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Acordos de leniência, assimetria normativa e insegurança jurídica
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
14/12/2015
Nos últimos meses, os meios de comunicação têm divulgado a celebração de acordos de leniência e colaborações premiadas por empresas investigadas por corrupção e lavagem de dinheiro na operação “Lava Jato”, que acarretou o desvio de bilhões de reais da Petrobras.
De acordo com os dados fornecidos pelo Ministério Público Federal, as colaborações premiadas foram responsáveis, até o momento, pela recuperação de cerca de meio bilhão de reais, o que revela, do ponto de vista econômico, a importância da consensualidade e da colaboração nos processos sancionatórios (Fonte: http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/investigacao/colaboracao-premiada).
Os acordos colaborativos e suas espécies não escapam da visão crítica de parcela da doutrina, mas, é certo, que a sua previsão normativa e utilização prática encontram-se em ampla expansão no Brasil.
O ordenamento jurídico nacional tem consagrado, nos últimos anos, instrumentos consensuais no âmbito de processos sancionatórios, formalizados com os envolvidos na prática do ilícito, que colaboram com as investigações, com o objetivo de combater, especialmente, práticas anticoncorrenciais, atos de corrupção e crimes.
Diversos são os exemplos de acordos em processos decisórios, cabendo destacar: Termo de Ajustamento de Conduta – TAC: art. 5º, § 6º, da Lei 7.347/85; Termo de Compromisso: art. 11, §5º, da Lei 6.385/76 (Comissão de Valores Mobiliários); delações e colaborações premiadas no Direito Penal: art. 25, §2º da Lei 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional), art. 8º, parágrafo único, da Lei 8.072/90 (crimes hediondos), art.16, parágrafo único da Lei 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo), arts. 4º ao 7º da Lei 12.850/213 (Lei de Combate às Organizações Criminosas); etc.
O objetivo do presente ensaio é justamente apresentar e comparar os tipos de acordos de leniência previstos no Direito Administrativo, com destaque para a legislação antitruste e anticorrupção, deixando de lado as colaborações premiadas mencionadas na legislação penal.
Inicialmente, é oportuno ressaltar que a atividade estatal sancionatória é compreendida como instrumento para efetivação do duplo resultado previsto no ordenamento jurídico: prevenir e reprimir a prática de ilícitos.
Os acordos decisórios, na realidade, possuem objetivo relativamente amplo, admitindo-se o afastamento ou a atenuação da sanção em troca de comportamentos positivos e/ou negativos que sejam mais adequados para prevenção e/ou restauração do dano.
Verifica-se, nesse ponto, a assimetria normativa no regime jurídico dos diversos instrumentos de colaboração, com a previsão de competências, requisitos e consequências variáveis, o que tem gerado insegurança jurídica entre os potenciais interessados na celebração dos referidos ajustes.
É o que ocorre, por exemplo, nos acordos de leniência previstos no Direito Antitruste (art. 86 da Lei 12.529/11) e na Lei Anticorrupção (art. 16 da Lei 12.846/13). Inspirado na experiência norte-americana, o acordo de leniência foi introduzido no Direito Antitruste pátrio pela Lei 10.149/00, que inseriu o art. 35-B da Lei 8.884/94, posteriormente revogada pela Lei n. 12.529/11. A partir da experiência relativamente exitosa, o acordo de leniência foi incorporado, com algumas adaptações, pela Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção).
As principais semelhanças entre os acordos de leniência antitruste e anticorrupção podem ser assim resumidas: a) o acordo será celebrado com o primeiro envolvido que se qualificar para colaboração com as investigações; b) o interessado deve confessar a sua participação na infração, cessar a prática do ilícito e colaborar, efetivamente, com as investigações; c) sigilo na proposta de acordo; d) ausência do reconhecimento da prática do ato ilícito e afastamento da confissão na hipótese da proposta de leniência ser rejeitada; e) o descumprimento do acordo de leniência impede que o interessado celebre novo acordo pelo prazo de três anos.
Por outro lado, as diferenças entre os referidos acordos de leniência são:
- Acordo de leniência antitruste: a) competência: Superintendência-Geral do CADE; b) beneficiário: pessoas físicas ou jurídicas; c) acordo de leniência celebrado antes que o CADE tenha conhecimento da infração (leniência prévia): extinção das sanções; acordo celebrado após o conhecimento da infração pelo CADE: redução do valor da multa; d) leniência plus (leniência concomitante ou posterior): redução de um terço da penalidade aplicável ao interessado que não se qualifica para determinado acordo de leniência, com relação ao cartel do qual tenha participado (acordo de leniência original), mas que fornece informações acerca de um outro cartel sobre o qual o CADE não tinha qualquer conhecimento prévio (novo acordo de leniência com afastamento das sanções); e) isenção (leniência prévia) ou atenuação (leniência posterior) das sanções administrativas, bem como extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem econômica (Lei nº 8.137/1990), e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/1993) e no artigo 288 do Código Penal (associação criminosa).
- Acordo de leniência anticorrupção: a) competência da entidade administrativa lesada, CGU e MP; b) beneficiário: pessoas jurídicas (não obstante a Lei estabeleça efeitos para as sanções previstas na Lei 8.666/93, o que poderia beneficiar pessoas físicas contratadas pela Administração); c) não diferencia o acordo de leniência celebrado antes ou depois das investigações por parte das autoridades competentes; d) não prevê a leniência plus; e) redução do valor da multa e afastamento das sanções de publicação extraordinária, de proibição de receber benefícios (incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos) de entidades públicas pelo prazo de um a cinco anos, bem como isenção ou atenuação das sanções previstas no art. 87 da Lei 8.666/93, mas não impede as demais sanções civis e não acarreta efeitos nas sanções penais.
Ocorre que a assimetria normativa relativa aos acordos de leniência acarreta, de certa forma, insegurança jurídica e coloca em risco a sua efetividade.
A partir da perspectiva da Análise Econômica do Direito, as normas jurídicas são consideradas instrumentos de indução de comportamentos positivos e negativos dos atores econômicos. Nesse contexto, os acordos de leniência pretendem fomentar a colaboração dos envolvidos na investigação das infrações, garantindo maior efetividade na aplicação das sanções e na reparação dos danos, o que pode não ocorrer se o ordenamento não garantir segurança jurídica aos seus destinatários.
De um lado, o acordo de leniência antitruste enfatiza a prevenção às infrações ao prever a isenção da multa na hipótese de leniência prévia, mas não impede a aplicação das demais sanções previstas em outras normas, inclusive aquelas tipificadas na Lei Anticorrupção e na Lei de Licitações. Por outro lado, o acordo de leniência anticorrupção não incentiva a prevenção, pois não estabelece diferenças entre a leniência prévia e concomitante (ou posterior), não isenta o interessado de determinadas sanções previstas na Lei 12.846/13 (literalmente não impede, por exemplo, a aplicação da dissolução compulsória da pessoa jurídica, o que nos parece desproporcional), bem como não impede a aplicação das sanções previstas no Direito Antitruste e no Direito Penal.
Não obstante a ausência de previsão de participação do MP nos acordos de leniência, o CADE, sem abrir mão do seu poder decisório, tem consultado o Parquet antes da celebração dos acordos, não havendo notícia de tal prática pela CGU em âmbito federal em relação aos acordos de leniência anticorrupção.
Da mesma forma, as normas concorrenciais e anticorrupção não afastam a aplicação das sanções de improbidade administrativa (art. 12 da Lei 8.429/92), bem como não elidem a fiscalização e aplicação de sanções por parte do Tribunal de Contas, que possui competência, inclusive, para aplicação da multa e da declaração de inidoneidade (arts. 46 e 58 da Lei 8.443/92).
Talvez a solução prática seja a celebração de único acordo de leniência entre o interessado e todas as autoridades estatais envolvidas (entidade administrativa interessada, CGU, MP, CADE), o que, certamente, apresenta dificuldades operacionais, notadamente em razão da autonomia dos respectivos órgãos e entidades.
Ao que parece, a legislação deve ser aperfeiçoada e sistematizada para evitar que a assimetria normativa e a insegurança jurídica frustrem os objetivos das normas concorrenciais e anticorrupção.
Independentemente dos problemas aqui apresentados, os acordos de leniência representam importante tendência no âmbito da Administração Pública Consensual, razão pela qual o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento dependerão, em grande medida, do diálogo entre as autoridades envolvidas, dos avanços legislativos e dos resultados obtidos a partir da experiência concreta. E finalizo com as palavras de Cesare Beccaria, retiradas de sua clássica obra Dos Delitos e Das Penas: “A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade”.
Veja também:
- Licitações inclusivas: os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência nas contratações públicas
- A arbitragem nos contratos da Administração Pública e a Lei 13.129/2015
- O Sistema Brasileiro de Combate à Corrupção e a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)
- O princípio da continuidade do serviço público no Direito Administrativo Contemporâneo
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