32
Ínicio
>
Administrativo
>
Clássicos Forense
>
Revista Forense
ADMINISTRATIVO
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
A evolução do desvio de poder na jurisprudência administrativa
Revista Forense
04/11/2022
REVISTA FORENSE – VOLUME 155
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413
FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO
FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,
Abreviaturas e siglas usadas
Conheça outras obras da Editora Forense
SUMÁRIO REVISTA FORENSE – VOLUME 155
CRÔNICA
DOUTRINA
- A organização e o funcionamento do Poder Judiciário, M. Seabra Fagundes
- Autarquias estaduais e municipais, Carlos Medeiros Silva
- Normas gerais de direito financeiro, Rubens Gomes De Sousa
- As transformações do Direito de família, Lino De Morais Leme
- Nulidades no Direito contratual do Trabalho, Orlando Gomes
- Pressupostos processuais, Ademar Raimundo Da Silva
- A evolução do desvio de poder na jurisprudência administrativa, Roger Vidal
PARECERES
- Mandado de Segurança Contra a Lei em Tese – Ato Normativo – Requisição de Aguardente pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, Francisco Campos
- Fideicomisso e Usufruto – Distinção, Carlos Medeiros Silva
- Impôstos – Arrecadação Estadual – Excesso a ser entregue aos Municípios, Aliomar Baleeiro
- Impôsto de Renda – Pessoa Jurídica Domiciliada no Estrangeiro – Convenção de “Royalties”, Rui Barbosa Nogueira
- Contrato Administrativo – Revisão de Preço – Teoria da Imprevisão, Caio Tácito
- Contrato por Correspondência com Firma Estrangeira – Nota Promissória – Requisitos Essenciais, Afrânio de Carvalho
- Advogado – Retirada de Autos de Cartório – Processos Criminais, Evandro Lins e Silva
NOTAS E COMENTÁRIOS
- A Conclusão de Atos Internacionais no Brasil, Hildebrando Accioly
- O Federalismo e a Universidade Regional, Orlando M. Carvalho
- Inelegibilidade por Convicção Política, Osni Duarte Pereira
- Embargos do Executado, Martins de Andrade
- Questão de Fato, Questão de Direito, João de Oliveira Filho
- Fantasia e Realidade Constitucional, Alcino Pinto Falcão
- Da Composição da Firma Individual, Justino de Vasconcelos
- A Indivisibilidade da Herança, Gastão Grossé Saraiva
- O Novo Consultor Geral da República, A. Gonçalves de Oliveira
- Desembargador João Maria Furtado, João Maria Furtado
JURISPRUDÊNCIA
LEIA:
SUMÁRIO: Introdução. I. Desvio de poder e incompetência. II. Influência do contrôle de motivos: A. O papel do contrôle de motivos na prova do desvio de poder; B. A influência da teoria da inexistência de motivos. III. A determinação do objetivo da lei. Conclusão.
Sobre o autor
Roger Vidal, Ex-diretor de cursos nas Faculdades de Direito, em França
DOUTRINA
A evolução do desvio de poder na jurisprudência administrativa
* Sabe-se que no ato jurídico – como em qualquer ato – encontram-se, além de um objeto, um motivo antecedente e uma finalidade, por si próprios determinantes da manifestação de vontade do autor do ato. Em conseqüência, um ato jurídico será legal na medida em que êsses diversos elementos forem, por si mesmos, conformes à legalidade. Se, quanto ao objetivo, surgir uma ilegalidade, o ato será acoimado de desvio de poder. Com efeito, essa expressão, criada, ao que parece, por AUCOC e vulgarizada por E. LAFERRIÈRE, se aplica ao ato pelo qual uma autoridade tenha usado seus poderes numa finalidade diferente daquela em virtude da qual tais poderes lhe foram conferidas.
Já com a idade de quase um século, pois que nasceu em 1860, a teoria jurisprudencial do desvio de poder deu lugar a numerosos estudos, hoje obsoletos, e cuja existência bastaria para explicar que um certo menosprezo se tenha ulteriormente manifestado acêrca das pesquisas relativas a essa questão, se uma outra explicação não nos parecesse suscetível de ser invocada.
A importância e a novidade dos problemas jurídicos posteriormente suscitados pelas interpretações do Conselho de Estado, em matéria de anulação por inexistência de motivos, provocaram um interêsse assaz importante, de que é testemunho o acervo de trabalhos concernentes à nova teoria, surgidos, mais ou menos, durante o período de 1920-1930. Ora, se a conexidade existente no processus de execução dos atos entre o motivo antecedente e a finalidade obrigava os autores dêsses trabalhos a se ocuparem, de certo modo, da velha teoria do desvio de poder, isso acontecia, salvo exceção, de maneira acessória e sem pretender apresentar uma visão de conjunto detalhada da influência que o desenvolvimento do contrôle dos motivos no contencioso da anulação exercia sôbre a evolução do desvio de poder.
O presente estudo é consagrado essencialmente a essa tarefa. Pretendemos demonstrar como, depois de se beneficiar com o contrôle dos motivos (sòmente quando êste último tenha servido de simples prova de desvio de poder), esta maneira de solucionar o problema perdeu a sua principal utilidade, no dia em que, com a admissão da anulação por inexistência de motivos, entrou em cena um novo meio, cujo campo de aplicação coincide em parte com o do desvio de poder. Por outras palavras, uma vez que se ache definido o papel do motivo na prova da ilegalidade quanto ao objetivo do ato, faremos o exame das relações que unem a teoria do desvio de poder e a da inexistência de motivos, deixando de ser considerada como acessória a teoria do desvio de poder, para tornar-se, pelo contrário, o centro de nossas atenções.
Essa análise das relações que unem as duas teorias contribuirá para mostrar, uma vez mais, todo o interêsse da concepção moderna da legalidade, tal como se apresenta quando os seus diversos aspectos são encarados como reprodução fiel dos elementos do ato jurídico. Além disso, antes de abordar essa parte essencial de nosso estudo, já tivemos, nós mesmos, o ensejo de aplicar essa concepção eminentemente útil à compreensão de numerosos problemas num ensaio de explicação sôbre as origens da teoria do desvio de poder. Com efeito, tal concepção parece-nos suscetível de permitir a refutação de um êrro bastante espalhado e que consiste em considerar o desvio de poder como proveniente do contrôle da legalidade externa, encarada sob o aspecto orgânico da incompetência.
Para nós, o desvio de poder se formou de maneira autônoma e essa maneira de ver nos levará – depois de haver ràpidamente assinalado as recentes extensões do desvio de poder, principalmente em matéria de pesquisa da finalidade da lei – a concluir nosso estudo com uma contribuição ao problema da natureza jurídica dêsse método de interpretação e da determinação dos princípios que influíram em sua evolução e presidiram ao seu nascimento.
I. DESVIO DE PODER E INCOMPETÊNCIA
Num importante estudo sôbre o recurso contra excesso de poder sob o regime da justiça de competência, o autor, Sr. LANDON, observa que em 1857 o excesso de poder ainda não era levado em conta para fins de decisão no contencioso (C. E., 6 de março de 1857, Bédier, Leb., pág. 177). Pelo contrário, acrescenta êle, os procuradores do govêrno L’HÔPITAL e AUCOC reconhecem a existência dêsse tipo de recurso nas conclusões apresentadas em 1864 e 1865 (C. E., Commune d’Houmont, Leb., pág. 430, e 14 de janeiro de 1865, Ville de Marseille, Leb., pág. 59). Para êle, a primeira aplicação indiscutível remontaria ao aresto Lesbats, de 25 de fevereiro de 1864 (Leb., pág. 209), embora LAFERRIÈRE se refira, a tal respeito, a um aresto Vernhes de 19 de maio de 1858 (Leb., pág. 399). De qualquer forma, o que é preciso reter do estudo de LANDON é que, anteriormente à, construção da teoria do desvio de poder. Êste último aparecia aqui e ali como tendo sido objeto da desaprovação do Conselho de Estado, sem que, entretanto, disso haja resultado qualquer sanção. A anulação, diz o mesmo autor, intervém sòmente quando se trata da violação da lei e dos direitos adquiridos, de sorte que, se nos, detivermos no exame dos já mencionados a restos, que remontam, aliás, a uma época em que a violação da lei não era ainda incorporada ao recurso contra o excesso de poder, poderemos concluir que o desvio de poder nasceu de uma profunda investigação da irregularidade interna. Mas essa opinião jamais foi aceita. Pelo contrário, foi substituída por uma outra, que, apoiando-se sôbre arestos algumas vezes muito antigos e sôbre a autoridade de LAFERRIÈRE, sustenta que o desvio de poder teria tomado características aparentes da incompetência para introduzir-se na jurisprudência do Conselho de Estado.
Sabe-se que, em sua origem, a expressão excesso de poder designava a violação do princípio da separação dos poderes pelos representantes do Judiciário e que a Suprema Côrte devia manter a noção de excesso de poder em limites assaz estreitos, pois que a mesma noção sòmente foi ampliada para abranger a invasão de um órgão judiciário nas atribuições de outro órgão da mesma ordem, assim como os exemplos mais nítidos de violação das formas.
Esta foi a concepção que se introduziu na jurisprudência do Conselho, de Estado, sem que êste último tivesse a idéia de justificar êsse empréstimo por textos legais, pois que sòmente mais tarde, em 1832, é que êle se lembrou de invocar a famosa lei de 7-14 de outubro de 1790. E foi com apoio nêsse texto, que literalmente permitia ao chefe do Estado, presidindo como juiz em seu Conselho de Estado, estatuir sôbre as reclamações de incompetência relativamente aos órgãos administrativos, que devia fundar-se todo um movimento doutrinário, tendo por objetivo justificar a jurisprudência do excesso de poder mediante uma ampliação do conceito da incompetência.
Ora, embora fôsse bastante fácil aceitar que o excesso de poder, concebido, em sua origem, como forma particularmente grave da incompetência – invasão no domínio judiciário – podia ser considerado como equivalente à incompetência em geral, tornava-se mais difícil admitir-se que a violação das formas participava do excesso de poder, sob o pretexto de que é exorbitar de sua competência o eximir-se das condições a que o seu exercício se acha subordinado por lei. Tanto a incompetência como a violação das formas apresentavam, todavia, pelo menos o caráter comum de referir-se apenas à legalidade externa dos atos, isto é, aquela cujo respeito se torna, em primeiro lugar, indispensável assegurar, a fim de manter a disciplina numa administração centralizada e hierarquizada. Pelo contrário, sendo o desvio de poder uma ilegalidade concernente a um dos elementos constitutivos dos atos jurídicos e a sua pesquisa nos obrigando, por conseguinte, a penetrar no exame da legalidade interna dêsses atos, qualquer assimilação do desvio de poder à incompetência só podia ser inexata. Para que essa inexatidão fôsse, todavia, nìtidamente percebida, ainda teria sido necessário conhecer os resultados obtidos pela doutrina, em seu esfôrço para apresentar a legalidade dos atos bem decomposta em seus diversos aspectos. Isto sòmente foi possível muito depois dos estudos de E. LAFERRIÈRE.1
Outrossim, muitos autores admitiram, de acôrdo com tais estudos, que o desvio de poder pode ser considerado como uma variedade da incompetência. Tal concepção, apesar disso, não se encontra nas obras mais antigas: AUCOC declara mesma, numa definição muitas vêzes reproduzida com variantes, que o autor do desvio de poder nem por isso deixa de agir nos limites de sua competência. DUCROCQ, DARESTE, BATBIE, depois TAUDIÈRE, na sua revisão de DUFOUR, adotam a mesma maneira de ver, que se encontra igualmente em autores recentes (ARTUR, BEURDELEY, EBREN, LANDON, LAPARRE, LADREIT DE LACHARRIÉRE).2
LAFERRIÈRE se lembra, inicialmente, de que numerosos arestos coíbem o desvio de poder quando o autor do ato impugnado usou dos poderes que lhe competiam para um objetivo diverso em virtude do qual tais poderes lhe foram conferidos. Declara, também, que é preciso que se verifique, da parte do administrador, um abuso de mandato; depois conclui que um tal administrador toma, sob falsa aparência de legalidade, decisões que lhe não cabe tomar e que, dêste modo, são tachadas de uma espécie de incompetência, senão pelas prescrições que estabelecem, ao menos pelo objetivo que buscam alcançar.
LAFERRIÈRE cita apenas um dêsses antigos arestos. O Conselho de Estado, no aresto em aprêço, determina que um prefeito, competente para regulamentar o regime das águas correntes no interêsse geral, não poderia decretar a supressão de uma reprêsa quando estatui não mais na salvaguarda daquele interêsse, mas sòmente para decidir sumàriamente um litígio entre particulares. Isto pôsto, a sua decisão foi anulada por incompetência, por isso que dizia respeito a uma questão reservada aos tribunais judiciários (25 de maio de 1811, Outin, Leb., página 276).
ARTUR diz, não sem alguma razão, que, se a expressão desvio de poder não se encontra naquele aresto, nem por isso a coisa deixou de ser nìtidamente descrita e caracterizada. E êsse autor cita um outro aresto daquela época, o qual anulou, também, por incompetência, um decreto do prefeito, e encaminhou os interessados tribunais judiciários (12 de abril de 1812, Royre, Leb., pág, 337).
Para apreciar exatamente o alcance de tais decisões, convém notar que, muito embora tenham sido preocupações estranhas à boa administração as causas que levaram as autoridades administrativas além dos limites de sua competência, e que, por conseguinte, foram levadas à incompetência pelo desvio de poder, isto não significa que essas duas irregularidades sejam, apesar de ìntimamente ligadas de fato, lògicamente destacáveis uma da outra. É preciso não deduzir dêsses arestos que, em casos dessa natureza, o desvio de poder é apenas uma incompetência, e sim que nos achamos em presença de uma incompetência que só poderá ser comprovada por meio de uma análise sôbre a natureza íntima do ato impugnado, análise essa que permita pôr em evidência que o seu autor agiu numa intenção tal que êsse ato acarretou um caso que, na realidade, depende da competência de um tribunal judiciário. Nessas espécies, o desvio de poder dá lugar a uma ilegalidade particularmente grave, constituída pela violação de regras claramente estabelecidas pela lei e suscetíveis de acarretar a anulação, sem que haja necessidade de lançar mão de um novo método de interpretação.
Em suma, há exagêro em declarar, como LAFERRIÈRE, que o desvio de poder constitui uma espécie de incompetência. Êsse autor, aliás, emitiu, sem dúvida, uma idéia mais justa quando se contentou em afirmar que o desvio de poder sòmente constitui uma verdadeira incompetência no caso em que a busca de um fim irregular é completamente interdita por estar fora da alçada administrativa. Acrescenta êle, outrossim, que é ùnicamente nesse caso que a Alta Côrte poderá anular, de ofício, o desvio de poder, o qual, entretanto, não seria invocado pela parte a quem cabe o ônus da prova.
Certamente, a segunda fórmula de LAFERRIÈRE não deixa de suscitar, por sua vez, certas reservas. Demasiado estreita por não exprimir que o desvio de poder pode conduzir à incompetência no caso em que esta última consistisse apenas na prática de um ato da competência de outra autoridade administrativa, ela é, ao mesmo tempo, demasiado ampla, por isso que engloba a hipótese de que o autor do desvio de poder teria saído do domínio reservado à administração, realizando um ato que não seria da alçada de nenhuma outra autoridade, de qualquer categoria.
Nesse último caso, não há incompetência, pois nenhuma outra competência foi fixada. Se o ato é irregular, é porque o seu conteúdo o coloca fora do campo de aplicação do próprio direito administrativo. A irregularidade diz respeito às prescrições que constituem a essência mesma do ato. É, portanto, uma ilegalidade material quanto ao objeto, demasiado afastada da incompetência, a qual sòmente evoca, se empregarmos êste têrmo no sentido que lhe atribui a jurisprudência, a simples ilegalidade externa quanto ao órgão.3 Em tôdo caso, aquela fórmula apresenta a vantagem de mostrar que não se poderia realizar a aproximação entre a incompetência e o desvio de poder no caso de o autor do ato irregular ter agido nos limites de sua competência, mas procurando alcançar um fim em virtude do qual os seus poderes foram organizados.4
Das duas teses de LAFERRIÈRE, é finalmente a mais reservada que foi adotada pelos autores que mais ou menos aproximaram o desvio de poder da incompetência, de sorte que não se pode dizer que êles assimilaram o primeiro à segunda. Para HAURIOU e ALIBERT, a decisão eivada de desvio de poder não pode ser considerada como viciada pela incompetência, mas apenas por uma variedade dessa última, isto é, que, em vez de resultar do dispositivo do ato, ela reside no objetivo colimado pelo agente. ROLLAND vê no desvio de poder uma incompetência “de um gênero um pouco particular”, e RÉGLADE, uma variedade, ou, pelo menos, um derivado da incompetência.
Pelo contrário, DUGUIT chega até a censurar LAFERRIÈRE de ter sido demasiado tímido em aproximar as duas noções, pois afirma que o desvio de poder é um dos três aspectos abrangidos pela incompetência. Para êsse autor, a competência é o poder de agir segundo certas formas, num certo domínio e num certo objetivo. Agir sem respeitar o objetivo pretendido pela lei é violar a lei de competência cometendo um desvio de poder. Mas, para DUGUIT, a competência, definida “como um poder de querer com um efeito jurídico quando o ato é determinado por um objetivo reconhecido como legítimo pela lei”, parece corresponder a uma concepção singularmente ampliada com relação à da jurisprudência. Parece mesmo que a sua maneira de ver deveria conduzi-lo a fazer de todo recurso contra excesso de poder uma ação baseada apenas na incompetência, o que seria històricamente inadmissível, tendo-se em vista as condições segundo as quais a violação da lei fêz o seu ingresso na jurisprudência. O quarto caso se apresenta, com efeito, como particularmente irredutível à incompetência. Muito embora se reconheça o valor do esfôrço de DUGUIT para dar à idéia de objetivo um lugar proeminente na construção do direito, não se pode, contudo, subscrever as suas afirmações no que concerne à assimilação (quanto ao objetivo) da ilegalidade à incompetência.
É preciso, todavia, reconhecer que, dentre os autores que ligam o desvio de poder à incompetência, DUGUIT é o único que apresenta uma idéia original da questão; a razão disto estaria em que a sua tese consiste numa vasta visão de conjunto abrangendo os próprios fundamentos do direito. Os outros autores não buscaram, a que nos parece, sair do rumo traçado por LAFERRIÈRE. Êsse rumo, já o indicamos. Resta-nos pesquisar quais foram os motivos que levaram LAFERRIÈRE a negligenciar certos fatos cuja existência permite atribuir ao desvio de poder um ponto de partida assaz diferente daquele que êsse autor julgou dever assinalar.5
Com efeito, êsse método de abordar a solução do problema tem a sua origem na natureza altamente consuetudinária do recurso contra excesso de poder e que MACAREL já havia reconhecido quando: escrevia, há alguns anos, que, muitas vêzes, a competência contenciosa do Conselho de Estado é implícita e resulta de princípios que sòmente se acham indicados nos textos, de um modo geral. O próprio LAFERRIÈRE quase notou essa característica, mas em têrmos que o mostram, como observou ARTUR, como guiado por essa preocupação característica dos homens do século XIX de se apoiarem em textos, porque não podem resignar-se a reconhecer o caráter consuetudinário de uma instituição. Com efeito, aquêle autor diz que a jurisprudência do excesso de poder se desenvolveu de modo pretoriano, por meio de deduções engenhosas e às vezes um pouco sutis, que transformaram as regras primitivas.
Quando se tiver em vão procurado essas regras primitivas, transformadas por uma jurisprudência ciosa de preencher as lacunas do antigo direito, a fim de atenuar-lhe o rigor, reconhecer-se-á que fôra exato aceitar a noção de um recurso contra excesso de poder, de origem consuetudinária. Além disso, um estudo crítico completo da doutrina de LAFERRIÈRE permitiria que se compreendesse melhor a atitude ambígua do eminente autor, que, embora descrevendo êsse recurso como uma instituição consuetudinária, procurou ligá-lo, a qualquer preço, aos textos legais. Abstração feita do caráter artificial que êsse esfôrço pouco proveitoso transmitiu ao desenvolvimento de sua teoria, resta-nos dizer que outra coisa não fêz LAFERRIÈRE senão descrever o desvio de poder em suas origens consuetudinárias. Citemos, como bastante significativo a tal respeito, a passagem consagrada à introdução do desvio de poder, essa engenhosa criação do Conselho de Estado: “A jurisprudência achou um meio de estender aos atos realizados pela administração, em virtude de seus poderes discricionários, um contrôle de legalidade ao qual parece difícil submetê-los… Mas, se a lei não fixa com antecedência o teor dessas decisões, determina, pelo menos, o seu objetivo geral e o espírito segundo o qual elas devem ser tomadas… Inspirando-se nessa verdade, a jurisprudência admitiu que os atos discricionários podem ser anulados como ilegais quando são baixados com um objetivo diverso daquele que a lei teve em vista”.
Além disso, LAFERRIÈRE indica que o que permitiu ao Conselho de Estado desenvolver o recurso contra excesso de poder foi a presença de um elemento de contrôle hierárquico em sua intervenção, em conseqüência da longa persistência do regime da justiça discricionária. Tomando tais decisões em nome do chefe supremo da administração, diz LAFERRIÈRE, o Conselho tinha mais amplitude do que um tribunal administrativo “para criar fora dos textos e para fazer aceitar aos administradores de qualquer espécie um contrôle cada dia mais severo da legalidade de seus atos”. Ora, a influência do princípio da justiça discricionária se exerceu nìtidamente durante os últimos anos do Segundo Império, precisamente no momento em que o desvio de poder se estende e contribui para fazer do recurso contra excesso de poder um útil contrapêso trazido pelo império liberal às medidas de desconcentração do império autoritário. Com efeito, ao permitir que as prefeitos emitissem julgamentos, em numerosos casos, sem aprovação ministerial, aumentaram-se muito os riscos de arbitrariedades, porque é justamente com as decisões tomadas sumàriamente que aquêles riscos são para temer.
É quase certo que a intervenção de um elemento hierárquico haurido no princípio da justiça discricionária favoreceu particularmente o desvio de poder. Sua pesquisa leva o juiz mais longe no contrôle da atividade administrativa, fazendo com que o fato se decida com apoio em considerações políticas, econômicas ou morais nas quais os elementos pessoas de apreciação representam um grande papel.
Mas, se concluirmos pelo nascimento autônomo do desvio de poder sob a influência preponderante de um elemento de contrôle hierárquico, cuja existência permitiu ao, Conselho de Estado “transpor um limiar”, passando do contrôle da legalidade externa para o da legalidade interna (LADREIT e LACHARRIÈRE), isso não quer dizer que tivéssemos pretendido atribuir a êsse método de interpretação uma natureza jurídica especial. Não nos parece que os autores que, segundo uma posição doutrinária que tornaremos a deparar, querem analisá-lo como meio de ultrapassar o contrôle da legalidade para atingir o da moralidade administrativa, possam encontrar, nas condições de seu nascimento, argumentos próprios para apoiar a sua tese. Êsse elemento hierárquico está, com efeito, presente em todo recurso contra excesso de poder; ação essa que um antigo autor considerava como “criada num objetivo político superior” (COLLET). Com efeito, assim como não se pode deduzir lògicamente o desvio de poder da incompetência, pois que êsses dois fenômenos dizem respeito a dois aspectos assaz diferentes da legalidade, da mesma forma não, se poderia esquecer que o método de interpretação oriundo do excesso de poder já vinha sendo admitido há um quarto de século, quando o Conselho de Estado pretendeu apoiá-lo sôbre um texto preciso. Assim, rejeitando a opinião daqueles que, por fórmulas, as mais das vêzes mal fundamentadas e imprecisas, ligam o desvio de poder à incompetência, devemos acrescentar que, se o terceiro método de interpretação pôde criar-se de maneira autônoma, isto se deu em virtude da natureza do conjunto do recurso contra excesso de poder, que, sob a ficção jurídica do chefe do Estado presidindo em seu Conselho, pôde desenvolver-se como uma instituição costumeira inteiramente impregnada de poder hierárquico.6
É preciso reconhecer ao conselho de Estado o mérito de haver elaborado, muito antes da construção e da divulgação em França da famosa doutrina finalística de IHERING, a teoria jurisprudencial curiosa e fecunda do desvio de poder, graças à qual o lugar que se deve atribuir à finalidade na apreciação das atos jurídicos “assume um relêvo, uma precisão e uma amplitude de aplicações que está longe de atingir na doutrina e na jurisprudência do direito privado” (DUGUIT). A aplicação dessa teoria, da qual o direito administrativo francês não faz, aliás, monopólio, constituiu outrora o meio essencial de limitar o poder da administração. Com ela, a velha noção de ato discricionário subtraído à apreciação do juiz, contanto que a legalidade exterior tivesse sido respeitada, foi abandonada. Desde então, presumiu-se que, se as autoridades administrativas dispõem, para a realização de certos atos, de uma dose de poder discricionário, cujos limites, aliás, são bem difíceis de determinar, tais atos não escapam, entretanto, a qualquer censura por parte do juiz. A própria lista dos atos governamentais costuma ser estabelecida pela jurisprudência administrativa agindo sob a autoridade do tribunal de conflitos.
Mas a determinação da finalidade pretendida pelo autor do ato é uma tarefa difícil e o bom êxito de um recurso fundado sôbre o desvio de poder dependerá grandemente da extensão dos meios de contrôle postos em prática pelo juiz. E foi a respeito da extensão dêsses meios que surgiu a questão de saber se a pesquisa do desvio de poder podia comportar uma apreciação dos motivos e se, também, era possível conceber que se pudesse julgar da finalidade de um ato independentemente de qualquer apreciação de seus motivos.
Essa questão é tanto mais complexa quanto, na terminologia jurídica, o motivo corresponde a duas acepções assaz diferentes: uma objetiva e outra subjetiva. A primeira é que tende hoje em dia a predominar, sendo ela, em particular, a que se evoca tôda vez que se fala da teoria da anulação por inexistência de motivos – cujas linhas mestras parece-nos oportuno relembrar, uma vez que a sua construção constituiu, como veremos, um acontecimento capital na história do desvio de poder.7
Essa invocação de uma teoria construída em tôrno da noção objetiva de motivo não nos afastou do desvio de poder, por causa das relações estreitas que unem o motivo e a finalidade de um ato. Conviria, igualmente, investigar a influência que a nova teoria da anulação por inexistência de motivos pôde exercer sôbre a antiga teoria do desvio de poder.
Se bem que o motivo preceda o ato e a finalidade seja o seu resultado último, o que permitiu a BONNARD escrever que, “no ato, parte-se do motivo, passando pelo objeto, para alcançar a finalidade”, êsses dois elementos estão, todavia, bem próximos um do outro, porque constituem, ambos, os elementos determinantes da vontade, opondo-se, destarte, ao objeto, o qual se apresenta como sendo ùnicamente o produto da intervenção dessa última. É, com efeito, em consideração da existência de um elemento objetivo exterior – o motivo – que o autor do ato decide tender para a realização de unta certa finalidade. Afinal, acontece muitas vêzes que o motivo se acha mais ou menos modificado pelo simples fato de ter sido alcançada a finalidade, por exemplo, o ato de delimitação de uma porção do litoral suprime o motivo dêsse ato que era a necessidade de delimitação.8
Essas relações estreitas explicam confusões provocadas e agravadas pela imprecisão da terminologia. Assim como, por um abuso de linguagem, empregam-se como sinônimos os têrmos objeto e finalidade, assim também, e a fortiori, o motivo e a finalidade são mal discernidos. Assim, o têrmo motivo pode deixar de ser empregado em sua acepção objetiva, como sucede no decorrer do presente estudo, para ser tomado num segundo sentido de caráter subjetivo. Daí resulta que, abstração feita de certas nuanças suscetíveis de interessar mais ao psicólogo do que ao jurista, o motivo se confunde com o móvel ou com a intenção da pessoa que age e, por conseguinte, com a noção da finalidade alcançada.9
Para evitar confusões, convém distinguir a causa dos atos da finalidade que o autor dos mesmos se propõe a atingir, e não cometer, no domínio da ciência jurídica, um êrro cujos exemplas são revelados pela filosofia biológica, quando ela confunde o princípio de causalidade com o de finalidade. É distinguindo cuidado sòmente em suas aplicações cada um dêsses princípios, que separa nìtidamente a teoria dos motivos objetivos daquela que trata do motivo psicológico ou do desvio de poder.
II Influência do contrôle de motivos
Tendo assim indicado as diferenças que separam essas duas teorias, podemos insistir nas semelhanças que as aproximam, mostrando até que ponto o desenvolvimento do contrôle dos motivos objetivos pelo Conselho de Estado influiu na evolução do desvio de poder, seja facilitando sua admissão por um alargamento da prova, seja, pelo contrário, restringindo seu campo de aplicação por derivação de um certo número de espécies, até atingir a anulação por inexistência de motivos.
A. O papel do contrôle de motivos na prova do desvio de poder
O desvio de poder é discernível pelo conhecimento das intenções da autoridade que o comete. Mas, na investigação de tais intenções, o Conselho de Estado se mostra muito circunspecto; por outro lado, tôdas as obras insistem de tal modo nas dificuldades que giram em tôrno da administração da prova do desvio de poder que sua leitura deixa, muitas vêzes, a impressão de que o ponto central da teoria geral dêsse método de interpretação é finalmente a questão da prova.
A atitude do Conselho de Estado facilmente se explica. O ato acoimado de desvio de poder apresentando-se como tendo tôdas as aparências da regularidade, convém que os particulares não possam aproveitar-se do processo do desvio de poder para criticar com muita facilidade a ação administrativa. Assim, a consulta ao “Arquivo dos Julgados” mostra “como são raras as anulações por desvio de poder”. Depara-se freqüentemente com uma fórmula em que se mencionam procedimentos lamentáveis, e, algumas vêzes mesmo, presunções graves para, afinal, concluir que, apesar disso, não foi produzida a prova irrefragável. Como poderia, pois, a intenção do autor do ato resultar, a não ser que ocorressem circunstâncias verdadeiramente excepcionais, de outra coisa senão da íntima convicção do juiz, fundada sôbre um conjunto de fatos característicos? Se quisermos dar ao termo prova o seu valor literal, raramente encontraremos essa prova (CROQUEZ, “Gaz du Pal.”, abril de 1945, pág. 14).
A aplicação, nesse domínio, do princípio geral, segundo o qual o Conselho de Estado jamais exige o comparecimento dos administradores nas suas sessões de julgamento, e tampouco investiga sôbre o valor profissional ou pessoal dos funcionários, diminui bastante as possibilidades de vislumbrar com êxito as suas verdadeiras intenções. Por outro lado, só muito excepcionalmente é que as descobriremos num depoimento10 contido nas observações apresentadas por ocasião da instância ou nas enunciações da decisão atacada,11 sobretudo se nos encontrarmos diante de um caso em que a autoridade administrativa não é obrigada a justificar a sua decisão. A tais casos podemos acrescentar outros, mais freqüentes, nos quais as intenções da administração são reveladas por um documento anexo à decisão, por exemplo, pela carta de notificação.12
Mas, na maioria dos casos, o desvio de poder é pôsto em evidência, de um modo indireto, por meio de provas referentes a fatos externos às intenções do autor do ato impugnado. Essas comprovações são feitas graças ao exame, não só das peças produzidas pelo requerente, como também dos dados obtidos pelo inquérito administrativo de que o próprio ministro se incumbe, por ocasião de cada recurso contra excesso de poder. Sabe-se, com efeito, que o Conselho de Estado não se reconhece cola o poder de levar as suas investigações além do exame das peças do processo assim constituída.
São, sem dúvida, numerosos os exemplos13 que mostram que a descoberta de poder por meio de elementos exteriores às intenções da administração, porém reveladores dessas últimas, pode produzir-se nas condições mais variadas. Todavia, na prática, o caso mais freqüente é aquêle em que tais intenções são apreciadas à luz dos fatos preexistentes, que determinaram a movimentação da vontade do autor do ato. Por outras palavras, o fim procurado se descobre à luz dos motivos. Assim, o desvio de poder devia, por mais subjetivo que fôsse em seu início, orientar-se, fatalmente, no domínio tão importante de sua prova, para uma concepção largamente objetiva.14
Convém mesmo salientar, porque isso é um fato ao qual não se costuma dar, talvez, bastante atenção, que, embora o contrôle dos motivos sòmente haja surgido há cêrca de 30 anos com a anulação motivada pela inexistência dos mesmos, o contrôle dos motivos dos atos discricionários já existia, naquela época, em matéria de pesquisa do desvio de poder. Foi assim que tal contrôle entrou no domínio do excesso de poder, porque a prática havia mostrado a necessidade de recorrer ao mesmo, a fim de que, sempre que se suspeitasse de um desvio de poder, fôsse possível colocar êste último em evidência. Sòmente o caráter acessório dêsse contrôle, considerado como um simples meio de prova destinado a firmar a íntima convicção do juiz, fêz com que fôsse admitido pelo Conselho de Estado em condições tais que a evolução jurisprudencial foi, a êsse respeito, bastante discreta para passar mais ou menos despercebida. Não obstante, LAFERRIÈRE havia assinalado essa ligação entre o contrôle dos motivos e a pesquisa do desvio de poder, e ARTUR devia afirmar, 20 anos mais tarde, que, na maioria dos casos, as intenções da administração se encontram nas circunstâncias que provocaram o ato acoimado de desvio de poder e que deixam entrever a sua verdadeira razão de ser. E, nessa mesma época, muito embora num caso particularmente grave, mas no qual a questão do desvio de poder não se apresentava, o Conselho de Estado só admitisse o contrôle dos motivos salientando o caráter excepcionalíssimo dessa maneira de agir, aquêle autor admitia, pelo contrário, êsse contrôle nas espécies concernentes ao terceiro método de interpretação do recurso contra excesso de poder (cf. 31 janvier 1902, Grazietti, S. 1903, III, 113; J. A. II, 185, nota HAURIOU). Eis’alguns exemplos dessa jurisprudência:15
Desde 1864, o Conselho de Estado anulava o decreto de um prefeito que negara autorização para que os veículos de uma emprêsa de transportes estacionassem no pátio de uma estação ferroviária, por isso que tal proibição outro objetivo não tinha senão o de garantir a execução de um contrato pelo qual a companhia da estrada-de-ferro havia assegurado a um outro empresário o privilégio exclusivo do estacionamento (25 février 1946, Lesbats, Leb., pág. 209; rapp. 29 octobre 1948, Trapy, Leb., página 403). Da mesma forma, em 1858, a ausência de motivo de polícia determinou o Conselho de Estado a anular – sem aliás caracterizar ainda nìtidamente em sua redação o desvio de poder – a resolução de um prefeito segundo a qual, numa praia, o acesso ao mar era proibido aos banhistas que não pagassem uma taxa em benefício do estabelecimento balneário, mesmo que não recorressem aos seus serviços (19 mai 1858, Vernhes, Leb., página 399; cf. para a redação com: a juillet 1924, Beaugé, Leb., pág. 399). E, em 1.866, a Alta Assembléia anulou um regulamento de águas aparentemente regular, mas baseando-se no fato de que o prefeito agiu como se tivesse tido a intenção de pôr um fim a uma contestação particular (ler. février, Cillaud, Leb., página 78).
Verifica-se que, no aresto Lesbats, o juiz se deteve num motivo cujo caráter estranho ao poder de polícia era quase evidente; que, no caso Vernhes, a existência de um interêsse financeiro tornava bastante suspeita uma decisão aparentemente repressiva, cuja verdadeira natureza era fácil mostrar sem avançar muito no exame dos fatos; que, enfim, o terceiro exemplo nos conduz a um dêsses casos, já citados, em que o desvio de poder leva à Incompetência e a uma forma particularmente grave dessa última: a invasão da alçada do juiz.
Outros exemplos mostrariam que a jurisprudência começou por se mostrar tímida no exame dos motivos.16 Mas, com o decorrer do tempo, o Conselho de Estado devia mostrar-se muito mais amplo nesse exame e assim concorreu para aumenta?sensivelmente a importância dêsse método de interpretação. Não podemos retomar o fio dessas extensões, porque isso nos conduziria finalmente a refazer enunciado de tôda a teoria geral do desvio de poder. Bastaria, para quem disso se quisesse convencer, manusear as obras de ALIBERT e WELTER, nas quais a classificação dos casos põe em relêvo a extensão alcançada pelo desvio de poder. A mesma impressão ressalta da leitura da tese de GOLDENBERG, porém com menos nitidez, por isso que êsse autor é dos tais que estudam o desvio de poder mais por suas relações com a teoria da inexistência dos motivos do que pelo fenômeno em si. A êsse respeito, as pesquisas de GOLDENBERG são, aliás, do mais alto interesse, porque mostram, por vêzes, com bastante sutileza (págs. 166 e segs.), que foi por considerar que a ausência de motivos antecedentes válido era uma forte presunção de desvio de poder e merecia, por isso, ser investigada, que o Conselho de Estado se habituou a pesquisar o motivo dos atos e se orientar no sentido de admitir a solução atual em matéria de anulação por inexistência de motivos. Segundo a própria expressão de nosso autor, a anulação quanto aos motivos é um derivado do desvio de poder. Aliás, êle apresenta a anulação por inexistência de motivos como o têrmo de uma evolução cujas etapas anteriores se encontram na anulação por desvio de poder flagrante, e, depois, na anulação por desvio de poder indiretamente comprovado pelo exame dos antecedentes. A evolução necessária para admitir-se a anulação por ilegalidade quanto aos motivos, escreve êle, “não se fêz bruscamente, nem mesmo pelo advento gradual de um princípio novo: quisemos traçar-lhe a história hesitante, para mostrar que ela não era senão o próprio desenvolvimento da idéia de desvio de poder”.
Nesse exame da ampliação da prova, que, em última análise, mascarava uma extensão da competência, convém evitar a citação de exemplos tomados ao domínio do poder de polícia, por causa do aspecto particularíssimo de que se revestem as questões que daí surgem, em virtude da impossibilidade de se conceber um contrôle sério da legalidade, a qual não comportaria um exame assaz minucioso dos fatos.
Poder-se-ia, entretanto, acompanhar essa evolução nas espécies relativas à anulação de medidas que, regulamentando as condições de administração do regime das águas, afetavam a propriedade imobiliária e que, como vimos, constituem as primeiras entre as quais surgiu a noção de desvio de poder (C. E., 28 juillet 1905, Boitel de Dieubal, Leb., pág. 690) concluindo pela rejeição do pedido, uma vez que a limpeza do curso d’água se impunha em 10 de novembro de 1905 (Bouisson, Leb., pág. 808), no qual a admissão parecia fundada no fato de que as medidas regulamentadoras da altura de uma queda d’água não se impunham e que só haviam sido tomadas com o objetivo de tornar inaceitável uma reclamação formulada perante o Conselho da prefeitura.
Mas foi no domínio concernente ao estatuto dos funcionários que a mudança de jurisprudência parece ter sido a mais radical, sendo, por conseguinte, fácil de ser destacada. Por uma resolução de 2 de dezembro de 1898 (Toutain, Leb., página 576), o Conselho de Estado anula a aposentadoria de um funcionário que não preenchia as condições necessárias para fazer jus aos proventos concedidos, porque aquêle ato se destinou a disfarçar uma demissão; e, mais tarde, foi anulada uma aposentadoria por decreto coletivo, muito embora a preocupação de assegurar o bom funcionamento do serviço devesse levar a administração a não tomar aquela medida, senão por meio de decisões individuais, por isso que êste seria o único meio de agir com discernimento (C. E., 7 mai 1920, Général Guyot D’Asnières de Salins, Leb., pág. 447). Da mesma forma, uma supressão de cargo foi anulada quando o exame do processo evidenciou que não fôra ditada por uma necessidade de economia (C. E., 23 juillet 1909, Commune de Cotignac, Leb., pág. 727). Por outro lado, em matéria de sanções disciplinares, certos arestos mostram que os atos foram baixados após o exame dos motivos antecedentes. O aresto Boyer, de 30 de dezembro de 1910, Leb., pág. 1.040, mostra que, se a demissão de um guarda-florestal não foi considerada como desvio de poder, isto se deve a que ficou provado que aquêle funcionário municipal serviu como assessor de uma junta eleitoral. Duas outras decisões assinalam que, se o Conselho de Estado não se julgou na obrigação, de anular a demissão de um outro guarda-florestal, ou a de um bombeiro, foi porque, no primeiro caso, o motivo se achava na anulação de uma ata de sessão, e que, no segundo, atos de insubordinação haviam sido cometidos (C. E., 23 juillet 1909, Bouchard, Leb., página 741, e Berland, 15 mars 1912, Leb., página 377).
Tais decisões mostram que, em 1911, um só autor não resumia fielmente o estado da jurisprudência tal como se apresentava naquela época, quando escrevia não sòmente que o contrôle dos motivos não se apresentava da mesma maneira conforme se achasse no terreno do recurso contencioso ou no excesso de poder, como também que, nesse último caso, tal contrôle era sempre excluído. No tocante à interpretação do desvio de poder, êsse autor afirmava que, mesmo nesse caso, o juiz não se julgava investido do direito de entrar no exame dos motivos. No momento em que o desvio de poder não resultasse manifestamente das peças do processo, a petição, dizia êle, deveria, portanto, ser rejeitada (nota não assinada abaixo de vários arestos de 14 de novembro de 1911 e parecendo visar especialmente a um aresto Gabillaud). Na realidade, naquela época, a jurisprudência do desvio de poder já estava mais evoluída; e a íntima convicção do juiz podia fundar-se em elementos extraídos do conjunto dos fatos da causa.17
E assim, na época de seu pleno desenvolvimento, a teoria do desvio de poder, amplamente concebida, parecendo mesmo influenciar a jurisprudência civil em seu esfôrço de penetração da teoria do abuso do direito,18 tinha diante de si, segundo a expressão de HAURIOU (“Précis”, página 447), “o campo imenso do poder discricionário”. Não obstante, é considerado o obstáculo acarretado contra êsse poder pelo desenvolvimento do contrôle dos motivos efetuado não mais como simples meio de prova do desvio de poder, mas como elemento capaz de permitir a aplicação de um novo meio de anulação, que se pode medir até que ponto a instituição dêsse contrôle afetou, finalmente, o desvio de poder.
B. A influência da teoria da inexistência de motivos
Se bem que seja muito difícil dar uma definição do poder discricionário tal como se apresenta no direito de um país durante um período determinado de sua história, parece-nos possível dizer, baseando-nos nos estudos de MICHOUD, BONNARD e WALINE, que na hora atual e em nosso país há poder discricionário tôdas as vêzes que, em presença de uma situação determinada, a autoridade administrativa é livre de decidir sôbre os seus atos e suas respectivas modalidades. Transpondo essa definição para o quadro traçado pela doutrina recente, quando distingue o motivo, o objeto e o fim dos atos jurídicos, acrescentaremos que isso acontece sòmente porque a autoridade considerada pode julgar livremente sôbre o valor dos motivos de seu ato, bem como sôbre o conteúdo que lhe convém dar se ela se acha no dever de realizá-lo. Mas tal poder não se estende aos elementos diferentes dêsses. Por conseguinte, o Conselho de Estado não sé recusa mais a controlar a existência material ou Jurídica dos motivos, senão apreciar se o objetivo visado pelo autor do ato pode ser considerado como de conformidade com o propósito da lei.19
Anteriormente, a liberdade do autor do ato se exerceu também em relação à determinação da existência de motivos e da apreciação do, objetivo colimado. Em suma, um ato que emanasse do poder discricionário se aproximava do arbitrário, pois que estava isento de qualquer contrôle jurisdicional, contanto que o seu autor fôsse competente e observasse as regras formais necessárias à sua realização. Destarte, a idéia de um contrôle que se estendesse à legalidade interna apareceu como necessário; e foi como meio de anulação por desvio de poder que um tal contrôle se destacou a princípio. Todavia, a admissão dêsse novo método de interpretação deixava subsistir uma considerável margem de poder discricionário, por isso que êsse último subsistia sempre que, ao se exercer em relação a outros elementos que não o objetivo, se cogitasse apenas da apreciação da existência material e legal dos motivos. Nessas condições, essa margem iria ser profundamente afetada por ocasião da construção da teoria jurisprudencial da anulação por inexistência de motivos. O contrôle da inexistência legal devia, ainda mais do que o da inexistência material, acarretar importantes conseqüências, porque, mesmo nas melhores administrações, sucede que as autoridades costumam dar aos fatos materialmente existentes uma péssima qualificação jurídica. Foi por isso que ALIBERT pôde dizer que o contrôle da existência de motivos reduzira a quase nada a antiga teoria dos atos discricionários ou de pura administração. Foi assim que o desvio de poder se viu relegado ao segundo plano. Todavia, a sua utilização pode ainda dar lugar a aplicações que conservaram todo o seu valor, principalmente num caso particular em que a teoria da anulação por inexistência de motivos não poderia ser concebida.
Com efeito, o motivo e o objetivo de um ato se acham de tal forma ligados no processus de realização dêsse último que a ilegalidade quanto ao objetivo não pode lògicamente aparecer senão em conseqüência de uma incorreção concernente à existência ou ao valor do motivo. Por outras palavras, o elemento subseqüente do ato é determinado por seu elemento antecedente. Ora, o Conselho de Estado sòmente profere a anulação por ilegalidade quanto aos motivos quando êsses últimos são inexistentes; daí resulta que sòmente a aplicação da teoria do desvio de poder permitirá alcançar o ato cuja legalidade do objetivo se ache apenas ligada a uma simples incorreção na apreciação do valor dos motivos. Importa, portanto, distinguir bem essas duas eventualidades.20
A princípio, há desvio de poder nos casas em que, em conseqüência da inexistência material ou jurídica dos motivos, o autor do ato agiu guiado não pelo desejo de alcançar o objetivo colimado pela lei e que êle crê acessível, mas com a intenção de atingir um fim irregular. Assim sucederá, por exemplo, no caso em que um funcionário que não cometeu falta alguma é atingido por uma pena disciplinar por um superior movido pela única intenção de prejudicar o seu subordinado ou de afastá-lo de um serviço que pretende reorganizar, ou ainda.por qualquer outra razão estranha ao exercício do poder disciplinar. Tal ato é não sòmente desprovido, desde sua origem, de todo motivo disciplinar, como também é realizado com uma intenção constitutiva de um desvio de poder.
Em segundo lugar, há, ainda, desvio de poder quando o ato atacado é realizado por seu autor na base de um motivo que existe materialmente e legalmente, mas cuja importância é voluntàriamente exagerada. Nessa eventualidade, a exploração do motivo permitirá atingir um objetivo em desacôrdo com o propósito da lei. Ante a pouca importância do valor real dêsse motivo, convém presumir que o autor do ato se absteria de agir se não fôsse guiado pelo desejo de atingir um fim contrário às regras de uma boa administração. Assim, sòmente êsse último seria tomado em consideração do juiz, e, ante a ilegalidade do ato, a anulação por desvio de poder será cabível.21
BONNARD pôs claramente em evidência a relação que, em virtude do princípio de causalidade, une lògicamente a incorreção dos motivos e o desvio de poder, e as duas eventualidades suscetíveis de se apresentar, conforme a incorreção consista em desconhecer voluntàriamente a inexistência de motivos ou apenas o seu justo valor. Êsse autor escreveu, com efeito, no seu estudo sôbre o poder discricionário (1923): “Se o ato não satisfizer o objetivo visado, verificar-se-á sempre que os motivos terão sido incorretamente apreciados, quer quanto à sua existência, quer quanto ao seu valor. Assim, se uma repressão disciplinar atinge um fim diverso daquele de natureza regular, por exemplo, um fim de vingança pessoal, daí resulta que se terá afirmado a existência de uma falta inexistente ou exagerado a falta cometida”.
Em suma, se levarmos em conta que, de um lado, todo efeito se achando já implícito em sua causa, a ilegalidade quanto ao objetivo só poderia surgir quando existisse uma incorreção quanto ao motivo, e que, por outro lado, essa incorreção pode referir-se quer à existência, quer sòmente à apreciação do valor dêsse motivo, poderemos resumir as relações que unem os domínios respectivos da teoria do desvio de poder e da teoria dos motivos determinantes nas seguintes proposições.
A teoria geral dos motivos, em virtude da qual a anulação dos atos é proferida por inexistência material ou jurídica de motivos: 1°) engloba a teoria do desvio de poder quando a incorreção quanto aos motivos, à qual está necessàriamente ligado o aparecimento do desvio de poder, consiste em sua inexistência; 2°) ultrapassa essa teoria quando a inexistência do motivo não foi explorada pelo autor do ato, em face da realização de um desvio de poder (é o caso de um agente do poder público que comete um êrro quanto aos motivos, mas que age com a preocupação de alcançar o objetivo visado pela lei); 3°) é ultrapassada por ela quando a incorreção dos motivos, consistindo apenas numa defeituosa apreciação de seu valor, a ilegalidade quanto ao objetivo não é conseqüência de uma ilegalidade quanto aos motivos.22
As relações estreitas que unem essas duas teorias foram sobretudo postas em evidência por BONNARD, graças à sistematização rigorosa dos diversos aspectos da legalidade que êle soube apresentar, decompondo essa última segundo as fases sucessivas do processus de realização dos atos jurídicos. Mas, antes dêle, outros autores, tais como MICHOUD e HAURIOU, haviam percebido aquelas relações e, a êsse respeito, o seu pensamento assinala um progresso no tocante ao de seus predecessores, que, como ARTUR e LAFERRIÈRE, se haviam limitado sòmente a pôr em evidência o papel do motivo na prova do desvio de poder.23
MICHOUD, no seu magistral estudo sôbre o poder discricionário (1913-14), teve o mérito de analisar com muita argúcia a jurisprudência do Conselho de Estado tal como se apresenta em matéria de desvio de poder e de chegar à conclusão de que, em sua época, êsse último não era senão um meio indireto de lograr a sanção de irregularidades referentes aos motivos antecedentes dos atos. E são essas irregularidades que ulteriormente cumpria fôssem evitadas quando consistissem numa inexistência material ou jurídica dos motivos.24
Mais tarde, quando a anulação por inexistência de motivos já era praticada há mais de uma dezena de anos, HAURIOU trouxe uma concepção mais clara para o desbravamento dos domínios respectivos da teoria objetiva da inexistência dos motivos e da teoria subjetiva do desvio de poder. Para êle, essa última aparece como não tendo conservado todo o seu valor, exceto no caso único em que a ilegalidade quanto ao objetivo não se acha ligada à inexistência de um motivo. Do mesmo modo, escreve êle, convém doravante afirmar que “o verdadeiro caso de desvio de poder” é o de um ato administrativo, cujo fato determinante – o motivo – existe realmente, mas cujo objetivo não está de acôrdo com o interêsse do serviço. E, recapitulando, em 1926, dois casos que êle já havia estudado anteriormente (1903 e 1897), HAURIOU desenvolve essa proposição. Lembra que anulação, por desvio de poder, de uma deliberação que aprovasse um plano de alinhamento, com o objetivo de permitir o estabelecimento de uma via férrea que contornasse uma via pública, poderia 20 anos mais tarde dar lugar a uma anulação por inexistência de motivos, porque não se conceberia, então, de modo algum, no estabelecimento de uma via férrea nenhuma operação de alinhamento. Julga, pelo contrário, que a proibição de introduzir e de vender numa localidade carnes provenientes de animais abatidos em lugar diverso de um matadouro público não podia dar margem à aplicação da teoria da inexistência de motivos, porque nesse caso o motivo existia, sòmente estava viciado: com efeito, guiado por uma idéia preconcebida, estranha a qualquer preocupação relativa à saúde pública, o prefeito local havia exagerado o rigor das medidas a serem tomadas. E HAURIOU concluía que a lista de casos de desvio de poder deveria passar por uma revisão, a fim de que fôsse possível descobrir dentre êles os que seriam capazes de dar lugar à aplicação da teoria da inexistência de motivos. Chegou mesmo a escrever que sòmente os casos em que fôsse inaplicável essa teoria é que mereciam ser considerados como verdadeiros desvios de poder.25
De fato, a jurisprudência não se orientes para o estabelecimento da classificação prevista e desejada por HAURIOU. Pelo contrário, quando a mesma admitiu o desvio de poder, mostrou-se pouco explícita sôbre o caráter da incorreção dos motivos, de sorte que, na maioria das vêzes, é muito difícil perceber se o ato anulado por desvio de poder não poderia também ter sido afetado pela aplicação da teoria da anulação por inexistência. O Conselho de Estado parece não ter agido de outro moda no caso em que, precisamente, o meio fundamentado sôbre o desvio de poder, tendo sido declarado inaceitável, houve por bem pronunciar-se sôbre a inexistência de motivo encarada como meio autônomo de anulação (10 de agôsto de 1945, Petruscci, Leb., pág. 177).
Assim é que, ao manusearmos, a título de exemplo, um ano recente do “Recueil périodique” (coletânea periódica), pareceu-nos que essa indiferença do juiz em precisar os domínios respectivos das duas teorias se manifestava sob dois aspectos: de uma parte, entre oito casos relatados como tendo dado lugar a uma anulação por desvio de poder, três sòmente pareciam referir-se a casos em que o motivo existia, porém exageradamente destacado, de sorte que sòmente êles entrassem no quadro do verdadeiro desvio de poder, tal como HAURIOU o descrevera 20 anos antes; de outra parte, nesses diversos casos consultados, os arestos são redigidos de maneira pouco explícita.
Das três espécies suscetíveis de ser assim postas em relêvo, a primeira é relativa à anulação da requisição, na Argélia, de um entreposto comercial para aí alojar um rebanho de vacas-leiteiras. O motivo existia e poder-se-ia pensar que a Alta Assembléia teria deixado a administração livre para apreciar o seu valor, que não era necessariamente desprezível – o abastecimento de leite oferece, mesmo em tempo normal, os mais graves problemas na África do Norte – se o exame do processo não tivesse feito surgir um desvio de poder caracterizado, ao revelar que a ordem de requisição havia sido dada por ocasião de um litígio de ordem privada entre o locatário do entreposto e o seu proprietário (17 août 1945, Toboul, Leb., pág. 183).
O segundo caso diz respeito à anulação de uma decisão muito importante do diretor geral do Comitê de Organização da Indústria de Couros, regulamentando as atividades concernentes ao couro em bruto. De fato, nesse caso algo misterioso, no qual certas intervenções de autoridades empregadoras poderiam ter sido relevadas, tratava-se de favorecer os curtidores em detrimento dos produtores e coletores. Mas o motivo existia, por isso que convinha estabelecer o estatuto de um ramo de atividade dependente do Comitê de organização em aprêço (29 mars 1945, Devouge, Leb., pág. 64, e “Gaz. du Pal”, 14-17 avril 1945, concl. DETTON e note CROQUEZ).
Dêsse aresto, no qual é preciso ver uma reação contra os abusos censurados aos Comitês de organização e que são sempre para temer da parte de instituições profissionais de caráter mal definido, por se acharem situadas entre o direito público e o direito privado, podemos aproximar o aresto proferido sôbre o terceiro caso. Refere-se a uma anulação, por desvio de poder, de uma decisão da câmara de disciplina do Conselho Nacional da Ordem dos médicos pela qual êsse órgão, em nome das regras da profissão e do interêsse dos enfermos, havia proibido que um médico exercesse a sua arte em Royan e na Gironda. A decisão tinha um motivo: organizar a profissão médica, impedindo que um prático possuísse vários consultórios. Sòmente o valor do motivo estava em causa, e o que levou o Conselho de Estado a discuti-lo foi a verificação de que o ato impugnado revelava, por seus próprios têrmos, haver sido essencialmente inspirado pelo desejo de dar satisfação ao interêsse articular na maioria dos médicos (21 février 1945, Martin de Magny, Leb., pág. 44).26
Êsses exemplos nos levam à conclusão de que a elaboração da teoria da anulação por inexistência de motivos, embora não diminua a possibilidade de aplicação do desvio de poder, diminui, entretanto, a utilidade do recurso fundado sôbre êsse meio, pois que, nos casos em que o desvio de poder se acha ligado a uma ausência de motivos, esta última pode acarretar a aplicação de um meio autônomo de anulação. Êsse meio, porém, só é admitido com muita cautela, pois que, exatamente como acontece com o desvio de poder, êle deve ser pôsto em evidência após o exame do conjunto do processo ou pelas indicações do próprio ato.27 Em suma, a teoria do desvio de poder conserva o seu lugar ao lado da teoria nova da anulação por inexistência de motivos, não sòmente porque ultrapassa essa última nos casos em que o desvio do poder resulta de uma simples incorreção na apreciação do valor dos motivos, como também porque ela subsiste paralelamente àquela outra nos casos em que os motivos são inexistentes.
Talvez seja possível afirmar que, se o Conselho de Estado não se limitasse sempre a investigar o desvio de poder a não ser a pedido formal das partes e tivesse, pelo contrário, adquirido o hábito de valer-se ex officio dêsse meio, aquêle órgão teria recorrido mais cedo à anulação por inexistência de motivos, a fim de evitar que se pronunciasse sôbre o desvio de poder. Com efeito, se o desvio de poder apresenta, em certos casos, a vantagem de atrair nìtidamente a atenção da administração sôbre graves falhas, êsse procedimento apresenta também o inconveniente de pôr em evidência, malgrado o laconismo dos arestos, uma atitude sempre mais ou menos criticável dos representantes da autoridade e agitações em que, por vêzes, o escandaloso se mistura ao burlesco. Mais discreta, a anulação por inexistência de motivos evoca antes o êrro ou a negligência.
III. A DETERMINAÇÃO DO OBJETIVO DA LEI
Embora o desenvolvimento da teoria do desvio de poder remonte a um século, essa teoria conheceu ainda novas extensões.
A princípio, há 20 anos, o mais importante dos recursos especiais, dito recurso em forma de recurso contra excesso de poder – isto é, aquêle estabelecido pelos arts. 63 e segs. da lei de 5 de abril de 1884, em matéria de deliberações de conselhos municipais tornadas executórias – foi reconhecido como suscetível de fundamentar-se sôbre o desvio de poder.28 Em seguida, a jurisprudência se mostrou cada vez mais audaciosa na determinação do objetivo visado pela lei.
Certamente, desde a origem, o juiz não se limitou a indagar se o autor do ato impugnado teve em vista o interêsse geral mais ou menos amplamente entendido; foi mais longe e investigou se o objetivo almejado pelo legislador fôra de fato alcançado. Com efeito, a especialidade do objetivo dos atos é uma conseqüência das funções exercidas por seus autores, a qual nada mais é do que uma regra de disciplina destinada a assegurar o desenvolvimento ordenado da ação administrativa, concorrendo, por conseguinte, para a satisfação do interêsse geral. Outrossim, a teoria do desvio de poder subentende que, para alcançar o fim visado pela lei, “a autoridade administrativa deve, uma vez por tôdas, agir no interêsse geral – objetivo essencial e primordial de tôda atividade administrativa – e tender para o fim especial que decorre diretamente da função determinada posta em prática em cada caso concreto” (WELTER).
Sòmente em sua origem, o Conselho de Estado não se aventurava a avançar demasiado na investigação do objetivo. Assim é que havia necessidade de raciocínios muito complexos apra chegar à conclusão de que os poderes de polícia não tinham sido conferidos com objetivo fiscal, e que era, por exemplo, oportuno reconhecer o desvio de poder no ato que proibia que uma sociedade explorasse uma mina, com o objetivo de obter dessa sociedade propostas de concorrência em face da manutenção de obras públicas (C. E., 15 février VRTE, Société des mines de Lens, Leb., pág. 154).
Porém, mais tarde, a pesquisa das intenções do legislador muitas vêzes deu lugar a exames aprofundados, por ocasião dos quais a Alta Assembléia fêz intervir elementos de apreciação variados, extraídos do domínio da economia, da política ou da moral e que, combinados de diversas maneiras, eram suscetíveis de conduzir a interpretações diversas. Basta reler, para certificar-se dessa verdade, as conclusões Helbronner apresentadas por ocasião do célebre caso provocado pelo decreto de 11 de outubro de 1910, que, com o objetivo de sustar uma greve, determinou a convocação de certas categorias de empregados ferroviários para um período de instrução militar (C. E., 18 juillet 1913, Syndicat national des Chemins de fer du Nord, S. 1914, III. 1, note HAURIOU, J. A., II, 89).
A partir dessa época, o Conselho de Estado multiplicou as investigações dêsse gênero. Citamos, a tal respeito, um caso Esquieu concernente às escolas primárias geminadas, ou um aresto Tabouret e Laroche contendo uma investigação das intenções do legislador quando exigia uma autorização para as transações imobiliárias, ou ainda um aresto Dlle. Roulliés que definiu o alcance das disposições relativas às requisições de terrenos, tais como se encontram no estatuto das hortas familiares e parques agrícolas para operários.29 Essa ousadia na pesquisa muito avançada do objetivo foi notada por WALINE, quando escreveu: “trata-se, em suma, de descobrir o espírito da legislação e de julgar violações do espírito e não da letra da lei”.30
Êsse método de interpretação da vontade presumida do legislador, conjugada, de um lado, com a liberdade de apreciação dos fatos da causa para cada caso concreto, e, por outro, com o elemento de indeterminação oculto pela definição do desvio de poder por causa do critério psicológico de que se utiliza, dá alguma aparência de realidade à doutrina lançada por HAURIOU, segundo a qual o recurso contra excesso de poder, considerado em algumas dessas aplicações e principalmente através do desvio de poder, constituiria um contrôle da moralidade e não apenas da legalidade administrativa.31
A maioria dos autores rejeita essa maneira de ver, que BONNARD considera como “evidentemente inadmissível”. Contrastando com essa opinião, a doutrina de HAURIOU foi retomada, com muita amplitude, solidez de argumentação e boa documentação, por WELTER, em sua tese já citada sôbre o contrôle jurisdicional da moralidade administrativa, achando-se também aceita por autores tais como ALIBERT e APPLETON.
Sem pretender recapitular, ao terminarmos êste estudo histórico, o conjunto de um problema já magistralmente tratado e que afeta mesmo as grandes questões da filosofia do direito, pois que nêle se refletem as doutrinas relativas aos limites do direito e da moral ou à existência de um direito natural, julgamos, entretanto, que será útil relembrá-lo. Várias razões nos conduzem a êsse modo de ver: a princípio, sentimos, por várias vêzes, que êsse problema constituía como que a base subjacente de nossas especulações; em seguida, julgamos possível trazer uma contribuição modesta à sua solução mediante um ensaio de aproximação de duas situações aparentemente inconciliáveis; enfim, e principalmente, porque êsse ensaio vai conduzir-nos a considerar o desvio de poder, quer nas suas origens, quer na sua evolução histórica geral.
Das duas teses adotamos a da maioria, porque nos parece que o Conselho de Estado não pode, sob pena de deixar de ser um tribunal, entregar-se a um contrôle que não seja o da legalidade. Além disso, podemos acrescentar a êsse argumento, baseado em puras considerações de classificação orgânica e suscetível de atrair para nós a censura de responder uma pergunta com outra pergunta, que a natureza jurídica do desvio de poder faz dêste último um contrôle de legalidade, pois que é um princípio impôsto pelo direito racional que, se o legislador reconhece certos poderes ao administrador, isto só acontece tendo-se em vista a consecução do bem comum, de sorte que, ao renunciar à obtenção dêsse objetivo, o administrador traiu a vontade do legislador com mais certeza do que se violasse uma disposição legislativa expressa. Mas sòmente admitimos a tese da maioria quando examinamos a questão colocando-nos sob o ponto de vista da regulamentação jurídica estatal. É, com efeito, nessa regulamentação que o Conselho de Estado aparece como o guardião da legalidade, e da legalidade apenas, de sorte que, no momento em que êle assegura o respeito de uma regra, esta última se acha necessàriamente integrada na regulamentação estatal.
Pelo contrário, se, por um esfôrço mais avançado de análise, consideramos a administração não como uma simples peça do mecanismo do Estado, mas como uma instituição distinta, tendo suas regras próprias que asseguram a sua existência e lhe permitem alcançar o objetivo em virtude do qual ela existe, somos levadas a descobrir todo o valor da tese de HAURIOU desenvolvida por WELTER. Basta-nos, para tanto, perceber, naquilo que HAURIOU chama de moralidade administrativa, as regras jurídicas internas dessa regulamentação jurídica distinta da regulamentação estatal que constitui a administração. Além disso, o próprio HAURIOU dá como sinônimo da expressão de moralidade a de deontologia administrativa, empregando assim uma expressão mais rebuscada porém mais exata do que a precedente e apresentando, sobretudo, a vantagem de ser tranqüilizadora para aquêles que, para dar ao direito o caráter de ser uma ciência objetiva, buscam separá-lo o mais possível da moral, esta última envolvendo uma filosofia de valores, os quais êles não se julgam obrigados a considerar.
Com essa concepção institucional da administração, o desvio de poder se apresenta como um meio, graças ao qual se opera a passagem de regras emanadas da regulamentação jurídica da instituição administrativa para a regulamentação estatal, ou seja como o processo pelo qual as regras de moralidade (ou de deontologia) administrativa se põem a participar da legalidade.
Com efeito, como tôda instituição pública ou privada, a administração reage sôbre as regulamentações jurídicas que lhe são não sòmente subordinadas, mas também vizinhas ou mesmo superiores. Nessas condições, a regulamentação jurídica estatal sofrerá – na medida em que o Estado reconhece o direito – a influência das regras que se destacaram do seio da instituição administrativa, e essa influência será tanto maior quanto a organização administrativa fôr mais avançada para a melhor realização possível do objetivo a ser atingido. Ora, essa organização – ou, como dizemos, essa institucionalização – da administração se traduz pela orientação do poder em face do serviço da coletividade. Como o demonstrou HAURIOU, ela se caracteriza pelo fato de que “foi o poder que se organizou em vista do serviço, tomando precauções múltiplas para se disciplinar por meio da hierarquia, pela tutela das administrações locais, por tôda a gama de reclamações administrativas abertas aos administrados e, finalmente, pela instituição de uma jurisdição administrativa que é ainda uma parte de si próprio”. Além disso, antigamente, mais do que hoje, o Conselho de Estado era estreitamente integrado na administração, porquanto de longa data êle se inspirara no princípio hierárquico e sòmente baixava as suas decisões por intermédio do chefe do Estado, presidindo em seu Conselho.
Um resto dêsse princípio flutua ainda em tôrno da concepção que atualmente se tem dessa alta jurisdição, sendo muito característico o fato de que, de tempos a tempos, os comissários do govêrno (procuradores) hajam apelado para tal princípio, para estimular a audácia da Alta Assembléia, arrastando-a para soluções novas (conf. concl. CHARDENET em C. E., 19 février 1909, Olivier, Leb., página 181, e outros exemplos em RÉGLADE, artigo cit., R. D. P., 1925).
Dessa maneira, a jurisdição administrativa pôde fazer passar normas oriundas do domínio da moralidade administrativa para o quadro do sistema jurídico estatal e fazê-los, destarte, participar, ipso facto, da legalidade.
Êsse resultado merece tanto mais ser ressaltado quanto foi obtido num país em que a tradição rousseauista e kantiana sempre tendeu fazer da lei escrita, elevada à dignidade de expressão da vontade geral, a única fonte da legalidade.
Mas, nessa transposição de um sistema jurídico ao outro, o desvio de poder desempenhou um papel capital decorrente de sua flexibilidade e de sua capacidade para compartilhar, entre os outros métodos de interpretação, do contrôle da existência de motivos.
Uma última prova do papel criador da jurisprudência administrativa em matéria de desvio de poder poderia ser extraída do confronto de suas soluções com as da jurisprudência judiciária, cuja timidez apareceria evidente. Mas, para efetuar essa comparação, seria preciso que seguíssemos, nesse ponto, a evolução da jurisprudência judiciária, o que, apesar da raridade relativa de suas decisões, teria ampliado bastante os limites de nosso estudo.
_________
Notas:
* Tradução de G. A. DOS ANJOS, 1952.
1 ALIBERT, “Le contrôle juridictionnel de l’Administration au moyen du recours pour excès de pouvoir”, PAYOT, 1926, págs. 38 e 218; ARTUR, “Séparation des pouvoirs et séparation des fonctions”, 9º artigo, R. D. P., 1903, págs. 415 a 502, notadamente págs. 423 e segs.; BONNARD, “Précis de droit administratif”, Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 4ª ed., 1943, páginas 97 e segs.; E. LAFERRIÈRE, “Traité de la juridiction administrative”, Berger-Levrault, 2ª ed., 1896, 2 vols., vol. II, págs. 402 a 413; LANDON, “Le recours pour excès de pouvoir sous le régime de la justice retenue”, tese, Paris, 1942, págs. 47 e 136 a 145.
2 ARTUR, artigo citado, págs. 455 e segs.; AUCOC, “Conférences sur l’Administration et le droit administratif”, Dunod, 2ª ed., 1878-1882, 3 vols., I, págs. 262 e 462-468; BATHIE, “Traité théorique et pratique de droit public et administratif”, Larose et Forcel, 8 vols., 2ª ed. com suplemento (1894), vol. VII (1885), pág. 430. É verdade que êsse autor deve ter mais ou menos sofrido a influência da teoria inversa, porque, no repertório que completa o seu tratado, êle coloca, sem fornecer, aliás, explicações, o desvio de poder sob a rubrica incompetência (vide o artigo “Excès de pouvoir”, vol. VIII, pág. 303); BEURDELEY, “Le détournement de pouvoir dans l’intérét financier et patrimonial de l’Administration”, tese, Paris, 1928, págs. 157 a 167; DARESTE, “La justice administrative en France”, Larose, 2ª ed., 1898, pág. 223; DUCROCQ, “Cours de droit administratif”, Fontemoing, 1897-1905, 7 vols., vol. II, pág. 30; DUFOUR, “Traité général de droit administratif appliqué”, Cotillon, 2ª ed., 1854-1857, 7 vols., com suplemento em quatro volumes por Taudiére, Marchal ed., 1901, sup. vol. I, pág. 169. Verificará o leitor que DUFOUR, em 1854, fala com bastante detalhes da incompetência e do vício de forma, nada dizendo, porém, acêrca da teoria do desvio de poder, que não era ainda constituída: EBREN. “Théorie du détournement de pouvoir”, tese, Lyon, 1901, págs. 41 e segs.; LADREIT DE LACHARRIÈRE, “Le contrôle hiérarchique de l’administration dans la forme juridictionnelle”, tese, Paris, 1938, págs. 98 e segs.; LAPARRE. “La théorie de l’abus du droit et la théorie du détournement de pouvoir”, tese, Paris, 191-1, págs. 62 e sega.
3 Em vão se objetaria que o DEÃO HAURIOU chamou essa ilegalidade quanto ao objeto uma incompetência ratione materiae. Êsse qualificativo, empregado para designar uma irregularidade concernente ã própria essência do ato, não tem o mesmo sentido senão na terminologia usual, onde a incompetência ratione materiae se opõe às incompetências ratione persone ou ratione loci, sem que nenhuma das três conduza a interpretação para fora do quadro da incompetência orgânica, aliás denominada incompetência estrita no sentido da jurisprudência. A expressão de HAURIOU, longe de designar uma variedade de incompetência orgânica, se refere a uma ilegalidade muito diferente dessa última.
Além disso, advirtamos que HAURIOU jamais pretendeu que o que êle chama de incompetência ratione materiae possa confundir-se com o desvio de poder. Disse apenas que a enumeração de diversos atos que nenhuma autoridade administrativa deve praticar, não podendo ser feita senão em função de princípios muito gerais, tais, por exemplo, como a interdição de a administração intervir sem necessidade na vida privada, há nessa ilegalidade um elemento de indeterminação que o assemelha ao desvio de poder. De resto, essa teoria da incompetência ratione materiae, foi apresentada por HAURIOU numa nota sôbre um aresto Descroix proferido por ocasião de um recurso em forma de recurso contra excesso de poder formulado com apoio nos arts. 63 e segs. da lei de 5 de abril de 1884, numa época em que a jurisprudência ainda não admitia, precisamente, que a teoria do desvio de poder fôsse utilizável nesse gênero de recurso. Se os requerentes se tivessem baseado em tal teoria, em lugar de obterem a anulação, estariam em face de uma rejeição in limine (ler. février 1900. Descroix et autres boulanges de Poitiers, concl. Romieu, note HAURIOU, S. 1901. III. 41 e J. A, I. notamment ps. 158-159; HAURIOU, “Précis de droit administratif”, Sirey, 12ª ed., 1933, pág. 440. Sôbre a definição da incompetência: BONNARD, “Précie”, pág. 103).
4 É, por exemplo, o que se produz quando uma autoridade administrativa utiliza o seu poder de polícia com o objetivo de proteger os interêsses financeiros de um patrimônio administrativo (22 de maio de 1896, Carville et autres, S. 1897, III, 121.). Casos como êsses não devem ser confundidos com aquêles em que a preocupação fiscal conduz a uma verdadeira violação da lei (31 de janeiro 1908, Dame de Ramogère, S. 1908 III, 153 e J. A. II 328).
5 ALIBERT, ob. cit., pág. 236; DUGUIT, “L’Etat, les gouvernements et les agents”, Fontemoing, 1903, págs. 492 e 532 a 550, e “Traité de droit constitutionnel”, Boccar, 1921, 2ª ed., 5 vols., vol. I, págs. 251-252; HAURIOU, nota sôbre o aresto Maugras de 16 de novembro de 1900, S. 1901, III, 57, J. A., II, 335; ROLLAND, “Précis de droit administratif”, Dalloz, 9ª ed., 1947, 397; RÉGLADE, “Du prétendu contrôle juridictionnel de l’oportunité en matière de recours pour excèès de pouvoir”, R D. P., 1925, pág. 426.
ALIBERT adota, de modo assaz incisivo, e sem se explicar sôbre êsse ponto, uma classificação das ilegalidades que o leva a fazer do desvio de poder uma ilegalidade externa. Confessamos não assimilarmos bem o pensamento dêsse autor através da breve passagem em causa, cujo texto é o seguinte: “Os três primeiros métodos de interpretação possuem um traço comum e pelo fato de que foram deduzidos uns dos outros: êsse traço consiste era permitir ao juiz do excesso de poder e sòmente apreciar as condições extrínsecas de legalidade” (pág. 38).
Ora, o desvio de poder incidindo sôbre um dos elementos constitutivos do ato – o objetivo – afeta a regularidade interna dêsse ato, bem como a qualquer ilegalidade introduzida nas prescrições que lhe constituais o objeto. Parece que, ao contrário, para ALIBERT a regularidade interna é considerada como se referindo apenas à conformidade das disposições contidas no ato com a regra de direito, sem que lhe tenha ocorrido a necessidade de se deter no exame das condições em que a vontade do agente se pós era movimento para conduzi-lo a tomar aquelas disposições. Qualquer apreciação relativa a tais condições dependeria, portanto, da legalidade externa, da mesma forma que da incompetência ou do vício de forma. Em todo caso, mesmo com essa classificação de ilegalidade, não nos parece que possamos assimilar tão fàcilmente a uma incompetência a ilegalidade quanto ao objetivo.
6 ARTUR, artigo citado, págs. 423 e segs., em particular a nota da pág. 423; COLLET, “Examen doctrinal sur la recevabilité du recours pour excès de pouvoir”, “Révue critique”, 1876, página 233; JACQUELIN, “Les principes dominants du contentieux administratif”, Giard, 1899, página 230; LADREIT DE LACHARRIÈRE, ob. cit., págs. 101 e segs.; LAFERRIÈRE, ob. cit., 411 e 412; MACAREL, “Cours de droit administratif”, Thorel, 1844, 4 vols, vol. II, pág. 851.
Entre os autores que repelem, como o fazemos, a assimilação do desvio de poder à incompetência, ARTUR chega ao ponto de negar que, em certos casos, a investigação dessa última tenha podido agir sôbre o espírito dos juízes para lhes dar a idéia da noção mesma de desvio de poder. Não podemos entrar no detalhe das opiniões demasiado extremadas dêsse autor. Encontrá-las-emos no estudo precitado, principalmente nos comentários minuciosamente elaborados dos arestos Coulombeau, de 28 de fevereiro de 1810 (Leb., pág. 224), Negro, de 31 de maio de 1807 (Leb., pág. 85), e Laroque, de 18 de dezembro de 1822 (Leb., pág. 480, concl. CORMERIN).
Em sua acepção objetiva, o têrmo motivo é tomado como sinônimo de antecedentes ou, se quisermos, de causa jurídica de um ato.
Está de acôrdo com a razão, explica BONNARD, que todo ato tenha um motivo. Com efeito, um ato sem motivo não se concebe da parta de uma pessoa racional, sendo próprio do insensato agir sem motivo ou dissociar o ato do motivo. Em conseqüência, quando uma autoridade administrativa toma uma decisão, é em consideração da existência de certo fato. Por exemplo, decidir uma medida de polícia ou dispensar um funcionário a pedido, é praticar um ato que encontra o seu motivo, no primeiro caso, na existência de uma desordem e, no segundo, no fato da apresentação do pedido. Mas, se o fato determinante do ato não estiver conforme à realidade material, ou se, em caso afirmativo, fôr jurìdicamente mal interpretado, diremos, na primeira eventualidade, que o motivo do ato é inexistente por êrro de fato, e, na segunda, que êle é inexistente por êrro de direito, pois que a má interpretação o conduziu a qualificar êsse fato de um modo que não está de acôrdo com a realidade jurídica. Reconhecendo-se censor do êrro de direito, o Conselho de Estado, juiz da legalidade, pode não sòmente apreciar se as prescrições ordenadas por uma autoridade administrativa em face de uma determinada situação jurídica não contradizem as disposições da lei, como também se os fatos constitutivos dessa situação preexistente foram corretamente qualificados em direito.
Dessa maneira se evita que, após uma série de erros de direito, um mesmo fato apareça como suscetível de dar lugar a qualificações jurídicas diferentes. Certamente, o contrôle da existência jurídica dos motivos pela censura do êrro de direito conduz o Conselho de Estado muito longe na via de apreciação dos atos da administração. Assim acontece, em particular, nas matérias de política, em que os elementos de fato representando um grande papel, é oportuno indagar até que ponto fatos materialmente existentes são suscetíveis de perturbar a tranqüilidade ou a segurança públicas e podem, por conseguinte, qualificar-se jurìdicamente como motivos de polícia. Mas, quer se trate de apreciar a conformidade de uma prescrição com a lei ou a correção de uma qualificação jurídica, é sempre a uniformidade de aplicação do direito para o conjunto do território que está em jôgo e que justifica a intervenção do Conselho de Estado. Pelo contrário, essa justificação não aparece em matéria de contrôle da existência material do motivo de um ato. O êrro quanto à existência material de uma situação que serve de antecedente a um ato jurídico não compromete em nada, mesmo se fôr grosseiro e chocante, a uniformidade na interpretação do direito.
Poderíamos, pois, sustentar fàcilmente que o Conselho de Estado acabava de sair do seu papel de guardião da legalidade dos atos administrativos para arvorar-se em juiz do puro fato, no momento em que, por exemplo, por uma decisão que, quanto ao mais, só fazia reforçar uma tendência já antiga, êle decidiu apreciar, independentemente de qualquer regra prèviamente fixada pelo legislador, se a praça Baveau constituía ou não uma perspectiva monumental e se um imóvel cuja construção estava prevista podia ser considerado como capaz de afetar semelhante perspectiva. Em uma nota bem conhecida que o deão HAURIOU redigiu nessa ocasião, encontra-se a observação de que se estava em presença de um novo método de interpretação do recurso contra excesso de poder, o qual, sob o nome de êrro de fato, devia juntar-se aos outros quatro. Essa nota, que aponta a dificuldade existente em se distinguir, na prática, o êrro de direito do êrro de fato, mostra igualmente tôdas as obscuridades que a nova jurisprudência lançava sôbre a noção de recurso contra excesso de poder e as desconfianças que o seu aparecimento devia provocar entre aquêles que concebiam essa via de recurso como suscetível de não dar lugar senão a um controle da escrita legalidade (C. E., 4 avril 1914, Gomel, pág. 488; S. 1917, III, 25, note HAURIOU; J. A. II, 372).
Com o decorrer do tempo, no momento em que, precisamente, a abundância da produção doutrinária começava a traduzir as incertezas nascidas do movimento da jurisprudência, esta última se definiu de forma a trazer alguns esclarecimentos sôbre a maneira pela qual o juiz do excesso de poder compreendia o seu papel em matéria de apreciação de fatos,
Em 20 de janeiro de 1922, pelo aresto Trépont (Leb., pág. 65, D. 1924, III, 36 e a nota e R. D. P., 1922, págs. 81 a 85), que anulou uma decisão, famosa em sua época, pela qual o prefeito do Nord fôra exonerado a pedido, quando, na realidade, êle nada pedira, o Conselho de Estado, havendo constatado o êrro de fato cometido pela administração, declarou ter tomado em consideração, para estatuir, a inexistência da causa jurídica.
Essa expressão, tomada por empréstimo a uma terminologia bem conhecida do direito privado, evocava, na espécie, não a noção corrente da causa, tal como se encontra na teoria geral dos contratos, mas aquela assaz diferente, pelo menos na aparência, que se encontra na teoria do enriquecimento sem causa, assim qualificada porque se produziu independentemente de qualquer situação jurídica preexistente, suscetível de justificá-lo. Assim, pareceu que a inexatidão de fatos anteriores aos atos jurídicos atacados por via do recurso contra excesso de poder não fôra levada em conta senão na medida em que tais fatos haviam servido para determinar a categoria jurídica na qual convinha situar o ato a ser praticado. No caso Trepont, por exemplo, o fato do pedido, supostamente apresentado pelo interessado, conduzia a que se concretizasse uma exoneração a pedido e, por conseguinte, a pôr o direito em movimento, aplicando as regras relativas a essa categoria jurídica especial que constituas exonerações a pedido. O êrro de fato, que constituía a ausência de pedido, tinha, portanto, por efeito, acarretar uma violação da lei por má aplicação da regulamentação relativa ao regime dos afastamentos. Desde então, parecia que, com a pretensa interpretação por êrro de fato, o Conselho de Estado não intervinha, em realidade, no exame dos fatos senão quando êstes últimos, acôrdo com a própria natureza das coisas, eram fatôres determinantes do direito – se encontrassem no ponto de interseção do direito com o fato e que, nessas condições, se tornava inútil considerar a admissão de um novo método de interpretação, pois que o êrro sôbre os fatos determinantes entrava na violação da legalidade.
É verdade que essa explicação do contrôle existência de motivos pela teoria da causa não foi universalmente admitida. Segundo JÈZE, BONNARD repeliu-a, censurando-a por ter transferido uma noção pouco clara do direito privado para o terreno do direito público, apresentando-a sob um de seus aspectos que não é o mais freqüente; e também – falta mais grave – por não levar, em conta o fato de o Conselho de Estado não exercer o seu contrôle de motivos além da verificação de sua existência. Êsse órgão não aprecia o seu valor. Ora, sabe-se que o Cód. Civil (art. 1.131) põe, sob o mesmo nível a obrigação sem causa ou sôbre causa ilícita e a que se apresenta com uma falsa causa. Também BONNARD prefere justificar o contrôle da inexistência de motivos por um princípio puramente racional. Um ato jurídico, diz êle, deve, como qualquer ato, proceder de um motivo que o preceda e que lhe corresponda, senão é um puro capricho. Por exemplo, um ato de polícia deve proceder de um motivo de polícia. Um ato jurídico sem motivo ó irracional – senão desarrazoado – e deve, por conseguinte, ser considerado como ilegal, no caso de se admitir, como, aliás, parece incontestável, que êle venha violar essa regra não-escrita mas imposta ao mundo do direito pela pura razão, isto é, de que todo ato devendo ter um motivo, o ato jurídico sem motivo é irregular.
Em todo caso, com uma ou com outra dessas duas explicações, o Conselho de Estado aparece como não sendo juiz do fato em matéria de recurso contra excesso de poder, exceto quando isso fôr necessário para estatuir sôbre a legalidade dos atos. Quanto à extensão de seus poderes, o Conselho de Estado se esforçou por indicar-lhe os limites em dois de seus arestos, nos quais afirmou que, “se êle não pode apreciar a oportunidade de medidas que lhe são deferidas, cabe-lhe, de um lado, verificar a materialidade dos fatos que motivaram tais medidas, e, de outra parte, nos casos em que os ditos fatos são estabelecidos, de pesquisar se podiam legalmente motivar essas medidas” (C. E., 14 de janeiro de, 1916. Camino, Leb., pág. 16; cf. igualmente um aresto análogo ao aresto Trépont: Mathieu, de 29 de julho de 1943, Leb. pág. 213, e um aresto Casablanca de 10 de março de 1927. Leb., página 297, em que, num caso de aplicação de saldo financeiro, o Conselho recusa-se a examinar uma questão de puro fato).
7 ALIBERT, ob cit., pág. 83; BONNARD, “Le pouvoir discrétionnaire des autorités administratives et le recours pour excès de pouvoir”. R. D. P., 1923; DUGUIT, “L’Etat, les gouvernants et les agents”, ob. cit., págs. 541-550; HAURIOU, “Précis”, ob. cit., págs. 351-359 e 442-443; WELTER, “Le contrôle juridictionnel de la moralité administrative”, tese, Nancy, 1927, págs. 157 e segs.
8 Desenvolvimentos mais completos sôbre a teoria da causa levariam a mostrar que o direito privado a encara, as mais das vêzes, sob um aspecto teleológico, ao considerar a causa não como a fonte das obrigações, mas como o objetivo pelo qual elas se originaram e que, nessas condições, a teoria da causa do direito privado apresenta alguma afinidade com o desvio de poder, com a condição de não levar demasiado longe os fins mediatos e imediatos. É, às vêzes, nesse sentido que se encontra o têrmo causa nos estudos de direito administrativo (Cf., note P. L. sus C. E., 25 juin 1937. De la Raudière, S. 1937, III, 121); mas, não tendo sido êsse têrmo empregado pelo Conselho de Estado nesse último sentido, consideramos como inútil estendermo-nos sôbre esta questão.
ALIBERT, ob. cit., Sections II e III do capítulo sôbre a violação da lei; BONNARD, “Précis”, págs. 105-106 e artigo citado da R. D. P., 1923; CHALVON-DEMEREY, “De l’examen du fait par le Conseil statuant en matière de recours pour excès depouvoir”, tese, Paris, 1922; GOLDENBERG, “Le Conseil d’Etat, juge du fait”, tese, Paris, 1932; HAURIOU, “Précis”, págs. 450-452 e três notas: GOMEL (citado no texto); 22 janvier 1926, Lefranc, S. 1926. 388; JÉZE, “Essai d’une theorie générale sur les motifs déterminants”, R. D. P,. 1922; RÉGLADE, “Du prétendu controle juridictionnel de l’opportunité en matièrie de recours pour excès de pouvoir”, R. D. P., 1925; VEDEL, “Essai sur la notion de cause en droit administratif français”, tese, Toulouse, 1934; WALINE, “Manuel élémentaire de droit administratif”, 4ª ed., 1946, Sirey, págs. 521 a 524.
9 Foi certamente no motivo encarado como elemento subjetivo que AUCOC pensou quando definia o desvio de poder como o emprêgo do poder discricionário por motivos diversos daqueles em virtude dos quais êsse poder foi atribuído, e é preciso talvez pensar que foi nesse mesmo sentido que o empregaram aquêles que, como HAURIOU e ALIBERT, sc inspiraram na definição precedente para enunciar, por sua vez as características do desvio de poder. Da mesma forma, pode-se censurar a imprecisão provocada pela incerteza da terminologia, tanto nos arestos do próprio Conselho de Estado (cf. Schroeder, de 2 de fevereiro de 1933), como entre autores como DUGUIT ou GASTON JÈZE.
Aliás, BONNARD, que é talvez o autor que mais contribuiu para espalhar a acepção objetiva do têrmo, reconhece que gostaria de achar uma palavra menos ambígua para designar o elemento antecedente do ato jurídico. Observemos que WALINE foi mais feliz quando, considerando o motivo subjetivo, lhe deu o nome de móvel (mobile). Essa designação lhe permitiu, com efeito, definir, o desvio de poder como um excesso de poder referente ao primum mobile dos atos e dar ensejo ao caráter psicológico dessa irregularidade, muito melhor do que o faz a terminologia habitual. Entretanto, a sinonímia que existe entre os têrmos objetivo e mobile lhe permitiu dar essa definição sem afastar-se da concepção tradicional do desvio de poder (AUCOC, ob. cit., vol II, págs. 462 e segs.; BONNARD, “Précis”, págs. 97 e segs., artigo citado, pág. 269; HAURIOU, “Précis”, página 442 e nota sôbre o aresto Lefranc, S. 1926, III, 25 e J. A. II, 386; JÈZE, artigo citado, páginas 377 e segs.).
10 C. E., 22 mars 1901, Roz, S. 1902. III. 9 juillet 1943, Laroche et Tabouret, Leb., 182, J. C. P. 43-2421.
11 C. E., 10 mars 1911, Commune de Boujailles, S. 1912, III, 41. Curioso caso que mostra um prefeito se recusando a aprovar uma deliberação de Conselho municipal concernente ao direito de cortar lenha nas matas, e declarando que essa deliberação sòmente seria examinada no dia em que o Conselho não estivesse de acôrdo com as prescrições da lei em matéyra de locação de presbitérios.
12 C. E., 16 de novembro de 1900, Maugras, S. 1901, III, 57.
13 Assim é que um decreto inteiramente correto na aparência foi anulado, porque se limitou a reproduzir os dispositivos de um decreto precedente acoimado de desvio de poder (dois arestos “Société Thorrand”, de 8 de fevereiro de 1899, Leb., pág. 163, e de 9 de junho de 1893, Leb., pág. 450).
C. E., 3 août 1927, Stade olympique chabanais, Leb., pág. 917, e 19 janvier 1944, Ozoux, Leb., página 19: anulação de um decreto porque recusa uma autorização que, em circunstâncias idênticas, havia sido conferida a um outro administrado (primeira espécie), ou porque o desvio de poder aparece na desigualdade de tratamento entre os administrados ou os subordinados (segunda espécie). Cf. em matéria de depuração: 16 avril 1948, RICHARD, S. 19, III, 62.
Citemos ainda a atitude pelo menos vacilai i do superior do autor do ato (5 juillet 1878, Barrier, Leb., pág. 641), ou a pressa equívoca em decidir, e depois em executar (3 mars 1939, Dame Laurent, Leb., pág. 138).
14 ALIBERT, ob. cit., pág. 257; DUGUIT, “L’Etat les gouvernants et les agents”, ob. cit., págs. 541 e segs. HAURIOU, “Précis”, ob. cit., págs. 442 e segs.; JÈZE, artigo citado, págs. 436 e segs.; MICHOUD, “Etude sur le pouvir discrétionnaire”, “Annales de l’Université de Grenoble”, 1913 e 1914, págs. 29 e segs.; (1914); WALINE, “Manuel élémentaire de droit administratif”, Sirey, 4ª ed., 1946, págs. 126 e segs.; Welter, ob. cit., págs. 57 e segs.
15 ARTUR, artigo citado, pág. 461; JÈZE, artigo citado, págs. 387 e segs.; 422; LAFERRIÈRE, pág. 395 da 1ª ed. (1888) do “Traité de la juridiction administrative”.
16 Essa reserva que testemunha a prudência com a qual o Conselho de Estado admitiu o desvio de poder conheceu outras manifestações: limitação da admissão do desvio de poder no caso em que a prova resulte de peças constantes do processo; regra de não anular o desvio de poder senão quando a parte o invocar, a menos que o desvio de poder apareça como tendo dado margem à incompetência e quando convenha anular por uma outra causa diversa do desvio de poder. Sabe-se, aliás, que sôbre êsses dois últimos pontos o Conselho de Estado não costumava afastar-se de sua reserva.
HAURIOU, “Précis”, ob. cit., pág. 444; JÈZE, artigo citado, nº 434; LAFERRIÈRE, ob. cit., pág. 550.
17 ALIBERT, ob. cit., págs. 238 e segs.; GOLDENBERG, ob. cit., págs. 100 e segs. (“Le détournement de pouvoir et ses dérivés); WELTER, ob. cit., págs. 232 e segs.
18 Não podemos sequer pensar em esboçar uma aproximação, embora sucinta, entre essas duas teorias, cujo parentesco é evidente, porém que não poderiam ser confundidas. Indiquemos, todavia, que, se o seu fundamento é mais ou menos o mesmo, elas diferem, de início, pelo fato de se aplicarem dois domínios distintos, e, em seguida, pelo fato de darem lugar a duas vias de recurso, que não são da mesma natureza.
Na concepção mais usual, a de SALEILLES, JOSSERAND, RIPERT ou SAVATIER, o direito é considerado como abusivamente exercido quando o seu titular age com um fim anti-social, e HAURIOU assinalou a ligação existente entre essa concepção e a teoria do desvio de poder.
Apenas, enquanto a jurisprudência civil determinava o objetivo anti-social baseando-se na noção simples e restrita da intenção de prejudicar, HAURIOU escrevia que, para revelar o desvio de poder, o juiz devia apreciar se o objetivo colimado pela autoridade administrativa era justo e razoável. Em tais condições, o desvio de poder ultrapassava os limites do abuso do direito.
HAURIOU, porém, observava que a noção de abuso do direito tendia a ampliar-se, e, mais recentemente, após PLANIOL, GEORGES RIPERT devia assinalar a existência de um movimento tendente a levar em conta, para declarar o abuso do direito, não sòmente a intenção de prejudicar, mas também a utilização do direito com um objetivo diverso daquele em virtude do qual o legislador atribuiu êsse direito ao seu titular. Tal movimento teve por resultado aproximar muito mais do que antigamente o fundamento nas duas teorias e essa aproximação é particularmente clara no tocante àquela categoria de direitos que JOSSERAND chama de “os direitos altruístas”.
Ligadas em seu fundamento, as duas teorias aparecem, pelo contrário, como divergentes, se considerarmos os seus respectivos domínios de aplicação. A idéia de desvio de poder evoca estritamente uma ação dirigida contra uma decisão executória e não contra medidas de execução. Assim é que em vão se procuraria a decisão executória nessas medidas de execução abusivas de apreensão de mercadorias, de que muitas vêzes se revestem as capturas operadas pelos “agentes do pessoal da polícia” (HAURIOU). O abuso do direito não se limita a um domínio de aplicação tão restrito.
Enfim, a independência recíproca das duas teorias aparece ainda se considerarmos a natureza das ações a que pràticamente dão acesso. O recurso baseado no desvio de poder culmina apenas em uma anulação. O abuso do direito privado reconhecido pelos juízes dá lugar à reparação, de sorte que a transposição da teoria do abuso do direito para o terreno do direito administrativo evoca a idéia de uma ação de pleno contencioso, por ocasião da qual poderá ser exigida reparação, não sòmente do dano causado pela execução da decisão executória acoimada de desvio de poder, como também do prejuízo porventura acarretado pelo conjunto das atividades da administração, inclusive circunstâncias que podem ser, em parte, estranhas à decisão executória.
Para evitar qualquer confusão, advirtamos que, nas brevíssimas noções que precedem, falamos do abuso do direito tomando essa expressão no sentido adotado pelos civilistas e negligenciando um ensaio de interpretação ao qual RONNARD deu o nome de abuso do direito, fazendo, aliás, notar que, ao adotar essa denominação que lhe parecia adequada, êle não pretendia, em absoluto, evocar a teoria civilista. Trata-se do caso em que, achando-se perfeitamente concretizadas tôdas as condições de legalidade, uma decisão se apresenta como inútil ou excessiva porque o objetivo visado teria podido ser alcançado por medidas menos rigorosas (BONNARD, “Précis”, ob. cit., págs. 98 e segs., e “Compagnie des mines de Siguiri”, du 22 novembre 1929, Leb., pág. 1.022, e S. 1930, III, 17, note BONNARD).
HAURIOU, notes sous 17 juillet 1925, Banque de France, S. 1925, III, 33, J. A, II, págs. 99 e 27 février 1903, Olivier et Zimmerman, S. 1906, III, 17, J. A. II, pág. 552; JOSSERAND, “Cours de Droit civil positif français”, 1930, Sirey, 3 vols., vol. I, págs. 161 e segs. e 1.474 e segs.; LAPARRE, ob. cit.; PLANIOL, RIPERT ET ROULANGER, “Traité élémentaire de Droit civil”, L. D. P., 3ª ed., 1946, vol. I, pág. 366; RIPERT, “La règle morale dans les obligations civiles”, Sirey, 4ª ed., 1948, ns. 86 e segs.; PORHERET, “De l’abus du droit”, tese, Dijon, 1902.
19 O exemplo seguinte esclarecerá talvez essas noções algo abstratas. Imaginemos que se trate, para um superior hierárquico, de aplicar a um funcionário uma pena disciplinar. O seu ato pode ser analisado do seguinte modo: indagará se os fatos imputados ao funcionário foram realizados e, em caso afirmativo, se a lei permite atribuir-lhes a qualificação de falta. Equivale isso a ocupar-se da determinação, tanto material quanto jurídica, do fato antecedente à decisão suscetível de lhe servir de motivo. Estabelecido tal motivo, a autoridade administrativa irá mais longe, apreciando qual é, levando-se em conta tôdas as circunstâncias da causa, o valor dêsse motivo e se, com o fim de manter a disciplina, ela deve decidir que as atividades do subordinado em aprêço devem acarretar tal ou qual sanção indicada pela lei era sua enumeração das penas disciplinares. Nesse exemplo, o poder do superior hierárquico aparece como discricionário, porque o Conselho de Estado o deixa livre para apreciar se deve castigar com rigor, e, no caso de pronunciar-se em favor da afirmativa, de decidir que penalidade convém aplicar.
Falar, porém, do poder discricionário dêsse superior não implica necessàriamente que a Alta Assembléia possa deixar de estatuir sôbre a existência material do modo de proceder do funcionário ou sôbre a qualificação jurídica que lhe convém dar, assim como sôbre a legalidade do objetivo visado pelo superior quando toma a sua decisão.
20 Inversamente, a correção dos motivos exclui a admissão do recurso baseado num desvio de poder.
Com efeito, quando uma autoridade administrativa realiza um ato tendo tôdas as aparências da regularidade e em consideração de um motivo corretamente apreciado em existência e em valor, tenderá necessàriamente, conforme o encadeamento lógico das diversas fases de sua realização, para o objetivo colimado pela lei. Aqui, como por tôda parte, todo efeito já se acha implícito em sua causa. Assim é que, por um ato que possui tôdas as aparências de uma resolução de polícia, um prefeito que tomar decisões baseadas numa perturbação realmente existente agirá de modo a promover o restabelecimento da ordem pública. Observemos, de passagem, que a recíproca não é verdadeira e que um motivo viciado não se faz necessàriamente acompanhar por um desvio de poder, porque pode dar-se o caso em que a autoridade administrativa se tenha enganado quanto ao motive, sem deixar, apesar disso, de guiar-se pela preocupação de se comportar segundo as regras de uma boa administração (10 août 1945, Delle. Petrucci, Leb., pág. 177).
Todavia, se a regularidade do motivo de um ato acarreta a consecução do fim legal, êsse último pode não ser o único, podendo, em certos casos, acontecer que a decisão tomada seja ditada pelo desejo de se aproveitar da existência de um motivo real para agir de modo a atingir inimigos pessoais ou adversários políticos. Mas o Conselho de Estado jamais admitiu que, em casos dêsse gênero, caracterizados pela pluralidade de fins, o desvio de poder pudesse ser reconhecido. Para reproduzir os têrmos de BONNARD, a existência de um fim ilegal não acarreta o desaparecimento do fim normal, de sorte que há superposição de fins e não desvio de poder. Entretanto, se, ao agir dêsse modo, o Conselho de Estado faz prova de sua costumeira prudência em matéria de admissão de desvio de poder, é preciso reconhecer que êle dá a essa via de recurso, baseada todavia num critério psicológico, um aspecto que, na espécie se caracteriza fortemente por sua objetividade e assim é que, antigamente, êle se recusou a anular um decreto, porque não ficara estabelecido que êsse ato tivesse sido ùnicamente praticado com um fim contrário aos interêsses de uma boa administração (C. E., 6 mai 1921, Cie. des omnibus et tramwys de Lyon, Leb., pág. 456, e R. D. P., 1921, pág. 456, concl. CORNEILLE); e, mais recentemente, a Alta Assembléia julgou que o ato que tornou sem efeito uma nomeação irregular anteriormente feita era válido, mesmo se, ao baixá-lo, a autoridade fôra guiada por uma intenção constitutiva de um desvio de poder (11 janvier 1935, Gras, Leb., pág. 40, e S. 1935, III, 102). (Vide igualmente: 25 juillet 1937, De la Randière, précité avec la note de BONNARD. R. D. P., 1938, pág. 138; 3 janvier 1947, Sainteau, Leb., página 7, e 28 mars 1947, Dubois, Leb., pág. 137).
ALIBERT, ob. cit., pág. 279; BONNARD, “Précis”, ob. cit., pág. 75 e segs., e “Contrôle juridictionnel de l’administration”, págs. 556 e segs.: RÉGLADE, artigo citado, R. D. P., 1926; WALINE, “Le pouvoir discrétionnaire de l’administration et sa limitation par le contrôle Jurisdictionnel”, R. D. P., 1930.
21 Bastante discernível é a passagem do caso em que a existência do fim colimado pelo legislador é suficiente para salvar o ato, cujo autor é, entretanto, guiado por uma preocupação estranha à boa administração – para outro caso em que êsse fim é de valor demasiado fraco para merecer alguma consideração. Assim é que, num aresto Colomb, de 30 de janeiro de 1914, Leb., pág. 116, o Conselho decidiu anular um regulamento de águas, porque o desejo de assegurar o bom escoamento das águas não teria sido bastante para determinar a ação do prefeito, que era, principalmente, guiado pela preocupação de garantir a conservação de uma ponte recentemente construída (JÈZE, artigo citado, 1922, pág. 424).
Ao contrário, o arersto La Raudière, tal como o interpreta BONNARD, constitui um exemplo inverso do precedente. O Conselho de Estado, verificando que uma delimitação da faixa marítima fôra convenientemente efetuada, concluiu pela rejeição do recurso, sem querer entrar no mérito das razões baseadas no desvio de poder. Com efeito, a necessidade de delimitação da faixa marítima correspondia à realidade e o ato impugnado tendo realizado essa delimitação pouco importava que a administração tenha agido, ao mesmo tempo, para salvaguardar os interêsses do domínio privado do Estado.
22 Para a análise do papel do motivo na gênese do desvio de poder, convém que o leitor consulte, principalmente, o artigo precitado do deão BONNARD (R. D. P., 1923), bem como a nota dêsso mesmo autor sôbre o aresto La Raudière (R. D. P., 1938); JÈZE, artigo citado, R. D. P., pág. 387.
23 ARTUR, artigo citado, págs. 458 e segs. (em particular, pág. 460, nota 2), e LAFERRIÈRE, ob. cit., pág. 395, 1ª ed.
24 MICHOUD põe em evidência que, se o objetivo visado pela lei foi alcançado, o Conselho de Estado, em face de um recurso baseado no desvio de poder, se recusa a ir mais longe e a investigar se o fim ilícito também existe. Ora, se analisarmos a situação considerada pelo nosso autor, baseando-nos na relação lógica que, no processus de realização do ato jurídico, une o motivo antecedente e o fim subseqüente, verificaremos que se trata do caso em que o autor do ato é guiado pelo desejo de atingir um objetivo criticável, partindo, porém, de um motivo correto, cuja existência lhe permite alcançar o fim colimado pela lei. Finalmente, a análise de MICHOUD sôbre êsse ponto terminou por demonstrar que, quando o Conselho de Estado rejeita um recurso, por verificar que, além do fim ilícito desejado pelo autor, existe o objetivo visado pela lei, aquele órgão se baseia num contrôle da liceidade de motivos, que permanece implícita.
Depois, passando para o caso inverso, isto é, naquele em que a anulação é pronunciada por desvio de poder, MICHOUD emite a opinião de que o Conselho de Estado sòmente toma sua decisão quando julga que, ao deixar patente a ilegalidade do objetivo colimado, a administração revelou indiretamente que não podia alegar outro objetivo que estivesse de acôrdo com a lei. Com efeito, continua MICHOUD, seria impossível administrar a prova da inexistência do objetivo visado pela lei sem entrar no detalhe de tôdas as circunstâncias do fato e sem controlar, na íntegra, a apreciação administrativa. Em suma, o desvio de poder só é aí utilizado para confirmar, em situações em que a atitude do autor do ato é particularmente criticável, a ausência de objetivo regular e, por meio dessa última, a inexistência do motivo. Aliás, prossegue MICHOUD, no caso excepcional em que o exame do caso leva a Alta Assembléia a constatar, com evidência, que o objetivo regular não pode existir, ela conclui pelo desvio de poder, sem mesmo invocar a prova de um determinado fim ilícito. Se renuncia a administrar essa prova, é porque o que o que ela busca alcançar, por detrás do desvio de poder, é a ausência de motivos e de fins regulares. Ora, essa ausência sendo aqui evidente, anula-se por desvio de poder, porque, na época de MICHOUD, não se dispunha de outro meio, não se tendo, pois, nenhuma razão para dificultar a administração da prova dêsse desvio.
MICHOUD, artigo citado (1914, págs. 38 e segs.). Na análise acima, esforçamo-nos, não sem muitas dificuldades, por levar em conta as diferenças que existem entre a terminologia desse autor e a terminologia atual que empregamos. Assim é que, para MICHOUD, o motivo designa o motivo subjetivo – a intenção – antes que o motivo objetivo – o antecedente ao ato. Quanto ao motivo objetivo, é o têrmo causa que o designa.
25 HAURIOU, note sous Lefrane du 22 janvier 1926 (S. 1926. III. 25 et J. A., II, págs. 386 e 387) e 17 janvier 1902 (Favatier et Lalaque, S. 1903, III, 97; J. A., págs. 341-343; 22 mai 1896, Carville, S. 1897, V. 121, J. A., II, pág. 319).
26 Em quatro outros casos, nota-se a mesma indiferença da Alta Assembléia em se pronunciar sôbre a natureza da incorreção do motivo, de sorte que, dentre os oito arestos examinados, só há um em que aparece a preocupação de salientar a inexistência do motivo. Refere-se à anulação da proibição feita a um mercador forasteiro de instalar-se numa feira, durante quatro sábados consecutivos, com o objetivo de obrigá-lo a apresentar desculpas a um conselheiro municipal, embora infração alguma, no tocante ao policiamento de feiras, lhe pudesse ter sido imputada (28 mars 1945, Moreau, Leb., pág. 68).
Vide: 22 juin 1943, Pietrini, Leb., pág. 130, e 26 décembre 1945, Frène, Leb., pág. 271, nos quais o Conselho de Estado, ao anular os recursos por desvio de poder, não indaga se as convenções locais eram suscetíveis de justificar a apelação, de 26 décembre 1945, Chamaillard, Leb., pág. 268, mesma atitude por ocasião de anulação de três decisões que limitavam a livre exploração de uma emprêsa de debulha de cereais, 12 décembre 1945, Etablissement Auguste Lepoutre, Leb., pág. 254, é um caso à parte, porquanto, se o ato era tachado de desvio de poder, a sua nulidade resultava também de anulação prévia do ato que lhe servia de base jurídica.
27 BONNARD, ob. cit., págs. 105 e 112; JÈZE, “Note sur la jurisprudence du Conseil d’Eat et le détournement de pouvouir”, dans la R. D. P., 1944, págs. 58 a 63.
28 C. E., 6 août 1927, Potier, Leb., pág. 271, e 4 juin 1927, Pompes Funèbres, Leb., pág. 661. Parece que, depois dêsses arestos, a identidade dos dois recursos ficou bem estabelecida. É o que se depreende, como observa BONNARD, de um aresto de 9 de janeiro de 1929, Societé thermale et balnéaire, S. 1930. III. 57, note BONNARD (vide, igualmente, a propósito do aresto de 6 agôsto de 1929: “Le détournement de pouvoir matière de délibérations de conseil municipal”, R. D. P., 1930, pág. 345). HAURIOU, ob. cit., pág. 403.
29 C. E., 20 janvier 1928, Esquieu, S. 1928, III, 49, note HAURIOU, J. A. III, 772, o conselho de Estado, considerando que o regime da escola mista fôra autorizado no pequenos municípios pela lei de 30 de outubro de 1886, com o único objetivo de permitir a realização de economia (o que o texto não declara), resulta que, desde o momento em que duas escolas funcionem numa mesma localidade, cada uma delas deve receber as crianças na base de uma distribuição operada por sexo e não por Idade, segundo a regra geral, aliás, implìcitamente admitida pela lei (art. 69). Dêsse modo, a Alta Assembléia condenou uma prática, assaz espalhada no ensino primário, e que consistia em criar uma escola geminada nos municípios suficientemente grandes para terem duas escolas, porém demasiado pequenos para que essas escolas tenham mais de uma classe. Agrupavam-se então as crianças por idade, de sorte que, em vez de se ter um estabelecimento para meninos e outro para meninas, tinha-se uma classe para os pequenos e uma classe para os alunos mais crescidos. A vantagem pedagógica era evidente, mas a prática assim instaurada era perigosa, pelo menos polìticamente, por causa da oposição violenta que ela provocava em certos meios católicos (hoje a geminação se torna possível, havendo aquiescência dos Conselhos municipais).
C. E., 9 juillet 1943, Tabouret et Laroche, Leb., 182 e J. C. P., 1943, 2.421, concl. LÉONARD. Êsse aresto anula por desvio de poder a decisão pela qual um prefeito havia recusado a dar a autorização então exigida para as transações imobiliárias, pela lei de 16 de novembro de 1940, aos adquirentes de bens rurais, sob pretexto de que êles não eram agricultores de profissão. O procurador do govêrno propôs a anulação, salientando que o objetivo da lei não tinha sido o de assegurar um privilégio aos agricultores de profissão, porque as circunstâncias, assim como as disposições particulares tomadas em face da aplicação da lei, mostram que essa última era apenas uma lei de polícia, tendo por fim evitar as especulações e os abusos. Em conseqüência, o prefeito tinha feito um mau uso de seu poder, ao fazer dêsse texto o instrumento de uma revolução econômica e social (no mesmo sentido, 28 juillet 1944, Dame Constantin, Leb., pág. 219, e comp. 16 février 1945, Lengrand, Leb., pág. 360),
C. E., 25 juin 1946, Dlle. Ronlliés, citado anteriormente, Leb., pág. 142. Antes de rejeitar o pedido para anulação da requisição de um terreno, baseado, entre outras razões de apelação, no desvio de poder, o Conselho de Estado indaga qual foi o objetivo colimado pelo legislador quando previu, pela lei de 31 de outubro de 1941, as requisições de terrenos em face da constituição das hortas familiares e operárias. “Considerando”, diz êle, “que a lei de 31 de outubro de 1941 teve especialmente por objetivo coibir as especulações nascidas da escassez de legumes e permitir aos prefeitos manter a locação de terras cultiváveis á um preço normal; que, em conseqüência disso, o prefeito não cometeu nenhum desvio de poder ao decretar a requisição do terreno litigioso, a fim de que a Associação dos Horticultores de Périgueux não seja obrigada a sujeitar-se às pretensões manifestamente exageradas da requerente”.
30 HAURIOU, ob. cit., pág. 443; LAFERRIÈRE, ob. cit., págs. 548 e segs,: DE LAUBAIDÈRE, ob. cit., pág. 110; WELTER, ob. cit., págs. 144 a 150: WALINE, ob. cit., pág. 127.
31 Com efeito, nas duas passagens da obra de HAURIOU, que, a nosso ver, são as mais explícitas acêrca do enunciado essa doutrina, o autor parece, a princípio, visar o conjunto do recurso contra excesso de poder, considerado em alguns de seus aspectos, dos quais nem todos correspondem ao desvio de poder (nota sôbre GOMEL, anteriormente citado, J. A., págs. 375-376), ao passo que, depois, êle sòmente aplica a expressão ao desvio de poder, levando em conta principalmente o critério psicológico (“Précis”, págs. 442-443). Sôbre o conjunto das considerações muito condensadas que apresentamos no texto, vide: WELTER, ob. cit., em particular: o contrôle da moralidade é um contrôle da legalidade? (págs. 69 a 80), o contrôle do desvio de poder (págs. 144 a 156), extensão do contrôle da violação da lei sob a influência da teoria do desvio de poder (págs. 292 a 296).
Vide, igualmente: ALIBERT, ob. cit., página 226; APPLETON, “Traité élémentaire du contentieux administratif”, Dalloz, 1937, pág. 622; BONNARD, “Précis”, ob. cit., pág. 112 e nota sôbre Société thermale et balnéaire, de 9 de janeiro de 1929, S. 1930, III, 57; HAURIOU, em várias passagens citadas anteriormente, inclusive prefácio consagrado à teoria da instituição; DE LACHARRIÈRE, ob. cit., págs. 106 a 111.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS
I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
LEIA TAMBÉM: