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A anomalia do regime de precatórios para Sociedades de Economia Mista

ATOS DE EXPROPRIAÇÃO

PRECATÓRIOS

REGIME DE PRECATÓRIOS

SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA

José dos Santos Carvalho Filho

José dos Santos Carvalho Filho

24/05/2016

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Ninguém desconhece que os débitos oriundos dos entes públicos são pagos pelo sistema de precatórios. Trata-se de uma ferramenta de garantia dos credores, embora com fisionomia diversa daquela aplicável aos devedores privados. Na fase de cumprimento da sentença, estes sujeitam-se ao regime da penhora dos bens para a garantia do crédito privado, e, nessa direção, anota o art. 523, § 3º, do vigente CPC: Não efetuado tempestivamente o pagamento voluntário, será expedido, desde logo, mandado de penhora e avaliação, seguindo-se os atos de expropriação”.

Já na hipótese de descumprimento da sentença que condena a Fazenda Pública à obrigação de pagar quantia certa, o efeito e, consequentemente, a garantia do crédito, se consumam de modo diverso. O art. 535, § 3º, I, do CPC, dispõe que, não impugnada a execução ou rejeitadas as arguições da Fazenda, na posição de executada, “expedir-se-á, por intermédio do presidente do tribunal competente, precatório em favor do exequente, observando-se o disposto na Constituição Federal”.

Destacam-se dois fundamentos para a disciplina diferente. Um deles consiste no fato de que os bens públicos são impenhoráveis, sendo, pois, infensos à incidência da penhora como elemento de garantia do credor. Depois, o próprio dispositivo processual faz remissão à Constituição Federal, sede do sistema de precatórios para o pagamento de débitos fazendários.

E a Constituição prevê expressamente o regime de precatórios. Eis o que registra o texto constitucional:

“Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”. 

Como bem explica Pinto Ferreira, o precatório “é a determinação do juiz à repartição competente para o pagamento de certas indenizações, ou para levantamento de quantias depositadas nas ditas repartições”. Registra, ainda, que a expedição do precatório “finaliza uma atividade de natureza administrativa”. (1)

Tal sistema, na correta observação de Leonardo José Carneiro da Cunha, deve revestir-se de fisionomia específica, “não percorrendo a senda da penhora, nem da apropriação ou expropriação de bens para alienação judicial, a fim de satisfazer o crédito executado”. (2)  Emergem, pois, dois aspectos do sistema: de um lado, protegem-se os bens integrantes do patrimônio público e, de outro, assegura-se ao credor a certeza do recebimento de seu crédito, ainda que possa haver – como geralmente há – demora no adimplemento da obrigação pela Fazenda.

Essas breves linhas preliminares têm apenas o objetivo de demonstrar que há um sistema especial de precatórios, cuja feição não se confunde com o sistema de penhora adotado na lei processual para os casos em geral. Servem também para realçar a beneficiária do sistema especial, cuja referência está claríssima tanto na Constituição como no CPC: a Fazenda Pública.

A expressão Fazenda Pública é de certo modo ambígua, permitindo várias interpretações sobre seu exato sentido. Entretanto, é praticamente uníssona a ideia de que abrange, na verdade, as pessoas públicas assim consideradas naquilo que pertine a seu respectivo erário. Portanto, feliz é a síntese sugerida por Cretella Junior: “Estado ou poder público, visto sob a ótica financeira”. (3) Sendo assim, é mais do que óbvio que onde a lei se referir à “Fazenda Pública” deve o intérprete considerar a alusão às pessoas jurídicas de direito público – a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias e as fundações governamentais de direito público (que têm natureza autárquica, na visão doutrinária dominante).

Por via de consequência, não há como inserir na expressão as entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, ainda que pertençam à administração indireta e estejam vinculadas aos entes federativos. Empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações governamentais de direito privado, concessionários e permissionários, parceiros público-privados, organizações sociais (OS), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs) e outras entidades congêneres, por maior que seja sua vinculação com o Estado, são pessoas de direito privado, não havendo a menor lógica em enquadrá-las como Fazenda Pública.

Muitas são as vozes nesse exato sentido. Pinto Ferreira assinala: “Os entes paraestatais (sociedades de economia mista e empresas públicas), sendo dotados de personalidade de direito privado, escapam a este regramento, em face do art. 100, § 1º, da CF de 1988”. (4)

Na mesma direção, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, depois de esclarecer que só os entes federativos, autarquias e fundações autárquicas são considerados Fazenda Pública, registram a propósito do art. 730 do CPC revogado: “As empresas públicas e sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado, não se sujeitando à execução de que trata a norma sob comentário”. (5)

Reforçando idêntica interpretação, temos a lição de Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero: “Consideram-se Fazenda Pública a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, suas autarquias e fundações públicas. As empresas públicas e as sociedades de economia mista não entram no conceito de Fazenda Pública para efeitos dos arts. 730-731, CPC”. (6)

De nossa parte, também tivemos a oportunidade de averbar o seguinte sobre a expressão Fazenda Pública: “Trata-se de mera praxe forense, usualmente explicada pelo fato de que o dispêndio com a demanda é debitado ao erário da respectiva pessoa. Entretanto, Fazenda Pública igualmente não é pessoa jurídica, de modo que, encontrando-se tal referência no processo, deverá ela ser interpretada como indicativa de que a parte é a União, o Estado, o Município e, enfim, a pessoa jurídica a que se referir a Fazenda”. (7)

Se esses fossem sempre os parâmetros adotados, não haveria o risco de confusões e divergências, até mesmo porque a linha diferencial entre o que é e o que não é Fazenda Pública se aloja inteiramente dentro do sistema normativo e do campo da lógica.

Não obstante, surgem, esporadicamente, interpretações divergentes e, no caso em tela, indiscutivelmente anômalas. Em agravo regimental, interposto em recurso extraordinário, o STF decidiu que “as sociedades de economia mista prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado e de natureza não concorrencial submetem-se ao regime de precatório”. Concluiu a Corte na mesma decisão que “sociedade de economia mista prestadora de serviços de abastecimento de água e saneamento que prestasse serviço público primário e em regime de exclusividade – o qual corresponderia à própria atuação do Estado, sem obtenção de lucro e de capital social majoritariamente estatal – teria direito ao processamento da execução por meio de precatório”. (8)

Concessa maxima venia, a interpretação da Corte contraria o entendimento praticamente unânime dos estudiosos. Equiparar sociedade de economia mista a um ente público, enquadrando-a no conceito de Fazenda Pública, agride inteiramente a interpretação que vem sendo adotada na doutrina e na jurisprudência.

Os fundamentos da interpretação padecem de maior consistência. Com efeito, foi considerado o fato de a entidade prestar serviço público próprio do Estado e não ser objeto de concorrência. O argumento se afigura frágil, e isso porque, ainda que preste serviço público, a entidade tem personalidade jurídica de direito privado, não sendo admissível que tenha “erário”. A falta de concorrência, da mesma forma, em nada auxilia o entendimento, pois que existem muitos concessionários que também prestam serviços com exclusividade, sem que, por isso, sejam inseridos no conceito de Fazenda Pública.

Depois, a decisão alude a “serviço público primário” e a “regime de exclusividade”, ao mesmo tempo em que afirma não haver obtenção de lucro, sendo o capital majoritariamente estatal. Em primeiro lugar, a expressão “serviço público primário” é imprecisa, pois que afinal se precisa saber o que é um serviço primário. A situação de não obtenção de lucro é esdrúxula: se a entidade foi criada sob a forma de sociedade de economia mista, é porque, em tese, se vislumbrou a possibilidade de lucro, já que se trata de serviço público econômico. Quanto ao capital majoritário estatal, esse é um ingrediente inerente ao perfil desse tipo de pessoa paraestatal, inidôneo para “publicizar” a entidade.

De qualquer modo, tal entendimento decerto provocará muita confusão, sobretudo porque admite a aplicação do sistema de precatórios a pessoa jurídica de direito privado, como é o caso da sociedade de economia mista, o que reflete inegável contradictio in terminis. Noutro giro, confere a esse tipo de entidade privilégio incompatível com a sua natureza jurídica. Significa que, no caso de execução por quantia certa, os credores da entidade terão maior dificuldade de receber seu crédito, como ocorre, aliás, com os débitos dos entes públicos, o que decorre do próprio regime de precatórios. Ou seja: teremos uma pessoa privada com o privilégio de crédito específico das pessoas públicas.

Por fim, há um outro dado que não pode ser esquecido. O art. 173, § 1º, da CF, a despeito de prever um estatuto para as empresas públicas e as sociedades de economia mista, estabelece que a lei, quando se trata de exploração de atividade econômica e de prestação de serviços, deverá dispor sobre sua “sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” (inciso II). Além disso, dita o mesmo dispositivo, em seu parágrafo 2º: “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”.

Os textos constitucionais não são um primor de clareza, mas deles se extrai, inafastavelmente, que as sociedades de economia mista e as empresas públicas, embora vinculadas aos entes públicos, são dotadas de personalidade jurídica de direito privado e, por tal motivo, reclamam tratamento jurídico diverso daquele aplicável aos entes públicos. Conquanto não se lhes possa afastar alguma parte do direito público, são elas suscetíveis de predominante incidência do regime de direito privado.

Diante desse delineamento, parece-nos inteiramente incabível a aplicação do regime de precatórios a empresas públicas e sociedades de economia mista, sejam ou não prestadoras de serviço, atuem ou não no regime de exclusividade, tenham lucro ou não. São dados irrelevantes. Importa apenas que, sendo pessoas de direito privado, não têm erário e, consequentemente, não podem ser tidas como Fazenda Pública. Por essa razão, não será heresia considerar que a referida decisão se colocou em antagonismo com a Constituição.

Lamentamos apenas, e ao final, que, remando determinada interpretação em águas pacíficas, irrompa subitamente um novo entendimento que, longe do propósito de esclarecimento, venha a provocar, ao contrário, confusões e divergências e – o que é mais triste – desnecessariamente.


NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(1) PINTO FERREIRA, Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 4º vol., 1992, p. 63.

(2) LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, Comentários à Constituição Federal de 1988, coord. de Paulo Bonavides et alii, GEN/Forense, 2009, p. 1.228.

(3) JOSÉ CRETELLA JUNIOR, Dicionário de direito administrativo, Forense, 1978, p. 250.

(4) PINTO FERREIRA, ob. e vol. cit., p. 65. Observe-se que o autor mencionou o dispositivo em sua posição primitiva; atualmente, com o advento da EC 62/2009, a norma aloja-se no art. 100, § 5º, da CF.

(5) NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, Código de processo civil comentado, RT, 10ª ed., 2008, p. 1.063.

(6) LUIZ GUILHERME MARINONI e DANIEL MITIDIERO, Código de processo civil, RT, 2008, p. 689. Os autores referem-se ao CPC/1973, que correspondem ao art. 535 do CPC/2016.

(7) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, Atlas/GEN, 30ª ed., 2016, p. 1.176.

(8) STF, RE 852.302 – AgR/AL, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 15.12.2015 (Informativo Semanal nº 812, dez/2015).


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