princípio de liberdade é a que concerne aos funcionários do magistério. O princípio da liberdade de consciência deve ser conciliado com o da neutralidade e do laicismo do Estado.19 O domínio exato das exigências da neutralidade e da laicidade situa-se ùnicamente no exercício das funções. É possível, contudo, que, na manifestação de sua liberdade de consciência, esteja o servidor adstrito, mesmo fora de seu serviço, a uma certa reserva, ao que poderíamos denominar “a obrigação de tato”.
Inversamente, o princípio hierárquico obsta uma total liberdade política do servidor fora de sua função. As invectivas dirigidas pelo funcionário contra os governantes, contra os seus próprios chefes, ferem como que uma espécie de sentimento das conveniências. E, o que é pior, uma tal atitude do servidor, fora de seu trabalho, pede mais tarde impossibilitar-lhe o cumprimento satisfatório da tarefa a êle confiada em prol do bem comum.
Esta oposição entre os dois princípios encontra solução perante o Conselho de Estado; pela distinção, feita por êste órgão, entre funcionários técnicos e funcionários políticos. E em consideração a suas funções que se determinará a liberdade política de que pode usufruir o servidor fora de seu serviço.
A tecnicidade da função pública é o resultado da ampliação das atribuições do Estado, acarretando a criação de funções públicas nas quais, o caráter técnico é predominante, e por vêzes exclusivo de qualquer traço político. O bom funcionamento do serviço requer do servidor simplesmente que êle conheça bem e execute corretamente a técnica exigida pelo serviço. Pouco importa que um engenheiro do Departamento de Obras (Ponts et Chaussées) esteja animado de tais ou quais tendências políticas em relação ao govêrno. Se essas tendências são hostis e êle as exterioriza fora do serviço, não se pode censura-lo pelo fato.20
A jurisprudência do Conselho de Estado confirma, êste ponto de vista. No aresto, Chobeaux, de 19 de dezembro de 1919, referente a um operário montador dos Correios, Telégrafos e Telefones, que publicara artigos injuriosos ao govêrno vigente, o Conselho de Estado especifica que “nenhum dispositivo veda a colaboração em jornais políticos”.
Recentemente, o legislador derrubou a última limitação à liberdade de ação do mestre-escola, autorizando-o, pela lei de 16 de fevereiro de 1946, a candidatar-se ao conselho municipal de sua comuna. Não obstante, êste princípio de ausência de obrigação de parte do servidor técnico, fora de seu serviço, para com o govêrno, sofre uma exceção.
A tecnicidade do cargo de funcionário não dispensa êste, fora do exercício de suas funções, de evitar qualquer injúria, quer contra a administração, quer contra os seus chefes diretos, quando essa atitude o impedir de em seguida, cumprir convenientemente as suas atribuições. A jurisprudência do Conselho de Estado sôbre a matéria é constante no sancionar êsse dever de discrição, de reserva de funcionário fora de seu trabalho. No aresto CidadedeArmentières, de 11 de julho de 1939, o prefeito demitira o secretário-geral da prefeitura. “Considerando”, decide o Conselho de Estado, “que o Sr. G… (o secretário) se lançou a violentos ataques, por meio de artigos em jornais, contra o prefeito de Armentières, que, assim procedendo, incorreu em grande falta para com à reserva que lhe impunha a sua função de secretário-geral da Prefeitura; que, nestas condições, cabia legalmente ao prefeito demiti-lo…”. Mas não se trata, no caso, senão de uma exceção.
Se o princípio da liberdade política do servidor fora de sua função constitui a regra para os funcionários técnicos, o mesmo não sucede com aquêles que, além de sua eventual natureza técnica, desempenham certo papel político. Verificam-se hipóteses em que a função pública assume um caráter político que, por vêzes, encobre o seu caráter técnico para dominá-lo. O Sr. JEAN DONNEDIEU DE VABRES, em suas conclusões sôbre o aresto Teissier, proferido pelo Conselho de Estado em 13 de março de 1953, fala de função de autoridade.
Compreende-se fàcilmente que, em tais funções políticas, impõe-se uma estreita subordinação do funcionário e que, assim, lhe podem ser recusadas as liberdades públicas reconhecidas aos demais cidadãos. Pode-se-lhe contestar o direito de manifestar, fora de seu serviço, opiniões que comportem certa hostilidade para com o govêrno. Dada a natureza política da função, o bom desempenho dela exige uma certa conformidade das idéias do servidor com os pontos de vista políticos do govêrno no poder. A êste respeito, é preciso, ademais, observar-se uma certa gradação:
Para muitos funcionários, contenta-se o govêrno, em geral, com uma simples fidelidade silenciosa, ou mesmo com a ausência de manifestações hostis face a êle. Para outros, porém, não se trata mais de uma fidelidade tácita, mas de verdadeiro conformismo.
Em primeiro lugar, sempre se admitiu que o servidor, sem embargo de sua qualidade de cidadão, deve abster-se de certas manifestações políticas fora de seu serviço. E característico um texto referente a êste assunto, a saber, o art. 14
da lei de 30 de agôsto de 1883, que dispõe sôbre a magistratura: “Ao corpo judiciário é vedada tôda deliberação política”. Reserva feita a essa interdição, os magistrados são obrigados a uma independência absoluta em face da opinião do govêrno que se encontra momentâneamente no poder.
No que tange ao Exército, a Constituição de 1791 especificava: “Nenhuma corporação armada pode deliberar. Êste dispositivo foi textualmente reproduzido nas Constituições de 1793, do ano 3, do ano 8 e de 1848.
Semelhante lealdade para com o governo no poder é, evidentemente, exigida do pessoal da polícia. Em um aresto Magnin, de 20 de fevereiro de 1952, o Conselho de Estado negou provimento ao recurso de um agente de polícia, condenado a uma pena disciplinar de seis meses de disponibilidade, “considerando que da instrução consta haver o Sr. M… distribuído, na via pública, e na proximidade de um pôsto policial, panfletos políticos;21 que, muito embora tenha procedido a esta distribuição vestido à paisana e fora do serviço, o requerente, assim agindo, dotou uma atitude incompatível com a sua condição de cabo (sous–brigadier) dos guardas-civis da Cidade de Paris”.
Êste dever de reserva, exigido dos funcionários para com o governo, ressalta particularmente no aresta Teissier, de 13-3-953, já referido. O Sr. T…, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica, fôra exonerado de suas funções após o envio de uma carta-aberta – por um movimento do qual era presidente honorário – contendo ataques violentos e injuriosos ao governo. O Sr. T… defendeu-se ante o Conselho de Estado, alegando haver sido demitido por razões políticas, e que, assim fazendo, o govêrno violara os princípios constitucionais e o Estatuto Geral da função pública. “Mas, quanto mais importante é o cargo e constitui uma função de autoridade”, assinalou em seu parecer o Sr. JEAN DONNEDIÉU DE VABRES, “tanto mais direito assiste ao governo de esperar de quem o ocupa e, se em seu fôro interior, desaprova política do govêrno, reserva na “expressão dessa hostilidade”. Essa manifestação antigovernamental não era admissível em consideração ao cargo ocupado. O Conselho de Estado seguiu o seu comissário do governo e rejeitou a petição.
Tem sucedido que a essa ausência de exteriorizações hostis, exigida ao servidor, fora de seu serviço, com relação ao governo do momento, se substitua, mediante a instauração de um juramento, uma obrigação de lealdade muito mais desenvolvida. A história constitucional revela que o juramento político sempre tem sido uma providência ilusória para a consolidação de um regime. Escrevia CHATEAUBRIAND, sob a Restauração: “Assim como se conta a idade dos veados pelo número de ramos de seus comos, podem-se hoje contar as posições ocupadas por um homem pelo número de seus juramentos”. “Senhor”, dizia TALLEYRAND a LUÍS FILIPE, “estou no meu décimo terceiro juramento. Desejaria que fôsse o último”, e acrescentou que o juramento político é uma contra-senha para voltar ao espetáculo.
A Alemanha de Hitler e a Itália fascista haviam tornado compulsória para os funcionários a prestação de juramento perante o chefe do Estado. O governo de Vichy estabelecera, igualmente, um juramento de fidelidade à pessoa da marechal chefe do Estado, para os militares dos Exércitos de terra, mar e ar, para os magistrados, para os ministros e altos funcionários públicos.
Mas é óbvio que, para êstes últimos, não se trata mais de ausência de manifestação hostil, ou mesmo de fidelidade silenciosa, mas de um verdadeiro conformismo com a orientação esposada pelo govêrno no poder: é o caso, por exemplo, dos prefeitos, dos diretores de Ministério, dos chefes dos serviços de manutenção da ordem ou da defesa nacional: trata-se, aqui, de servidores em cujos cargos predomina o caráter político.
Aliás, êste conformismo exigido aos funcionários de nível muito elevado decorre da própria lei. Com efeito, as alíneas 2 e 4 do art. 3º da lei de 19 de outubro de 1948 dão a êsses servidores uma situação essencialmente revogável, mantida ou anulada discricionàriamente. A alínea 2 especifica que “os regulamentos privativos de cada repartição e serviço determinarão os cargos superiores cujo preenchimento fica à discrição do govêrno”, e a alínea 4 declara: “As nomeações para os cargos visados pela alínea 2 são essencialmente revogáveis”.
O Conselho de Estado aplicou o artigo 3º da lei de 19 de outubro de 1946 nos arestas Lavaud, de 10 de dezembro de 1948, Nègre, de 24 de junho de 1949, e Jugeau, de 13 de novembro de 1952, decidindo, sucessivamente, que os cargos de diretor de Administração Central de Ministério, de diretor da Agência France-Press e de diretor da Repartição Nacional de Estudos e Pesquisas Aeronáuticas são cargos para os quais a demissão é discricionária.22 Os considerandos do aresto Nègre são particularmente precisos: “Tendo em conta a natureza do cargo do Sr. N… cabia ao govêrno decidir, como fêz, no interêsse do serviço, a cessação de suas funções, conquanto nenhuma falta de ordem a motivar uma sanção disciplinar lhe tenha sido imputada; que a oportunidade desta decisão não pode ser contenciosamente discutida perante o Conselho de Estado”.
CONCLUSÃO
Assim, as obrigações do servidor fora de seu serviço não são idênticas às suas obrigações gerais de cidadão.
Em primeiro lugar, a finalidade da instituição com a qual colabora o servidor exige, em nome do interêsse público, a limitação dos interêsses privados dos funcionários.
Em segundo lugar, se a democracia é um regime no qual os direitos individuais são livremente exercidos pelos indivíduos, é também um regime em que a direção do Estado é assegurada por representantes investidos pela maioria. Ora, se a natureza do regime democrático reclama a participação de todos os indivíduos da democracia, requer o interêsse público que dentro de um Estado, os governantes disponham de um aparelho administrativo pronto a obedecer. Em conseqüência, as liberdades e os direitos políticos dos servidores públicos, fora de seu serviço, serão limitados quando a sua manifestação possa fazer periclitar a estrutura do Estado democrático.
___________
Notas:
* N. da R.: Tradução do Recueil Dalloz, 1954, 230 caderno de 19 de junho de 1954, Paris, Jurisprudence Générale Dalloz. Crónica XVIII, págs. 105-112. Todos os dispositivos legais mencionados no decurso dêste trabalho referem-se ao direito positivo francês. Tradutor Georges D. Landau.
1 Vide DUEZ e DEBEYRE, “Traité de droit administratif”, 1952, págs. 671;674; A. DE LABAUDÈRE, “Traité élémentaire de droit administratif”, 1953, págs. 697-698; M. WALINE, “Traité élémentaire de droit administratif”, 6ª ed., 1950, páginas 339-342.
2 ROLLAND, “Cours de droit administratif”, doutorado, Paris, 1942-1943, pág. 260.
3 ROLLAND, “Cours”, cit., pág. 261.
4 Após o assassinato do presidente Garfield em 2 de julho de 1881, por um pretendente a emprego público que não fôra satisfeito, o Congresso americano votou a lei de 10 de janeiro de 1883, conhecida sob o nome de PendletonAct, que pós fim ao spoilsystem, através da instituição de concursos de recrutamento para numerosos cargos não-eletivos.
5 Cf. G. MORANGE, “La liberté d’opinion des fonctionnaires publics”, crônica D. 1953, página 153.
6 Para todos os textos referentes ao Estatuto dos Funcionários, consulte-se C. SENÉGAS, “Les droits et obligations des fonctionnaires”, 1953.
7 “Recueil du Conseil d’État”, pág. 297, parecer do Sr. comissário do govêrno GAZIER.
8 D. P. 1937. 4. 49. Cf. também a instrução de 15 de junho de 1937 (“Journal Officiel” de 19 e 22-6-937), completada pelas circulares número 88, B-6, de 28-7-945, e nº 55 B-6, de 20-4-946.
9 Acerca da situação jurídica do servidor em disponibilidade, vide os arts. 114, 115 119 e 129 da lei de 19 de outubro de 1946; e o Tít. II, seç. 2, cap. 1º, da instrução nº 3, de 1º-18-947 (D. 1947, 308).
10 Cf. G. VEDEL, “Cours de droit administratif”, Paris, licença 1951-1952, pág. 715.
11 “Association professionnelle des inspecteurs de la police judiciare” (“Rec. Cons. d’Et.”, pág. 146).
12 Quanto à possibilidade de ser um servidor eximido do dever de sigilo profissional, para o fim de prestar depoimento perante uma comissão parlamentar de inquérito, veja-se a lei de 31 de outubro de 1953 (D. 1953. 497).
13 Sôbre o dever de sigilo profissional dos funcionários, veja-se o Conselho de Estado de 6 de março de 1953, Srta. Faucheur, nota de M. WALINE, “Revue de droit public”, 1953, página 1.030; nota de H. SUEZ, “Recueil Sirey”, 1953, 3.93. Cf. também TUNC, “Le secret professionnel et les relations administratives” in “Revue Administr.”, 1948, nº 3; COUTURON, “Le secret professionnel des fonctionnaires”, tese, Paris, 1945.
14 Ver infra, nota 19.
15 Cf. K. LOWENSTEIN, “Le contrôle législatif de l’extrémisme politique dans les démocraties européennes”, in “Rev. de Publ.”, 1938, págs. 727-732.
16 C. CHAVANON, “Les fonctionnaires et la fonction publique”, curso professado no Instituto de Estudos Políticos em 1950-1951, fasc. III, página 174.
17 Cf. MORANGE, crônica supracitada nota 5, e nota sob Conselho de Estado de 29 de julho de 1953, aresto Lingois (D. 1954. 99); LAVAU, “Le prétendu pouvoir discrétionnaire d’exclure un candidat d’un concours administratif” (T.C.P. 1953. I. 1128).
18 Do aresto de 28 de maio de 1954 (publicado na “Gazette du Palais” de 9-6-954) parece resultar que uma das razões para a anulação foi a recusa, pelo ministro, de dar os motivos para e sua resolução. Note-se, na espécie, a extensão do contrôle jurisdicional ao exercício do poder discricionário.
19 Cf. Conselho de Estado de 28 de abril de 1938, Srta. Weiss (D. P. 1939.3.41, nota de M. WALINE e parecer do Sr. comissário do governo DAYRAS); de 4 de maio de 1948, “Connet”, e de 8 de dezembro de 1948, Srta. Pasteur (“Recueil Sirey”, 1949.3.4), nota do Sr. RIVERO; (“Rev. dr. publ., 1949, pág. 75, nota do Sr. WALINE).
20 “A opinião geralmente admitida”, escreve M. WALINE (“Manuel de droit administr.”, 4ª ed., pág. 295), “é que, ressalvados os funcionários políticos, os servidores são de modo geral senhores de suas opiniões, podendo mesmo, sem incorreção, manifestá-las desde que o façam fora do serviço”.
21 Tratava-se, òbviamente, de panfletos hostis ao govêrno estabelecido.
22 Semelhantes a êsses arestos é a decisão do Conselho de Estado de 18 de abril de 1947, Jarrigion (D. 1947. Somm. 37: “Recueil Sirey”, 1948, 3. 33, nota do Sr. RIVERO). O Sr. Jarrigion fora por decreto, exonerado de seu cargo de membro do conselho de administração da S. N. E. F. (Sociedade Nacional de Estradas de Ferro), por haver provocado os operários e empregados a entrarem em greve. O Conselho de Estado denegou o seu recurso, “considerando… que o requerente adotara uma atitude incompatível com a sua condição de administrador da emprêsa encarregada da exploração de um serviço público”.
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