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A controvérsia em torno da perda da função pública na lei de improbidade

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A controvérsia em torno da perda da função pública na lei de improbidade

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03/04/2024

Dentre as sanções previstas na Lei de Improbidade (Lei n. 8.429/92), talvez a mais grave delas para as agentes públicos seja a perda da função pública. Quanto a ela, uma das principais controvérsias antes da Lei de Reforma (Lei n. 14.230/21) dizia respeito ao seu alcance: o agente público perde somente função que exercia na época em que praticou o ato ímprobo ou a pena alcança todo vínculo laboral entre o agente e a Administração?

A relevância da controvérsia é clara: como a pena em questão só se efetiva com o trânsito em julgado da sentença condenatória, o que tende a ocorrer muitos anos após a prática do ato ímprobo, pode ser que no momento de sua aplicação o agente não mais ocupe a função que exercia, seja porque não exerce mais função nenhuma, seja porque exerce outra função ou se aposentou.

No primeiro caso, maiores problemas não são verificados. Afinal, não há como se perder aquilo que não se tem. Nos outros dois, a discussão que se trava é se a sanção da perda da função pública alcança função pública sem relação com o ato de improbidade praticado pelo sujeito. Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, por exemplo, partindo do pressuposto que o objetivo da sanção é fulminar da vida pública aquele que demonstrou não ter dignidade para exercê-la, sustentam que a sanção alcança todo e qualquer vínculo laboral existente junto ao Poder Público.1 Marino Pazzaglini Filho, por outro lado, entende que a sanção fulmina tão somente a função pública que o agente exercia a época em que praticou o ato.2

A falta de consenso se reproduziu no Judiciário. A Segunda Turma do STJ possui jurisprudência firmada no sentido de que a sanção acarreta não só a da perda da função do agente, seja ela qual for e ainda que distinta daquela em que ocupava o agente quando cometeu o ilícito,3 como também a cassação de aposentadoria do servidor aposentado no curso da ação de improbidade.4 A Primeira Turma, por sua vez, rechaça por completo a possibilidade de a sanção alcançar função diferente daquela exercida pelo agente quando da prática do ato.5

Recentemente, contudo, a Primeira Seção da Corte pôs fim à discussão nos embargos de divergência opostos nos autos do Recurso Especial n. 1.701.967/RS, quando assentou o entendimento de que o vínculo a ser atingido pela sanção é o atual, ainda que seja ele diferente daquele ocupado pelo agente quando praticou o ato ímprobo. Quanto à possibilidade de cassação de aposentadoria, por outro lado, a mesma Primeira Seção firmou o entendimento contrário, no sentido de se tratar de pena não prevista no art. 12 e que, portanto, não pode ser aplicada como consequência da sanção de perda da função pública.6

Seja como for, é importante notar que toda essa divergência floresceu antes da entrada em vigor da Lei n. 14.230/21, que tomou partido na discussão, prevendo no § 1º do art. 12 que a sanção de perda de função pública “[…] atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração, podendo o magistrado, na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e em caráter excepcional, estendê-la aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração”.

Isto é, a LIA buscou um meio termo, encampando o entendimento aqui adotado de que a sanção alcança somente a função ligada ao cometimento do ato de improbidade como regra, mas admitindo, em caráter excepcional, e somente na hipótese de enriquecimento ilícito, o alargamento do alcance da sanção para atingir também os demais vínculos existentes entre o agente e o Estado. A ver, pois, como se pronunciarão os Tribunais a respeito. Especificamente quanto a possibilidade de cassação de aposentadoria, nada falou a normatização, de modo que continua vigente o entendimento (correto) do STJ no sentido de sua impossibilidade.

De toda forma, entendemos que o entendimento adotado pelo STJ e pela Lei n. 14.230/21, no sentido de que é possível que a sanção da perda de função pública atinja vínculos que não aquele ligado ao cometimento do ato de improbidade, padece de grave inconstitucionalidade por violação ao princípio da anterioridade da lei penal previsto no inc. XXXIX do art. 5º da Constituição.7 Enquanto norma veiculadora de punição, o art. 37, § 4º, da Constituição deve sempre ser interpretado restritivamente8 e, em caso de dúvidas, a interpretação a ser adotada é aquela que beneficia o acusado.

A partir dessas premissas, só podemos concluir que a interpretação correta a ser dada a expressão “perda da função pública” é aquela que restringe o alcance da sanção ao vínculo jurídico tido pelo agente junto ao Estado na época da prática do ato de improbidade. A existência de um nexo de causalidade entre o ato ímprobo e a sanção é elemento indispensável para a sua aplicação, não sendo possível o rompimento de um vínculo sem qualquer relação com o ato que se pretende sancionar. Em outras palavras, como lembra Calil Simão, o nexo de causalidade “[…] constitui uma garantia fundamental do jurisdicionado, e, por outro lado, uma limitação do poder punitivo do Estado”.9

Com efeito, entendemos que o § 1º do art. 12 da Lei de Improbidade, ao admitir, mesmo que de forma excepcional, que a perda da função pública é sanção que alcança função diferente daquela exercida pelo agente quando da prática do ato ímprobo, é inconstitucional por violar o § 4º do art. 37 e o inc. XXXIX do art. 5º, ambos da Constituição. Como bem pontua Gilmar Mendes, os princípios da anterioridade e legalidade em matéria penal impõem que qualquer intervenção no âmbito das liberdades individuais há de lastrear-se em lei.10

Isso significa que se a Constituição, que é o diploma normativo competente para a previsão das sanções cabíveis pela prática de ato de improbidade (§ 4º do art. 37), previu tão somente a função de perda da função pública, sem especificar que essa função pode ser qualquer uma, ainda que sem relação com o cometimento do ato de improbidade, não poderia a normatização infraconstitucional fazê-lo. Ampliar dessa forma o alcance da sanção sem qualquer autorização constitucional é o mesmo que criar uma nova sanção via interpretação in malam partem, o que contraria frontalmente o texto constitucional.

Para finalizar, impende destacar que a eficácia do § 1º do art. 12 da Lei de Improbidade foi suspensa por decisão do Min. Alexandre de Moraes nos autos da ADIn n. 7.236/DF. No entendimento do Ministro, a defesa da probidade administrativa impõe a perda da função pública independentemente do cargo ocupado no momento da condenação. Ele considerou também que, na prática, o dispositivo pode eximir determinados agentes da sanção por meio da troca de função ou no caso de demora no julgamento da causa. A ver como se pronunciarão os demais Ministros da Corte. Até lá, enquanto vigente a suspensão do dispositivo continua a valer o entendimento do STJ de que o vínculo a ser extinto é o atual, ainda que sem relação com o cometimento do ato ímprobo.

Autores: Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza e Luis Henrique Braga Madalena 


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NOTAS

1 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 681-682.

2 FILHO, Marino Pazzaglini. Lei de improbidade administrativa comentada. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2018, 167. No mesmo sentido, ver FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes perfeitos. São Paulo: Atlas, 2001, p. 304 e MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Comentários à lei de improbidade administrativa e ao projeto de sua reforma. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 168-169.

3 REsp 1.297.021/PR e AgInt no REsp n. 1.701.967/RS.

4 EDcl no REsp 1.682.961/RN e AgInt no REsp n. 1.781.874/DF.

5 REsp n. 1.766.149/RJ e REsp n. 1.564.682/RO.

6 EREsp n. 1.496.374/ES.

7 Aplicável ao sistema de combate à improbidade por força do art. 1, § 4º, da Lei n. 8.429/92.

8 Outro motivo que nos leva a concluir pela inconstitucionalidade do art. 12 quando prevê sanções outras que não aquelas contidas no texto constitucional.

9 SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 6. ed. Leme: Mizuno, 2022, p. 817-818.

10 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 15. ed. rev., e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 534.

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