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Acordo de leniência na Lei Anticorrupção – Parte 3
Thiago Marrara
20/08/2019
Na primeira parte do artigo, foram abordadas as definições relevantes do Acordo e programa de leniência. Seguimos com a continuação, sobre o regime da leniência na Lei Anticorrupção. Confira agora a parte 3, sobre o panorama das falhas do regime jurídico legal:
Panorama das falhas do regime jurídico legal
No regime jurídico delineado na Lei Anticorrupção, como se buscou demonstrar, notam-se muitas falhas e lacunas que, em última instância, afetam a previsibilidade, a segurança jurídica e, pior, a atratividade do programa de leniência. A uma, a Lei Anticorrupção ignora o papel das pessoas físicas, ou seja, não há previsão de participação dessas pessoas no acordo – lacuna que, em última instância, acaba por tornar o programa menos atrativo, na medida em que coloca a pessoa física (como o administrador diretamente responsável pela corrupção praticada pela empresa) em situação de alta vulnerabilidade, sobretudo nos âmbitos penal e da improbidade administrativa.
A duas, mesmo para a pessoa jurídica infratora que decide colaborar com o Estado, o regime de leniência não garante uma imunização ampla em relação a todas as sanções previstas na Lei Anticorrupção. Conquanto celebrado e integralmente cumprido, o acordo não deflagrará mitigação de grande parte das sanções civis previstas no art. 19. [1]
Ademais, a Lei não trata de possibilidade de arbitramento de danos no acordo, ainda que, na prática, alguns acordos tenham previsto cláusulas a respeito do perdimento de bens e do pagamento de indenizações.
A três, a lei falha ao não prever um sistema diferenciado de benefícios conforme o momento de celebração da leniência [2] – diferentemente do programa construído no âmbito do direito da concorrência, que diferencia a leniência prévia, a leniência concomitante e a leniência
plus, cada qual com benefícios distintos, de modo a estimular o infrator a cooperar com o Estado o mais rápido possível e a despeito de se ter conhecimento da infração.
A quatro, a lei não garante um percentual mínimo de redução da administrativa ao infrator colaborador, nem prevê o importante benefício da menor multa. Isso significa que, se o acordo não for bem negociado, o colaborador poderá receber benefícios insignificantes ou uma sanção superior à imposta a infratores que não colaboraram com a instrução processual. Enfim, a cinco, a lei em debate não traz normas sobre cooperação interadministrativa e interorgânica para articular os diversos órgãos envolvidos na política de combate à corrupção.
Tentativas de aprimoramento do regime: MP 703
Em certa medida, por conta das várias falhas e lacunas do regime jurídico da leniência na Lei Anticorrupção – problemas que comprovam a ignorância do legislador em relação aos avanços e estudos que já existiam na época a respeito da leniência concorrencial – buscou-se modificar o regime jurídico descrito por meio de uma Medida Provisória, igualmente mal debatida e preparada. Apesar de ter perdido vigência por falta de conversão em lei no prazo constitucional, a MP 703, de 18.12.2015 modificou brevemente inúmeros dispositivos da Lei Anticorrupção e, para o regime da leniência, de modo especial, trouxera as significativas mudanças ao art. 16 que merecem registro histórico.
Em primeiro lugar, a MP tentou extirpar a regra do “first come, first serve” (art. 16, § 1º, I), de acordo com a qual somente uma pessoa jurídica está autorizada a celebrar o acordo em cada processo administrativo. Para garantir a celebração, a pessoa jurídica necessita ser a primeira a se qualificar perante a Administração. Ao afastar essa regra, a MP buscava impedir o efeito de bloqueio que uma leniência gerava para outros infratores interessados. Isso tornaria possível celebrar múltiplas leniências no mesmo processo. Se aprovada, essa nova sistemática quebraria o estímulo à “corrida pela leniência” e esvaziaria o próprio sentido do processo punitivo.
Em segundo lugar, ao possibilitar múltiplas leniências, a MP teve que necessariamente alterar o sistema de benefícios e isso ocorrera pela diferenciação das vantagens dadas ao primeiro infrator-colaborador (maiores) e aquelas conferidas aos subsequentes (menores). A diferenciação, hoje revogada, tentava salvar um pouco do efeito da “corrida” pelo acordo, já que o primeiro receberia mais prêmios que os colaboradores tardios.
Em terceiro lugar, também de modo a facilitar a posição do infrator interessado no acordo, a MP retirara da lei a necessidade de confissão do ato de corrupção (art. 16, § 1º, II). Isso colocava o colaborador em situação mais confortável e reduzia sua vulnerabilidade, ou melhor, os riscos de punição e de responsabilização em outras esferas – fator que, em última instância, tornava o programa de leniência muito mais atrativo.
Na prática, porém, a confissão é essencial e constitui requisito lógico da leniência. Afinal, é o fato de o colaborador ser ele mesmo um dos infratores que lhe dá legitimidade para atuar ao lado do Estado como um fornecedor confiável de provas. Em quarto lugar, a MP ampliou de modo extremamente significativo as vantagens decorrentes do cumprimento do acordo [3], por exemplo, ao beneficiar o infrator-colaborador contra sanções na esfera licitatória, inclusive as de caráter pecuniário, e por permitir que o acordo tratasse da reparação de danos, inclusive mediante técnicas de amortização que levassem em conta a “capacidade econômica do agente”. [4]
Em quinto lugar, também no sentido de incrementar os benefícios do acordo, tornando-o mais atrativo e menos arriscado aos colaboradores, a MP ainda previu que sua celebração impediria ações de improbidade, ações civis em geral e a ação para aplicação das sanções civis por corrupção (art. 19 da Lei), desde que o acordo fosse firmado com a participação da Advocacia Pública ou do Ministério Público.
Em sexto lugar, a MP determinou que os documentos fornecidos pelo colaborador ao Estado fossem devolvidos em caso de proposta de leniência frustrada (art. 17-B), suprindo assim uma lacuna da redação originária da lei. Na prática, esse problema foi resolvido posteriormente pela Portaria Interministerial CGU/AGU 2.278/2016, cujo art. 6º, parágrafo único, hoje prevê que “a desistência da proposta de acordo de leniência ou sua rejeição: I – não importará em reconhecimento da prática do ato lesivo investigado pela pessoa jurídica; II – implicará a devolução, sem retenção de cópias, dos documentos apresentados, sendo vedado o uso desses ou de outras informações obtidas durante a negociação para fins de responsabilização, exceto quando a administração pública tiver conhecimento deles por outros meios; e III – não acarretará na sua divulgação, ressalvado o disposto no § 3º do art. 3º desta Portaria”.
A MP caminhou bem em certos aspectos, mas realmente parece ter exagerado na ampliação dos benefícios e, pior, sem que ainda houvesse na doutrina e no âmbito dos órgãos competentes uma reflexão madura e aprofundada a respeito das deficiências do modelo de leniência da lei. Outro fator que a prejudicou, por natural, foi o momento político e social de sua edição e igualmente o fato de não ter sido capaz de resolver todas as falhas da disciplina jurídica da leniência para atos de corrupção.
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[1] As sanções civis, dependentes de condução de ação civil pública ajuizada pela entidade lesada ou pelo Ministério Público, consistem em reparação do dano; perdimento de bens e valores; suspensão de atividades econômicas; dissolução da pessoa jurídica (apenas nos casos listados na lei); proibição de incentivos, doações, empréstimos públicos etc. No processo judicial, também poderão ser aplicadas as duas sanções administrativas previstas na Lei, caso a entidade pública competente para punir o infrator não tenha agido.
[2] Por um critério temporal, o acordo de leniência pode ser prévio ao processo administrativo, concomitante ou secundário. A modalidade prévia designa o acordo celebrado antes que o Poder Público tenha conhecimento da infração administrativa. Previamente à abertura do processo ou de seus procedimentos preparatórios, um dos infratores busca a cooperação e celebra a leniência que então dará origem ao pro- cesso sancionador. Por gerar elevado benefício ao Estado e representar uma colaboração “mais” espontânea, esse tipo de leniência resulta, em muitos ordenamentos, em maiores benefícios ao colaborador. Quando a leniência é firmada ao longo do processo, fala-se então de um acordo concomitante. O infrator já se encontra na posição de acusado e, para mitigar as sanções que lhe podem atingir, recorre à cooperação pela via da leniência. Nesta hipótese, como o Estado já dispõe de informações básicas de autoria e materialidade, a leniência “vale menos”, gera menores benefícios ao colaborador. Daí se entende que, ao diferenciar os benefícios da leniência concomitante em relação à modalidade prévia, o legislador promove uma “corrida pela leniência”, aumenta o clima de desconfiança entre os infratores e desestabiliza as relações entre eles. Apesar dessa vantagem, a Lei Anticorrupção brasileira ignorou a distinção e não registrou a obrigatoriedade de se concederem benefícios diferenciados conforme o momento da leniência. Referida lacuna tenderá a desestimular os acordos prévios, levando o infrator a esperar a abertura do processo administrativo para avaliar a utilidade da colaboração. Além da leniência prévia e da concomitante, é possível falar de uma leniência secundária ou tardia. Trata-se de um acordo igualmente concomitante ao processo, mas que é celebrado após uma primeira leniência no mesmo processo administrativo. Em alguns ordenamentos, a leniência secundária é vedada por força da regra first come, first serve, a qual foi igualmente consagrada na Lei Anticorrupção. Por conseguinte, somente o primeiro que se qualificar para colaborar estará autorizado a celebrar o acordo. Em outros modelos, aceita-se a leniência secundária ou tardia, mas se conferem menores vantagens ao colaborador, criando-se um sistema de benefícios em cascata pelo qual a quantidade de vantagens ao colaborador se reduz conforme a quantidade de leniências aumenta. Existe ainda um terceiro modelo, referente à leniência plus, adotado no âmbito do direito concorrencial brasileiro, mas sem previsão na política de combate à corrupção. Aqui, a leniência secundária poderá ser celebrada em um processo que já conta com um colaborador, mas desde que o segundo colaborador apoie as atividades de instrução neste primeiro processo e, adicionalmente, traga informações sobre uma nova infração desconhecida pela Administração Pública. A leniência plus pode ser chamada de leniência dúplice, uma vez que congrega uma leniência concomitante no processo em curso e uma leniência prévia para a nova infração confessada.
[3] Para se constatar essa ampliação, basta verificar a redação que o art. 16, § 2º havia assumido por conta da MP 703: “§ 2º O acordo de leniência celebrado pela autoridade administrativa: (Redação dada pela Medida provisória 703, de 2015): I – isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do caput do art. 6º e das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar previstas na Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, e em outras normas que tratam de licitações e contratos; (Incluído pela Medida provisória 703, de 2015); II – poderá reduzir a multa prevista no inciso I do caput do art. 6º em até dois terços, não sendo aplicável à pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo; e (Incluído pela Medida provisória 703, de 2015); III – no caso de a pessoa jurídica ser a primeira a firmar o acordo de leniência sobre os atos e fatos investigados, a redução poderá chegar até a sua completa remissão, não sendo aplicável à pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo. (Incluído pela Medida provisória 703, de 2015)”
[4] Isso se vislumbrava na redação modificada do art. 16, §4º: “O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo administrativo e quando estipular a obrigatoriedade de reparação do dano poderá conter cláusulas sobre a forma de amortização, que considerem a capacidade econômica da pessoa jurídica. (Redação dada pela Medida provisória 703, de 2015, mas não convertida)”.
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