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A aplicação subsidiária da Lei de Improbidade Administrativa às pessoas jurídicas: a necessária releitura do artigo 30, I, da Lei 12.846/2013

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A aplicação subsidiária da Lei de Improbidade Administrativa às pessoas jurídicas: a necessária releitura do artigo 30, I, da Lei 12.846/2013

LAE

LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

LIA

16/08/2022

A Lei n. 8.429/1992, denominada Lei de Improbidade Administrativa (LIA), vem regulamentar o art. 37, § 4º, da Constituição Federal. Trata-se de diploma que define e classifica os atos de improbidade administrativa em três modalidades distintas (enriquecimento ilícito, lesão ao erário e atentado contra os princípios da Administração Pública), cominando-lhes sanções políticas, civis e administrativas.

Perseguindo o mesmo intuito moralizante, a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei 12.846/2013) combate os atos lesivos à Administração Pública, nacional ou estrangeira, praticados em benefício ou no interesse de pessoa jurídica de direito privado, cominando-lhes sanções administrativas e civis.

Sabe-se que os bens jurídicos tutelados por ambos os diplomas são muito semelhantes, com destaque para a defesa do patrimônio público e dos princípios da Administração Pública. Ademais, muitas das condutas consideradas ilícitas para os fins da LIA, também o são para os fins da LAE. Nota-se, assim, uma zona de coincidência entre os objetos tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa e pela Lei Anticorrupção Empresarial.

Dúvidas sobre a aplicação das normas

Nesse cenário, é natural que surjam dúvidas sobre a escorreita aplicação dessas normas.

Wallace Paiva Martins Júnior, por exemplo, ao cotejar as Leis 8.429/1992 e 12.846/2013, antes mesmo da reforma promovida na primeira pela Lei 14.230/2021, já descartava a possibilidade de aplicação simultânea dos dois diplomas. Para o autor, as diferentes instâncias de responsabilização se excluem: ou há improbidade administrativa decorrente de conduta ilícita de agente público, hipótese em que só incide a LIA, por força do princípio da especialidade, ou há prática de ato lesivo à Administração Pública resultante de comportamento ilícito de pessoa jurídica de direito privado, hipótese só alcançada pela LAE.

Em sentido contrário, a doutrina majoritária defendia a possibilidade de aplicação cumulativa das sanções previstas nos dois diplomas legais

Também pensávamos assim. Afinal, a própria LAE estabelece que sua aplicação não impede a imposição de cominações decorrentes de atos de improbidade administrativa (art. 30, I). Da mesma forma, a LIA previa em seu artigo 12 que a aplicação das sanções nele previstas não excluía a aplicação de outras sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica.

Os dois diplomas em análise, portanto, reconheciam expressamente que as instâncias de responsabilização eram autônomas. Nesse cenário, mostrava-se perfeitamente possível a aplicação concomitante dos dois diplomas às pessoas jurídicas de direito privado infratoras, com a consequente cumulação das sanções previstas na LIA e na LAE, sem que isso importasse em ofensa ao princípio do non bis in idem. Nas palavras de Jorge Munhós de Souza, “o princípio do non bis in idem não veda que sejam constituídos diversos títulos condenatórios, com sanções simétricas, decorrentes da prática de um mesmo fato”

Aplicação subsidiária da Lei de Improbidade Administrativa

Ocorre que a Lei 14.230/2021 inseriu na LIA uma regra nova, que representa uma importante modificação no tratamento da matéria. Desse teor o § 2º do artigo 3.º da LIA:

Art. 3º (…) § 2º As sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.

Referida norma afasta a possibilidade de incidência das sanções da LIA às pessoas jurídicas nas hipóteses em que os atos de improbidade administrativa também configurarem atos lesivos à Administração Pública previstos no artigo 5º da LAE.

A opção do legislador se justifica, provavelmente, na semelhança existente entre algumas sanções previstas nos dois diplomas, caso da multa, do perdimento de bens e da proibição de receber incentivos, fiscais ou creditícios do Poder Público, cuja incidência cumulativa importaria, para alguns, em bis in idem. Prova disso é que a Lei 14.230/2021 também incluiu o § 7º no art. 12 da LIA, para dispor que as sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base na LIA e na LAE deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.

A nosso sentir, essa nova regra inserida na LIA pela Lei 14.230/2021 torna necessária uma releitura do artigo 30, I, da LAE. 

Imagine-se, por exemplo, a conduta consistente em fraudar o processo licitatório, mediante ajuste, acarretando perda patrimonial efetiva. Tal conduta, prima facie, se amolda ao tipo legal do 5º, IV, a, da LAE. Acaso reste demonstrada a participação de agente público como autor, coautor, partícipe ou beneficiário dessa fraude, referida conduta também atrairá a tipologia do art. 10, VIII, da LIA

Antes da reforma promovida na LIA pela Lei 14.230/2021, mostrava-se viável a cumulação das sanções previstas tanto LIA como na LAE à pessoa jurídica infratora que tivesse concorrido ou se beneficiado da mesma prática fraudulenta, com base no artigo 30, I, da LAE. Depois da reforma, contudo, essa solução não se mostra mais possível.

No exemplo citado, por força da regra prevista no § 2º do artigo 3º da LIA, a pessoa jurídica infratora só poderá ser punida na esfera da Lei Anticorrupção Empresarial, pela prática do ato lesivo previsto no art. 5º, IV, “a”, da LAE. Por outro lado, o agente público e as pessoas naturais que concorreram para a fraude à licitação ou dela se beneficiaram deverão ser punidos com base na Lei 8.429/1992, pela prática do ato lesivo ao erário tipificado no art. 10, VIII.    

É correto afirmar, portanto, que a partir da entrada em vigor da Lei 14.230/2021, a aplicação da LIA às pessoas jurídicas passa a ser subsidiária. Noutras palavras, a pessoa jurídica que concorrer ou se beneficiar de um ato de improbidade administrativa somente poderá ser punida no domínio da LIA se tal ato não puder ser punido na esfera da LAE. 

Note-se que o artigo 3º, § 2º, da LIA não revogou a regra prevista no artigo 30, I, da LAE. Apenas impôs uma adaptação sistemática do seu significado e alcance, em razão da influência da Lei Geral de Defesa da Probidade Administrativa. 

Nessa trilha, ao dispor que a aplicação das sanções previstas na LAE não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de ato de improbidade administrativa, o artigo 30, I, da LAE, sob o influxo da regra prevista no artigo 3º, § 2º, da LIA, traduz a ideia de que a responsabilização da pessoa jurídica infratora no âmbito da LAE não influenciará na responsabilização das pessoas naturais (agentes públicos ou particulares) na esfera de improbidade administrativa, dada a independência entre as instâncias.

Isso não significa dizer que deverão ser propostas duas ações coletivas em separado: uma ação de improbidade administrativa para que sejam responsabilizadas as pessoas naturais envolvidas (agentes públicos e terceiros vinculados à pessoa jurídica), com fundamento na Lei 8.429/1992, e uma ação civil pública de responsabilização das pessoas jurídicas, de acordo com os preceitos da Lei 12.846/2013. Muito ao contrário. Como bem observado por Marcelo Zenkner, “se iniciado um processo coletivo e, posteriormente, outro for deflagrado, seja pelo mesmo legitimado ou não, contendo a mesma narrativa dos fatos já indicados na causa de pedir do primeiro, dar-se-á a obrigatória reunião por conexão”, na forma do art. 55, caput e § 1º, do CPC, não havendo, portanto, nenhuma vantagem no ajuizamento de duas ações em separado, salvo a prática de atos processuais desnecessários e a violação da garantia fundamental à razoável duração do processo.

Dessa forma, recomenda-se seja ajuizada, sempre que possível, uma única ação, que adotará o procedimento comum, com aplicação simultânea das duas leis, tanto na formulação dos pedidos como na decisão final a ser tomada pelo órgão jurisdicional competente. 

Nessa ação, a responsabilização das pessoas naturais (agentes públicos e particulares) dependerá da comprovação do elemento subjetivo dolo e atrairá a incidência das sanções previstas no artigo 12 da LIA, enquanto a responsabilização da pessoa jurídica será objetiva e atrairá a incidência das sanções previstas no artigo 19 da LAE, ainda que o pedido seja julgado improcedente em relação aos agentes públicos que compõem o polo passivo.

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NOTAS

[1] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Comentários ao art. 15. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 339-348.

[2] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 794-797; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Responsabilização judicial da pessoa jurídica na lei anticorrupção. In: MUNHÓS, Jorge; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (coord.). Lei Anticorrupção e temas de compliance. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 581-584; MARQUES, Silvio Antonio. Harmonização entre a lei de improbidade administrativa e a lei anticorrupção empresarial. Apontamentos à Lei Anticorrupção Empresarial: Lei 12.846/2013. São Paulo: MPSP, 2015, p. 45-48; e PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção: origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 105.

[3] Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (…) (redação anterior à reforma promovida na LIA pela Lei 14.230/2021).

[4] MUNHÓS, Jorge. Responsabilização administrativa na Lei Anticorrupção. In: MUNHÓS, Jorge; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (coord.). Lei Anticorrupção e temas de compliance. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 238.

[5] Art. 5º (…) IV: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público.

[6]Art. 10 (…) VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;

[7]  ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 489. 

[8]Art. 55. Reputam-se conexas 2 (duas) ou mais ações quando lhes for comum o pedido ou a causa de pedir. 

  • 1º Os processos de ações conexas serão reunidos para decisão conjunta, salvo se um deles já houver sido sentenciado.

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