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Independência ou norte: qual o papel do Direito Privado?

DIREITO PRIVADO

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

01/11/2022

Inflamado pelo combustível eleitoral, o feriado de 7 de setembro tem suscitado discussões intensas. Neste momento, a pauta nacional parece dominada por temas de Direito Público: segurança pública, proteção do meio ambiente e combate à corrupção são algumas das questões mais frequentes nos debates entre candidatos à Presidência da República e, também, nas discussões entre eleitores. O Direito Privado parece ceder passagem a assuntos que lhe são estranhos… ou que lhe eram estranhos até algum tempo atrás.

Conceito de Direito Privado

A tradicional visão do Direito Privado como espaço da liberdade dos particulares — onde é permitido tudo que não for proibido — tem se mostrado insuficiente para proteger os direitos fundamentais, incluindo a própria liberdade individual. Isso porque a liberdade não é apenas a possibilidade de agir de acordo com a própria vontade, mas é necessariamente também dispor dos meios mínimos para poder, de fato, agir desta forma. Em um exemplo prosaico, a liberdade de imprensa valeria pouco se todas as emissoras de rádio e televisão pertencessem a uma única companhia, pois faltaria o pluralismo indispensável ao livre exercício das opiniões e à livre circulação da informação.

Da mesma forma, a liberdade de contratar teria pouca utilidade para os particulares se cada bem ou produto contasse com um único fornecedor no território nacional. O direito ao trabalho, de igual modo, perderia sentido se os trabalhadores fossem submetidos a jornadas diárias extenuantes e recebessem remuneração em cupons para adquirir alimentos em estabelecimentos do próprio empregador, como continua a ocorrer no interior do Brasil em situações de trabalho sob condições análogas à escravidão. A questão da liberdade é, frequentemente, a questão de fornecer os meios indispensáveis para exercê-la.

O Direito Privado contemporâneo não se contenta, portanto, com a preservação do espaço de autonomia dos particulares, mas envereda todo o tempo pela discussão dos fins aos quais o exercício desta autonomia se dirige. A concretização dos direitos fundamentais exige que a iniciativa privada desempenhe um papel menos simplório que aquele sintetizado na fórmula laissez faire, laissez passer. Ao Direito Privado compete prestar sua contribuição para a solução dos problemas substanciais que marcam a realidade brasileira, a começar pelo problema fundamental da desigualdade.

Neste próximo dia 7 de setembro, quando, em meio às campanhas eleitorais, completa-se o bicentenário da Independência, é natural que se analise a história do Brasil em retrospectiva, especialmente no que tange à efetiva tutela dos direitos da população brasileira. Neste cenário, não faltam vozes suscitando reflexões críticas sobre a limitada abrangência do grito do Ipiranga. O brado de “Independência ou Morte”, se tiver sido realmente emitido, não alcançou, como se sabe, a população “de 1.107.389 escravos no Brasil”, cifra que “correspondia a aproximadamente um quarto da população total, estimada em 4.396.132 indivíduos, sendo 2.488.743 os livres e 800 mil os ‘índios não domesticados’”[1].

Vale dizer: em 1822, o Brasil se tornou independente, mas mais de um quarto do seu povo seguiu escravizado, tudo sob o beneplácito do Direito Privado, fielmente arraigado à proteção do direito de propriedade dos senhores de engenho — a tal ponto que, mesmo após a Lei Áurea (1888) e a Proclamação da República (1889), mais de 60 anos depois da Independência, escravocratas continuaram exigindo indenização pela perda de seus “bens”[2].

Direito privado e contemporaneidade

No momento atual, em que se percorre o caminho oposto, com o acolhimento — ainda que demasiadamente tardio — de algumas iniciativas de reparação histórica à população negra, como a política de cotas para acesso às universidades e a cargos públicos, tem-se a oportunidade de refletir sobre o papel que a iniciativa privada deve desempenhar na superação da injustiça social e das graves mazelas da vida brasileira. O Direito Privado não pode mais se restringir a fornecer a segurança necessária para que os particulares persigam livremente seus próprios interesses. Não basta garantir a liberdade e a autonomia. O Direito Privado não pode ser apenas o garantidor da independência, mas deve ser também norte e direção para o exercício da liberdade individual, promovendo a concretização dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Insere-se nessa seara o instigante debate contemporâneo acerca das possibilidades e limites da exigência de igualdade substancial no âmbito contratual, especialmente no que diz respeito à vedação ao tratamento discriminatório. Do direcionamento de vagas de emprego a pessoas com certas características estéticas, como no rumoroso caso da Abercrombie & Fitch[3], à recusa de prestação de serviços por razões religiosas, como no caso do confeiteiro americano que se recusou a preparar um bolo de casamento para um casal de homens[4], são várias as situações que demandam um juízo de valor acerca da compatibilidade do exercício da autonomia privada com os imperativos constitucionais da isonomia e da vedação à discriminação (Constituição, arts. 3º, IV, e 5º, caput)[5].

A nova atitude do Direito Privado perante o exercício da liberdade individual não se limita às relações patrimoniais, que historicamente constituem o objeto privilegiado deste campo do Direito. Uma maior atenção passa a ser dispensada especialmente às relações existenciais, umbilicalmente ligadas à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Neste novo cenário, a irrefletida afirmação, constante do artigo 11 do Código Civil, de que o exercício dos direitos da personalidade não pode sofrer limitação voluntária é amplamente rechaçada pela doutrina, por representar uma injustificada limitação da autonomia existencial, não faltando na realidade atual exemplos de aceitação generalizada a limitações voluntárias à integridade física (como na prática de esportes radicais ou em torneios de mixed martial arts), à privacidade (como na participação em reality shows ou na autoexposição em redes sociais) e a outros direitos da personalidade.

Neste cenário, o Direito de Família apresenta-se como um locus privilegiado no qual diariamente despontam novos espaços de exercício da liberdade individual. No âmbito das relações parentais, já receberam a chancela do Supremo Tribunal Federal a paternidade socioafetiva e a multiparentalidade[6], institutos que evidenciam a importância da tutela das relações efetivamente formadas na realidade brasileira, prescindindo de títulos formais ou de prévia chancela estatal.

Na mesma direção, no âmbito dos vínculos conjugais, acertou o STF ao se insurgir contra o preconceito e legitimar as uniões estáveis homoafetivas[7], abrindo as portas para a regulamentação do casamento homoafetivo por meio da Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça. Este projeto de um Direito de Família mais igualitário e deferente à autonomia das pessoas, apesar de todos os seus avanços, encontra-se ainda em construção, como se vê da resistência ainda rígida da maioria dos tribunais ao reconhecimento de famílias poliafetivas ou simultâneas, que, não obstante se formem na realidade concreta, seguem sendo invisíveis ao Direito brasileiro.[8] E não deixa de ser curioso que, em pleno século 21, a família tenha se tornado um tema relevante nas eleições presidenciais, opondo visões absolutamente distintas sobre o papel que o Direito deve exercer nas relações familiares.

A coisa talvez sirva de alerta. Embora a pauta do debate nacional ande repleta de temas de Direito Público, é o Direito Privado que pode acabar desempenhando um papel decisivo para o efetivo desenvolvimento social de um Brasil verdadeiramente independente, mais livre e menos desigual.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] José Flavio Motta, A escravidão brasileira à época da Independência, versão eletrônica disponível em https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2022/03/2-Flavio-Mota.pdf.

[2] Vale recordar, sobre o tema, a polêmica decisão tomada, em 1890, pelo então Ministro da Fazenda Rui Barbosa, de incinerar os documentos armazenados em repartições do Ministério da Fazenda que contivessem registros da escravidão no Brasil. Diversos historiadores identificam na medida uma tentativa de impedir o exercício de pretensões indenizatórias em face do Estado por parte de antigos proprietários de escravos, enquanto seus críticos destacam os severos prejuízos causados à historiografia pela destruição dos documentos. Sobre o episódio, vale conferir a obra de Américo Jacobina Lacombe, Eduardo Silva e Francisco de Assis Barbosa, Rui Barbosa e a queima dos arquivos, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.

[3] Sobre o tema, ver o recente documentário White Hot: The Rise & Fall of Abercrombie & Fitch (2022).

[4] Suprema Corte dos EUA respalda confeiteiro que não quis fazer bolo nupcial para casal gay (El País, 6.6.2018).

[5] A matéria foi objeto de detido e aprofundado exame por Jorge Cesa Ferreira da Silva, Antidiscriminação e Contrato, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

[6] STF, RE 898.060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, j. 22.9.2016.

[7] STF, ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 5.5.2011.

[8] Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Famílias Simultâneas e Redes Familiares, in Direito Civil e Constituição, São Paulo: Atlas. 2013, pp. 297-314.

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