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PARECERES E JURISPRUDÊNCIA
Parecer sobre a constitucionalidade do Projeto de Lei nº 191/2020
Paulo de Bessa Antunes
06/02/2023
Este Parecer objetiva examinar a constitucionalidade e a convencionalidade do Projeto de Lei nº 191/2020, ora em tramitação perante a Câmara dos Deputados que trata da regulamentação do § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição Federal para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos, bem como para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas, que altera as Leis nº 6.001, de 1973 e 11.460, de 2007.
Segundo o ilustre confrade Dr. Luís Fernando Priolli:
O assunto tomou particular relevância, ganhando contorno de grave crise humanitária, frente as informações veiculadas nos últimos dias com a visita do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva a Casa de Saúde Yanomami, na zona rural da cidade de Boa Vista, Roraima, bem como a declaração de emergência de saúde pública, pelo Ministério da Saúde, no dia 20 de janeiro de 2023, para combater desassistência sanitária de indígenas Yanomami.
Foi identificado que quase 100 (cem) crianças indígenas dessa tribo, infelizmente, faleceram durante o ano de 2022.
Foi apontado pelo Estudo inédito conduzido pela Escola Nacional de Saúde Pública (Enesp/ Fiocruz), com apoio do Instituto Sociambiental (ISA) do Laboratório de Quimica da PUC e da Hutukara Associação Yanomami (HAY) elevado nível de contaminação de mercúrio (Hg) nos Yanomamis.
O resultado gerou o relatório Avaliação de Exposição Ambiental ao Mercúrio Proveniente de Atividade Garimpeira de Ouro na Terra Indígena Yanomami, Roraima, Amazônia, Brasil, apresentado em 03 de março de 2016, e, em seguida entregue à diversas autoridades brasileiras.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 o artigo 231, parágrafo 3o reclama que haja a respectiva regulamentação por parte do Congresso Nacional, de forma que tal preceito adquira eficácia plena.
Como se demonstrará, o PL 191/2020 padece de vários vícios de inconstitucionalidade, retornando à concepções superadas sobre os direitos dos povos indígenas, afastando-se dos parâmetros legais e da prática internacional sobre o tema ora abordado. A matéria, entretanto, é relevante, pois se convertido em lei, o PL 191/2020, tem o potencial de desestabilizar relações jurídicas, gerar desgaste internacional para o Brasil e se constituir em grave violação da Constituição Federal e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [Convenção, Convenção 169] e menoscabo aos direitos dos povos originários.
1 – O Projeto de Lei nº 191/2020: aspectos gerais
O Projeto de Lei nº 191/2020 [PL 191/2020] é mais um de uma série de projetos de lei com o objetivo de regulamentar o artigo 231 de Constituição Federal, sob o argumento de que a norma constitucional em questão, não dispõe de eficácia plena, necessitando adensamento por meio de legislação infraconstitucional. A discussão do tema se tornou urgente, em função dos acontecimentos narrados na indicação que deu origem a este Parecer.
Diante da invasão de garimpeiros e madeireiros ilegais em terras indígenas, tem sido usual que setores da sociedade nacional hostis aos povos indígenas afirmem que a raiz do problema se encontra “na falta de regulamentação do artigo 231 da Constituição Federal [CF]”., na prática, culpando os indígenas pelos crimes contra eles cometidos. Incialmente, é preciso lembrar que o § 1º do artigo 5º da CF estabelece que as normas definidoras de direitos e garantias individuais têm “aplicação imediata”.
Não se discute que o artigo 231 da CF assegura os direitos coletivos e individuais dos indígenas, sendo certo que, nos termos da Convenção [art. 8º (3) ]1, o exercício dos direitos gerais atribuídos a todos os cidadãos, bem como as obrigações correspondentes, não restringem o exercício dos direitos especificamente atribuídos aos indígenas, em função de suas peculiaridades históricas e étnicas. Em igual sentido vai o artigo 1º da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.2
Assim, à primeira vista, não parece haver necessidade de regulamentação do referido artigo 231, haja vista que, na forma da própria Constituição Federal, a sua aplicação é imediata. A questão que parece dar margem à discussão é a matéria tratado no § 3º do artigo 231:
3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
A discussão decorre do fato de que o § 3º estabelece condições para o aproveitamento dos recursos que menciona e, claramente, determina a participação os indígenas no processo de tomada de decisão e nos resultados da decisão adotada, se favorável a exploração os recursos naturais. A “forma da lei” contemplada na parte final do § 3º tem limites constitucionais que não podem ser ultrapassados.
O primeiro dos limites é que os indígenas possam efetivamente manifestar a sua opinião de forma livre, prévia e informada sobre os projetos, programas, empreendimentos e políticas públicas que objetivem aproveitar economicamente os recursos minerais e os potencias hidrelétricos existentes em terras indígenas. Quanto ao particular, cabe relembra que o Brasil é Parte da Convenção 169 que, dentre outros temas, cuida da Consulta aos povos indígenas quando se trata de aproveitamento de recursos de suas terras, mesmo quando tais recursos são de propriedade do Estado, como é o caso brasileiro.
Logo, o PL 161/2020 não poderia ter disciplinado a “oitiva” sem adotar os parâmetros contemplados pela Convenção que, diga-se de passagem, sequer foi mencionada no aludido projeto de lei.
A Convenção 169, em seu artigo 6º determina que os governos, ao aplicar os seus termos deverão “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. O vocábulo deverá denota uma obrigação imposta aos Estados.
As consultas, conforme o disposto no artigo 6º (2) deverão ser “efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.” A Consulta pode chegar a três resultados: (1) não, (2) sim e (3) sim com condições.
No direito brasileiro, a norma que trata melhor da Consulta aos povos indígenas e tradicionais é a Lei nº 13.123/2015 que, no artigo 2º, VI e VII define os conceitos de consentimento prévio informado e protocolo comunitário3.
O Green Climate Fund, mecanismo associado ao Acordo de Paris4, em sua política para os povos indígenas, ao tratar das consultas, define o conceito de consulta significativa [meaningful consultation]5assim descrito:
“Consulta significativa” refere-se a um processo bidirecional que: (a) começa no início do processo de planejamento do projeto para reunir visões iniciais sobre a proposta do projeto e informar o seu desenho; (b) incentiva o feedback das partes interessadaos, particularmente como uma forma de informar o desenho do projeto e engajamento das partes interessadas na identificação e mitigação de riscos e impactos ambientais e sociais; (c) continua em uma base contínua, como riscos e os impactos surgem; (d) se baseia na prévia divulgação e disseminação de informações relevantes, informações transparentes, objetivas, significativas e de fácil acesso em um prazo que permite consultas significativas com as partes interessadas em um formato culturalmente apropriado, no(s) idioma(s) local(is) relevante(s) e é compreensível para as partes interessadas; (e) considera e responde ao feedback; (f) apóia o engajamento ativo e inclusivo com as partes afetadas pelo projeto; (g) está livre de manipulação externa, interferência, coerção, discriminação e intimidação; e (h) seja documentado e divulgado.
É importante observar que o mesmo documento chama a atenção para o fato de que:
16. Em alguns países, esses grupos são chamados de povos indígenas. Em outros países, eles podem ser referidos por outros termos, como “povos indígenas e comunidades locais”, “comunidades locais”, “comunidades locais tradicionais da África subsaariana historicamente mal atendidas”, “minorias étnicas indígenas”, “afrodescendentes comunidades da América do Sul e do Caribe”, “grupos étnicos”, “aborígenes”, “tribos das colinas”, “grupos vulneráveis e marginalizados”, “nacionalidades minoritárias”, “tribos classificadas”, “primeiras nações”, “grupos tribais”, “pastores”, “caçadores-coletores”, “grupos nômades” ou “moradores da floresta”. ndependentemente da terminologia usada, os requisitos desta Política se aplicarão a todos esses grupos.6
Estes são parâmetros adotados internacionalmente e devem ser considerados como mínimos, pois nada impede que medidas para ampliar o acesso e conhecimento do projeto sejam adotadas.
2 – O PL 191/2020 e a Convenção 169 da Organização Interacional do Trabalho
A Convenção 169 da OIT é o mais completo acordo multilateral com força obrigatória a dispor sobre os direitos dos povos indígenas. Ela tem sido reconhecida pelo Poder Judiciário brasileiro como norma com status supralegal, por se tratar de matéria relativa ao exercício de direitos humanos. A Consulta Livre, Prévia e Informada [CLPI] é o coração da Convenção, pois é ela que assegura os direitos de participação nas tomadas de decisão, por parte dos povos indígenas.
A Convenção 169 tem como destinatários os Estados-Partes, definindo direitos individuais e/ou coletivos que devem ser respeitados e, sobretudo, implementados, segundo diretrizes hermenêuticas nela previstas (artigos 1º (3) e 34 e 35). A Consulta é o instrumento jurídico apto a dar voz às comunidades potencial ou efetivamente impactadas por projetos, empreendimentos e /ou atividades a serem implantados em seus territórios tradicionais, assim como por política públicas. Ela é o resultado de um conjunto de procedimentos conduzido pelo Estado, conforme os usos e práticas tradicionais dos povos indígenas e comunidades tradicionais, por meio de suas instituições representativas, não havendo uma forma prescrita para a sua realização, pois deve respeitar o modo próprio de cada povo indígena ou comunidade tradicional.
A CLPI, como explanado anteriormente, não possui uma forma definida, devendo se adaptar a cada realidade local, observando os parâmetros estabelecidos pela Convenção, a saber: (1) ser realizada de boa-fé, (2) sem coação aos membros da comunidade, (3) com amplo acesso à informação, (4) dando feedback à comunidade quanto às suas reivindicações, (5) respeitando as instituições reconhecidas da comunidade envolvida e (6) documentação das atividades e (7) manutenção de diálogo constante.
O PL 191/2020, se transformado em lei, indica a implantação de uma política pública com impactos imediatos sobre os povos indígenas e seus direitos. Em tal condição, sua elaboração, necessariamente deveria passar por uma Consulta aos povos indígenas, por meio de suas organizações e, conforme os seus costumes. A Consulta não é procedimento formal e puramente simbólico, como já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, como se pode ver no RE 13.795/PA, relator o Senhor Ministro Alexandre de Moraes:
Destaque-se, também, que o dever de se ouvir previamente as comunidades indígenas afetadas não é, segundo a finalidade essencial da Constituição Federal, uma escuta meramente simbólica. Muito pelo contrário, essa oitiva deve ser efetiva e eficiente, de modo a possibilitar que os anseios e as necessidades dessa parte da população sejam atendidos com prioridade.7
Logo, no entendimento do STF a CLPI é um processo substantivo que deve ser efetivado de forma a propiciar a participação efetiva dos indígenas, ainda na fase de planejamento dos empreendimentos que, de alguma forma, venham a repercutir nas terras indígenas, mesmo que não venham a ser implantados diretamente nas terras indígenas.
O artigo 3º do PL 191/2020 estabelece as “condições específicas para a pesquisa e a lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas, a saber: (a) a realização de estudos técnicos prévios; (b) a oitiva das comunidades indígenas afetadas; (c) a autorização do Congresso Nacional para o desenvolvimento das atividades previstas no caput em terras indígenas indicadas pelo Presidente da República; (d) a participação das comunidades indígenas afetadas nos? resultados das atividades de que trata o caput; e (e) a indenização das comunidades indígenas afetadas pela restrição do usufruto sobre a terra indígena.
O Estudo Técnico Prévio consta do artigo 4º do PL 191/2020, devendo ser realizado preferencialmente na fase de planejamento setorial e objetiva avaliar o potencial da terra indígena para a realização das atividades de que trata o PL, conforme disposto em regulamento. Logo, não há qualquer garantia de que o “estudo técnico prévio”, efetivamente seja prévio, pois a norma indica que ele será preferencialmente realizado na fase de planejamento.
É importante registrar que, nos termos do inciso I do § 1º do artigo 5º do PL 191/2020 a FUNAI deve fazer a “interlocução com as comunidades indígenas afetadas”, com o objetivo, dentre outros, de “explicar e divulgar às comunidades indígenas afetadas a finalidade do estudo técnico prévio”. A “interlocução”, segundo o § 2º do artigo 5º do PL 191/2020 deve observar “as formas próprias dê representações das comunidades indígenas afetadas, seus usos, costumes e tradições”, conforme “prazos e condições previstos em regulamento.”
Determina o artigo 6º que o estudo técnico prévio observe (a) para a atividade minerária, o levantamento geológico8, com a? integração de dados geológicos e geofísicos disponíveis; (b) para a exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos, a integração de dados geológicos e geofísicos disponíveis com a identificação dos potenciais das bacias sedimentares de interesse; e (c) para o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica, o inventário hidroelétrico das bacias hidrográficas.
Compete à FUNAI, na forma do artigo 7º, realizar o mapeamento técnico indigenista9, cujas informações integrarão o estudo técnico prévio.
2.1 Oitiva das comunidades indígenas afetadas, para fins de autorização do Congresso Nacional
A chamada “oitiva” das comunidades indígenas traz em si o núcleo que gera a inconstitucionalidade de todo o PL 191/2020. De fato, o artigo 10 e os seguintes, esvaziam inteiramente o conteúdo jurídico da Convenção 169 e da participação substancial dos povos indígenas em temas relativos às suas terras. Com efeito, o artigo 10 do PL 191/2020 assim dispõe:
Art. 10. O órgão ou entidade responsável pela realização do estudo técnico prévio promoverá, às suas expensas e com o apoio técnico e supervisão da Funai, o procedimento de oitiva das comunidades indígenas afetadas, identificadas no mapeamento técnico indigenista, para explicar e divulgar os objetivos do empreendimento, como condição prévia à autorização do Congresso Nacional
O artigo é claramente inconstitucional, pois a “oitiva” dos povos indígenas é uma mera formalidade, sem qualquer relevância jurídica, que busca negar o direito de participação dos indígenas. De fato, a Constituição Federal no § 3º do artigo 231 estabelece que:
§ 3o O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
O § 3º indica a existência de 3 (três) condições constitucionais para o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas: (a) autorização do Congresso Nacional após a (b) manifestação das comunidades afetadas e (c) a participação das comunidades nos “resultado da lavra”.
O STF já decidiu que a autorização do Congresso Nacional é ato de competência exclusiva, não admitindo substituição por ato emanado do Executivo10. A autorização congressual é o ato derradeiro e decisivo quanto à autorização ou não para o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas. É ato político que, no entanto deve ser precedido de uma consulta substantiva aos povos indígenas em cujas terras se pretenda exercer as atividades econômicas já mencionadas.
No caso concreto, o Brasil é Parte da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que foi incorporada ao direito brasileiro com status de norma supralegal, por se tratar de acordo internacional multilateral sobre direitos humanos.
2. A Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT foi internalizada ao direito pátrio por meio do Decreto no 5.051/2004, posteriormente revogado pelo Decreto no 10.088/2019, que consolidou os atos normativos relacionados a convenções e recomendações da OIT ratificadas pelo Brasil. Compreendendo-se que dispõe sobre direitos humanos, já que seu objeto são os direitos de indígenas e povos tribais, caracteriza-se como norma de status constitucional. 3. O artigo 6o da referida Convenção estabelece o dever de os governos consultarem os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e através de instituições representativas, acerca de medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Desse modo, subentende-se que a realização de consulta prévia fica adstrita a situações de implementação ou modificação de políticas públicas direcionadas aos povos indígenas.11
Logo, o PL 191/2020 não poderia desconsiderar a aplicação da Convenção como forma de dar concretude à chamada “oitiva”. Por isso, aqui há mais um dispositivo inconstitucional no aludido projeto de lei. Aliás, observe-se que o artigo 10 do PL 191/2020 estabelece que a “oitiva” não tem por finalidade obter o consentimento ou chegar a um acordo sobre o projeto pretendido, mas pura e simplesmente, “explicar e divulgar os objetivos do empreendimento”. Em outras palavras, a “oitiva” é uma mera comunicação aos indígenas que o empreendimento será realizado, apesar da opinião dos povos originários.
O artigo 11 do PL 191/2020 estabelece os parâmetros para a “oitiva”, a saber: (a) respeito à diversidade cultural, usos, costumes e tradições das?comunidades indígenas; (b) garantia do direito à informação; (c) linguagem compreensível; (d) realização na própria terra indígena ou em outro local acordado com as comunidades indígenas afetadas; (e) transparência; e (f) estabelecimento de canais facilitadores de diálogo. O artigo viola o artigo 6º da Convenção em especial o parágrafo (2).
Artigo 6°
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis deafetá-Ios diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
O artigo 14 do PL 191/2020 estabelece uma presunção no sentido de que o empreendimento proposto será realizado, independentemente do resultado da “oitiva”. E mais: menospreza os seus resultados. O § 1º do artigo 14 estabelece que o “Presidente da República considerará a manifestação das comunidades indígenas afetadas para a realização das atividades de que trata o caput.” A “consideração”, no entanto, é vazia de conteúdo, pois como estabelecido pelo § 2º do artigo 10, o “pedido de autorização poderá ser encaminhado com manifestação contrária das comunidades indígenas afetadas, desde que motivado.” Ou seja, não há obrigação de submeter ao Congresso Nacional o resultado da “oitiva”. É poder discricionário do Chefe do Executivo levar, ou não, ao conhecimento do Parlamento o conteúdo da manifestação dos povos indígenas. E mais, os indígenas deverão “motivar” a sua opinião sobre o empreendimento.
O papel puramente cosmético da “oitiva” fica cabalmente demonstrado pelo artigo 15 do PL 191/202012que, ao excluir o resultado da “oitiva” da relação dos documentos a serem encaminhados ao Congresso Nacional, para a obtenção da autorização, demonstra que ela é um simulacro de Consulta.
Como se sabe, o dever de motivação é da Administração Pública, conforme o disposto no artigo 2º da Lei nº 9.784/199913, não das comunidades indígenas. O artigo 14 é uma violação frontal e direta do artigo 7º (1) da Convenção 169 da OIT:
Artigo 7º
Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio Desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-Ios diretamente.
A propósito, veja-se a seguinte decisão:
A consulta às comunidades tradicionais tem como finalidade assegurar a participação plena e efetiva destes grupos minoritários na tomada de decisões que possam afetar sua cultura e seu modo de viver. Devem ser realizadas antes de qualquer decisão administrativa, a fim de efetivamente possibilitar que os grupos tradicionais e minoritários exerçam influência na deliberação a ser tomada pelos órgãos oficiais. Diferente da audiência pública do procedimento de licenciamento ambiental, cuja finalidade é informar à sociedade em geral e fomentar a sua participação quanto aos impactos ambientais (art. 225 da Constituição).O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado (CCPLI) recebeu proteção jurídica nacional com a ratificação da Convenção nº. 169/OIT, no dia 20 de junho de 20022, que entrou em vigor em 25 de julho de 2003. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), em vigor no Brasil desde 25 de setembro de 1992 e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), assinada em 2007, também oferecem proteções internacionais, localizando o direito à CCPLI no rol dos direitos humanos fundamentais para povos indígenas e tribais. Pelo fato de disporem sobre direitos humanos, as citadas Convenções foram incorporadas à legislação brasileira na qualidade de normas supralegais, possuindo aplicabilidade imediata, como tem reconhecido o Supremo Tribunal Federal (STF). 3. No plano jurisprudencial, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), mediante interpretação evolutiva do artigo 21 da CADH, definiu o direito à CCPLI como “princípio geral do Direito Internacional” [Corte IDH. Caso del Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador. Sentencia Serie C Nº 245 del 27 de junio de 2012 (Fondo y Reparaciones). Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/ casos/articulos/seriec_245_esp.pdf]. A jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos reforçou a necessidade de os Estados realizarem processos de consulta especiais e diferenciados, com respeito à organização social de cada povo ou comunidade tradicional. No mesmo sentido, os tribunais brasileiros, em diversas oportunidades, reconheceram o direito à CCPLI em casos envolvendo povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais. O artigo 6º da Convenção 169/OIT prevê que devem ser consultadas todas as medidas administrativas e legislativas que afetem diretamente povos indígenas e tribais. Trata-se de oportunidade para o diálogo intercultural influenciar a decisão de governo. Assim, não caberiam hipóteses de exclusão do direito à consulta sobre medidas que afetam os povos interessados, suas terras e seus direitos; nem de restrição por interesse público ou diminuição do escopo da consulta para mera negociação de mitigações e compensações. Ao julgar os casos Saramaka vs. Suriname (2007) e Kichwa de Sarayaku vs. Equador (2012), a Corte Interamericana de Direitos Humanos fez uso da técnica de interpretação evolutiva para ampliar o alcance do artigo 21 da CADH (direito de propriedade) ao direito de propriedade comunal de povos indígenas e tribais, e a sua exclusividade no uso e gozo de seu território e de seus recursos naturais. A regra, portanto, é a exclusividade. Nesse sentido, o Sistema Interamericano entende que, excepcionalmente, qualquer limitação ou restrição ao direito à propriedade comunal e ao usufruto exclusivo deve atender simultaneamente a cinco requisitos: a) estar prevista em lei; b) ser necessária; c) ter um fim legítimo; d) ser proporcional à lesão causada ao direito restringido; e) não ameaçar a subsistência física ou cultural do povo. A fim de assegurar que a medida prevista não ameace a subsistência do grupo afetado, o Estado deve cumprir três garantias adicionais: realização de consulta prévia, livre e informada; repartição de benefícios, e estudo de impactos conduzidos por entidades independentes e tecnicamente capazes. Assim, violam a Convenção 169/OIT e o artigo 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos as interpretações que restrinjam o alcance da consulta ou estabeleçam exceção às hipóteses de incidência.
…………………..
A “urgência” ou o “interesse público” que supostamente subjazem a uma a medida não autorizam o governo a deixar de consultá-la, mesmo porque estas exceções não estão previstas nas normas internacionais. 4. No que diz respeito à CCPLI, no caso Raposa Serra do Sol, o STF entendeu que não se trata de um direito absoluto, podendo ser excepcionado quando estiverem em jogo outros bens constitucionais relevantes, como a defesa nacional. Significa que a corte constitucional brasileira compreendeu que operações militares não gerariam a obrigação de consulta aos povos afetados da região. Porém, ainda de acordo com o STF, o mesmo entendimento não poderia ser estendido a outros projetos como, por exemplo a construção de uma estrada, mesmo que estrategicamente importante. A decisão da Suprema Corte brasileira dispôs que os resultados da consulta “devem ser honesta e seriamente considerados”, afirmando ainda que tal recomendação não significava que a decisão final do Poder Público dependeria de aquiescência dos indígenas.14
2.2 Participação dos povos indígenas afetados no resultado das atividades e indenização pela restrição do usufruto.
Os artigos 18/20 do PL 191/2020 tratam da participação das “comunidades indígenas afetadas” nos resultados das atividades desenvolvidas nas terras indígenas.
Art. 18. A lavra de recursos minerais e o aproveitamento de potenciais de energia hidráulica em terras indígenas ensejam, a partir da operação comercial dos empreendimentos, o pagamento, a título de participação nos resultados, às comunidades indígenas afetadas, dos seguintes valores:
I na hipótese de aproveitamento de potenciais de energia?hidráulica, sete décimos por cento do valor da energia elétrica produzida, aserem pagos pelo titular da concessão ou da autorização para exploração de potencial hidráulico, excluídos tributos e encargos, com base na tarifa atualizada de referência, nos termos do § 2º do art. 3º da Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 198915;
II na hipótese de lavra de petróleo, gás natural e outros? hidrocarbonetos fluidos, entre cinco décimos por cento e um por cento da produção de petróleo ou gás natural, a critério da Agência Nacional do Petróleo,Gás Natural e Biocombustíves, nos termos do disposto no art. 52 da Lei nº9.478, de 6 de agosto de 99716; e
III na hipótese de lavra dos demais recursos minerais, cinquenta? por cento do valor da compensação financeira pela exploração de recursos minerais, nos termos do disposto no art. 11, caput, alínea b e § 1º, do Decreto Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 196717.?
§1º A periodicidade e a forma de pagamento da participação nos resultados serão previstas em regulamento.
§ 2º Na hipótese de as atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e de aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica serem realizadas em mais de uma terra indígena, a distribuição da participação nos resultados de que trata o caput será feita proporcionalmente, nos termos do disposto em regulamento, considerada a área outorgada para a implantação do empreendimento.
§ 3º A repartição dos recursos financeiros relativos ao pagamento da participação nos resultados das atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e de aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica entre as comunidades indígenas afetadas será prevista em regulamento, considerado o grau de impacto da atividade em cada comunidade.
§ 4º O pagamento da participação nos resultados de que trata o caput não será dedutível das parcelas devidas a título de compensação financeira aos entes federativos, asseguradas as participações previstas na Lei nº 7.990, de 1989, na Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, na Lei nº 9.478, de 1997, e na Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010.
O artigo 18 do PL 191/2020 afronta o artigo 15 (2) da Convenção, pois não prevê qualquer mecanismo de Consulta para a fixação das indenizações devidas aos povos indígenas, em função da exploração mineral e de recursos hidrelétricos nas terras indígenas18.
2.3 Conselho Curador
Os artigos 21/27 do PL 191/2020 estabelecem as competências dos “conselhos curadores19” que são “entidades de natureza privada”, responsáveis “pela gestão e pela governança dos recursos financeiros relativos ao pagamento da participação nos resultados e da indenização pela restrição do usufruto” sobre as terras indígenas. A norma proposta é discriminatória e inconstitucional.
O artigo 5º da Constituição Federal estabelece que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
A instituição dos conselhos curadores é a tentativa de manutenção de um regime jurídico superado que considerava os indígenas relativamente incapazes. Este regime não existe mais desde a Constituição de 1988 que estabeleceu a plena igualdade de direitos entre os indígenas e os demais setores da população brasileira.
Código Civil 1916 | Código Civil 2002 |
Art. 6º São incapazes relativamente a certos atos (art. 147, nº I), ou à maneira de os exercer: III – Os silvícolas. Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País. | Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. |