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ADMINISTRATIVO
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Autarquias estaduais e municipais
Revista Forense
27/10/2022
REVISTA FORENSE – VOLUME 155
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413
FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO
FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,
Abreviaturas e siglas usadas
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SUMÁRIO REVISTA FORENSE – VOLUME 155
CRÔNICA
DOUTRINA
- A organização e o funcionamento do Poder Judiciário, M. Seabra Fagundes
- Autarquias estaduais e municipais, Carlos Medeiros Silva
- Normas gerais de direito financeiro, Rubens Gomes De Sousa
- As transformações do Direito de família, Lino De Morais Leme
- Nulidades no Direito contratual do Trabalho, Orlando Gomes
- Pressupostos processuais, Ademar Raimundo Da Silva
- A evolução do desvio de poder na jurisprudência administrativa, Roger Vidal
PARECERES
- Mandado de Segurança Contra a Lei em Tese – Ato Normativo – Requisição de Aguardente pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, Francisco Campos
- Fideicomisso e Usufruto – Distinção, Carlos Medeiros Silva
- Impôstos – Arrecadação Estadual – Excesso a ser entregue aos Municípios, Aliomar Baleeiro
- Impôsto de Renda – Pessoa Jurídica Domiciliada no Estrangeiro – Convenção de “Royalties”, Rui Barbosa Nogueira
- Contrato Administrativo – Revisão de Preço – Teoria da Imprevisão, Caio Tácito
- Contrato por Correspondência com Firma Estrangeira – Nota Promissória – Requisitos Essenciais, Afrânio de Carvalho
- Advogado – Retirada de Autos de Cartório – Processos Criminais, Evandro Lins e Silva
NOTAS E COMENTÁRIOS
- A Conclusão de Atos Internacionais no Brasil, Hildebrando Accioly
- O Federalismo e a Universidade Regional, Orlando M. Carvalho
- Inelegibilidade por Convicção Política, Osni Duarte Pereira
- Embargos do Executado, Martins de Andrade
- Questão de Fato, Questão de Direito, João de Oliveira Filho
- Fantasia e Realidade Constitucional, Alcino Pinto Falcão
- Da Composição da Firma Individual, Justino de Vasconcelos
- A Indivisibilidade da Herança, Gastão Grossé Saraiva
- O Novo Consultor Geral da República, A. Gonçalves de Oliveira
- Desembargador João Maria Furtado, João Maria Furtado
JURISPRUDÊNCIA
LEIA:
SUMÁRIO: Competência da União e dos Estados. Os Municípios, o Distrito Federal e os Territórios. A descentralização pelo critério geográfico em nosso regime federativo. A descentralização por serviço e os entes públicos ou autárquicos. A criação das pessoas jurídicas de direito público. Hierarquia das leis. O art. 14 do Cód. Civil e o dec.-lei n° 6.016, de 1943. A lei civil e a descentralização por serviço. Autarquias criadas pelos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso e Rio Grande do Norte. Sociedades de economia mista criadas pelos Estados. Conclusão.
Sobre o autor
Carlos Medeiros Silva, Advogado no Distrito Federal
DOUTRINA
Autarquias estaduais e municipais
* I. No regime federativo, instituído entre nós com a República, há duas ordens principais de competência: a da União e a dos Estados. Ambas decorrem da Constituição federal, ora explícita, ora implìcitamente.
Competência da União e dos Estados
A competência da União é assegurada no que toca às relações internacionais, à manutenção da ordem interna, à moeda, aos serviços nacionais de transportes e de comunicações.e ao poder de legislar sôbre o direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, aeronáutico e do trabalho, além de outras matérias relacionadas com êstes ramos do direito.
Aos Estados é reservada a competência supletiva ou complementar para legislar nestas matérias.
2. Os Estados possuem também uma Constituição própria, pela qual se regem, e bem assim pelas leis que adotarem, observados os princípios estabelecidos no texto federal; a êles se reservam todos os poderes que por êste não lhes forem vedados. Deverão prover às necessidades do seu govêrno e da sua administração.
3. A par da União e dos Estados, a Constituição menciona os Municípios, o Distrito Federal e os Territórios. São entidades cuja competência legislativa e atribuições governamentais são mais restritas, atendendo às peculiaridades de sua organização. Entre êstes avultam os Municípios, cuja autonomia a Constituição assegura através de medidas eficazes e objetivas, como sejam, a eleição de uma Câmara Legislativa, a decretação e arrecadação de tributos de sua competência, a aplicação de suas rendas e, especialmente, pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interêsse, bem como à organização dos serviços públicos locais.
4. A administração do Distrito Federal e dos Territórios obedece a normas especiais, que se aproxima, ora da estadual, ora da municipal, conforme as circunstâncias.
5. As Constituições estaduais e à legislação emanada da mesma fonte, a despeito das normas estatuídas no pacto federal, se concede larga parcela de Ingerência na organização e no funcionamento dos órgãos municipais.
II. A descentralização pelo critério geográfico em nosso regime federativo.
6. A descentralização, em nosso regime federativo, se opera, desta forma, em três degraus: o federal, o estadual e o municipal. É uma singularidade, porque em outros países a escala é dupla.1
7. O critério constitucional é, porém, meramente geográfico. Não se cuida, dentro das órbitas de atuação das entidades mencionadas da descentralização por serviços, de que se ocupou recentemente CHARLES EISENMANN em conhecida monografia.2 Esta forma de organização, que também existe nos regimes unitários, tomou vulto com a crescente ampliação das tarefas do Estado e não podíamos permanecer na sua ignorância. Assim, a partir do primeiro após-guerra, e particularmente do regime instituído com a revolução de 1930, começaram a surgir os chamados entes autônomos, as entidades parestatais, autarquias, fundações Instituídas pelo Estado e sociedades de economia mista.
8. Nos períodos ditatoriais, francamente centralizadores, de 1930 a 1934, e de 1937 a 1946, quando os Estados permaneceram sob o regime de intervenção, a tendência para enfeixar na competência da União tôda a legislação acentuou-se decididamente. Não só a legislação local, como a organização de serviços estaduais e municipais, de maior relevância, ficaram na dependência do assentimento da União.
9. Durante a curta vigência da Constituição de 1934, na qual aquela tendência já se manifestara, através da unificação do direito processual, mas não tomara corpo, o problema da descentralização por serviço, no plano estadual e municipal, ficou latente.
10. O govêrno federal, entretanto, vinha usando e abusando dêste processo de organização de serviço e a Constituição de 1946 tomou conhecimento das autarquias e das sociedades de economia mista, em vários de seus dispositivos (artigos 48, I, a e b, 77, 141, § 38, 181, § 3°, e 209, parág. único, nº IV).
A par das emprêsas concessionárias de serviços públicos, de maior tradição, na execução das tarefas governamentais, o Estado passou a criar órgãos de caráter público, dotando-os de personalidade e patrimônio próprios, de uma competência que até então era exercida por seus departamentos centralizados, ou que êstes, por sua feição peculiar, não estavam aptos a desempenhar.
11. Com a reconstitucionalização do País, em novos moldes, os Estados federados readquiriram a sua plena capacidade de prover às necessidades de seu govêrno e de sua administração (Constituição, art. 18), e os Municípios de organizarem os serviços locais, de seu peculiar interêsse (Constituição, art. 28, II).
A êles, assim como à União, não seria lícito vedar a descentralização por serviço, a possibilidade de executar tarefas mediante órgãos públicos, de natureza autárquica.
III A criação das pessoas jurídicas de direito público.
12. A criação das pessoas jurídicas mereceu de LÉON MICHOUD uma alentada monografia, publicada em 1905 e atualizada em 1923 e 1931 por LOUIS TROTABAS.3 Nela encontrarão os estudiosos largos subsídios de natureza doutrinária sôbre o assunto.
Ensina o reputado mestre que a personalidade do Estado, apesar de una, não é obstáculo a que dela se destaquem certos serviços públicos e que os mesmos tenham personalidade própria. Para tanto é necessário que o serviço personalizado tenha, como tôda a pessoa moral, uma organização adequada ao desempenho de uma vontade capaz de representá-lo na cena jurídica. Deve, ainda, corresponder a um grupo de interêsses coletivos e permanentes, distintos dos do Estado. Na escolha dos serviços públicos suscetíveis de serem personalizados tem o Estado um poder de apreciação muito extenso. Assim, desde que corresponda a um grupo de interêsses destacados, poderá o serviço ser personalizado.
13. A existência de um patrimônio próprio não é indispensável para o nascimento da pessoa moral, diz o mesmo autor; basta a capacidade para adquiri-lo.
14. O ato de criação de uma pessoa jurídica pública reclama a intervenção do legislador, eis que ela é desmembramento das funções atuais ou potenciais do Estado, ao qual poderá se contrapor, na execução da tarefa que lhe foi confiada. Esta orientação do direito francês, que tem por si também a autoridade de GASTON JÈZE, encontra restrições por parte de OTTO MAYER, o grande jurisconsulto alemão. Diz êle que a criação de uma pessoa jurídica de direito público é antes um desmembramento da personalidade estatal existente do que a formação de uma nova entidade. Na competência do poder administrativo se encontraria fundamento suficiente para esta atuação. No direito italiano, e mesmo no francês, esta teoria teve repercussão, em se tratando de entidades não-dotadas de privilégios ou prerrogativas especiais.4
15. Entre nós, a corrente vitoriosa faz depender da lei a criação das pessoas jurídicas de direito público. TITO PRATES DA FONSECA, que escreveu em 1935 uma excelente monografia sôbre as autarquias administrativas, assim doutrinou: “Penso que estas entidades só aparecem quando lhes é expressamente concedida personalidade jurídica por uma lei”.5
Na jurisprudência administrativa, conforme tive oportunidade de acentuar em trabalho recente, a mesma orientação é aceita.
16. De fato, argumentei então, a pessoa jurídica é criação de lei ou resulta do processo, para a sua instituição, prescrito nas leis civis ou comerciais. Se a entidade é de direito público não prevê a lei comum os trâmites para a sua organização. A lei especial deverá ditá-los ou supri-los. Por um ato executivo não seria admissível que se outorgasse personalidade jurídica a uma entidade criada à revelia do direito comum e sem lei especial prévia e autorizativa.
A competência de tal órgão seria subtraída, no todo ou em parte, de outros, de natureza administrativa, que a receberam da lei. Não poderiam êstes sofrer a mutilação, sem o consentimento do legislador. Caso contrário, a órbita de atribuições, fixada em lei, de determinados órgãos, ficaria ao alcance e à mercê de atos regulamentares que poderiam anulá-los, amputando-lhes prerrogativas essenciais.6
IV Hierarquia das leis. O art. 14 do Cód. Civil e o dec.-lei n° 6.016, de 1943.
17. A capacidade legislativa dos Estados o Municípios para criar, modificar e extinguir órgãos administrativos, destinados a atuar dentro da órbita de suas atribuições, geográfica e institucional, se poderá exercer também no sentido da descentralização por serviço, de acôrdo com a conveniência pública. Esta competência decorre da Constituição federal ao lhes outorgar poderes de autogovêrno. As balizas a observar são as derivadas do sistema legislativo que contempla gradações hierárquicas como sejam, a Constituição e as leis federais, a Constituição e as leis estaduais.7 Abaixo destas é que se encontram as leis ou resoluções das Câmaras Legislativas municipais.
Assim, a criação de uma autarquia local deveria subordinar-se ao império da escala estabelecida, obedecendo às normas federais e estaduais, de grau superior.
18. Como os serviços centralizados não gozam de personalidade própria, é pacífico que, respeitados os limites territoriais e a esfera de sua competência administrativa, a entidade local pode dar-lhes a feição que julgar conveniente.
19. A descentralização por serviço reclama, porém, a atribuição de personalidade jurídica e de capacidade processual ao órgão que se propõe a executá-la. Sem êstes atributos a sua ação continuaria a sofrer dos mesmos entraves e restrições próprios das entidades centralizadas. Não poderia praticar atos jurídicos, como sujeito de direitos e obrigações, nem pleitear em juízo para fazer valê-los.
20. Mas, criada a autarquia, por ato legislativo local, poderá ela ser dotada de personalidade jurídica e de capacidade processual como se faz mister? Surge, a propósito, uma objeção. Os textos do direito substantivo e adjetivo, emanados da União, ao enumerarem as pessoas jurídicas de direito público e ao cuidarem de sua capacidade processual, só contemplam as entidades tradicionais, isto é, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e os Territórios (Cód. Civil, art. 14; Cód. de Proc. Civil, art. 87). Não sendo permitido aos Estados e Municípios ampliar esta relação, os entes por êles criados ficariam privados daqueles atributos essenciais.
21. Em trabalho recente, FRANCISCO MARTINS DE ALMEIDA8 impugnou formalmente a competência estadual e municipal para criar autarquias. Reconhece que elas são “parcelas da administração pública, com personalidade jurídica e economia própria, e se enquadram na categoria de pessoas de direito público interno”. Admite que a enumeração do Cód. Civil foi ampliada pela legislação federal, com a criação de novas entes públicos. Mas os textos locais não poderiam ter esta virtude, porque de hierarquia inferior, conclui o mesmo autor.
A afirmação de que o art. 14 do Código Civil não esgotou a enumeração das pessoas jurídicas de direito público interno parece hoje pacífica. Assim doutrinou FRANCISCO CAMPOS, em eruditos pareceres elaborados em 1937.9 TITO PRATES DA FONSECA, no trabalho citado, e MANUEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO, em monografia, editada em 1939, aceitaram essa conclusão.10 TEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCÂNTI, no seu “Tratado de Direito Administrativo”, sustenta a mesma tese.11 Há também expressivas decisões judiciais no mesmo sentido.12
22. O dec.-lei federal nº 6.016, de 22 de novembro de 1943, considerou autarquia “o serviço estadual descentralizado com personalidade jurídica de direito público, explícita ou implìcitamente reconhecida por lei”. Se bem que o texto cuide especialmente da imunidade tributária, a definição nela contida tem caráter genérico e é rica de conseqüências, principalmente se levarmos em conta a erudita justificação que o precedeu, relatada por C. A. LÚCIO BITTENCOURT.13
23. A personalidade jurídica de direito público das autarquias, reconhece a lei, pode ser explícita e implícita. Ficou, assim, aberta uma brecha no art. 14 do Cód. Civil.
A indagação de CARLOS DA ROCHA GUIMARÃES sôbre o caráter público da personalidade das autarquias, apesar de alicerçada em interessantes argumentos, não tem mais razão de ser.14
24. A criação das pessoas de direito público escapa, porém: à previsão do direito privado, civil ou comercial. É matéria que envolve o exercício de atribuições de natureza política e administrativa. A enumeração feita no Cód. Civil é meramente exemplificativa. A União e os Estados, nela relacionados, surgiram com a Constituição federal; os Municípios nascem por um processo regulado nas Constituições e leis estaduais. O Cód. Civil não cuida da criação, quer de uns, quer de outros. Como exigir-se que a nascimento de outras pessoas jurídicas de direito público fôsse disciplinada pela lei civil?
25. Dir-se-á que a descentralização geográfica, como a criação de novos Estados da Federação, ou a multiplicação de Municípios, é a única possível, porque prevista nos textos constitucionais da União e dos Estados e pelo próprio art. 14 do Cód. Civil.
Mas a verdade é que a descentralização por serviço, sendo matéria ìntimamente ligada ao funcionamento das administrações locais, não pode ser tolhida pela lei civil. Ela está autorizada na Constituição federal, quando assegura amplos poderes aos Estados e Municípios para a solução dos seus problemas administrativos. Não estão êles sujeitos à lei civil quando criam órgãos da administração centralizada; também não deverão ficar sujeitos à sua disciplina quando resolvem descentralizar os seus serviços.
26. Está, aliás, escrito no art. 1° do Cód. Civil que êle “regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”.
Se, por conceituação doutrinária e definição legal, a autarquia gira na órbita das relações do direito público, não me parece lícito fique cingida às prescrições de um Código que se destina à regência de relações de natureza privada.
É no exercício de uma competência de direito público assegurada na Constituição federal, como observou ALFREDO DE ALMEIDA PAIVA, a propósito do assunto ora em discussão, que os Estados e Municípios organizam os seus serviços sob a forma autônoma.15
27. Admitida a criação das autarquias, por fôrça da Lei Maior há de se aceitar, como decorrência necessária, o reconhecimento da sua personalidade jurídica e capacidade processual.
De fato, não seria autônoma a entidade que não pudesse contrair obrigações, nem demandar em juízo o seu reconhecimento. Teria, apenas, uma aparência de personalidade, se os seus atos, para produzirem efeitos jurídicos, necessitassem da intervenção dos órgãos centralizados.
JOSÉ MARTINS RODRIGUES16 examinou também a questão e concluiu pela personalidade jurídica das autarquias estaduais, valendo-se da opinião de TEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCÂNTI em trabalho mais recente.17
28. A lei civil não poderá impedir que os Estados multipliquem o número de seus Municípios, nem que operem, ao lado da descentralização tradicional, outra modalidade, por forma tècnicamente aconselhável: E, uma vez criado o Município, tem êste competência para realizar as suas tarefas, mediante departamentos centralizados ou órgãos autárquicos, assim como por intermédio de sociedades de economia mista, emprêsas concessionárias, ou fundações, usando, ora os processos do direito público, ora os do privado, conforme o tipo preferido do agente.
29. A personalidade jurídica, bem como a capacidade, decorrem, automaticamente, da liberdade de agir, da autonomia de vontade que alei outorga à sua nova criação. Êstes atributos são extrínsecos. Criada por quem pode fazê-lo, a pessoa jurídica passa a gozar dêles, assim como a pessoa natural, desde a concepção, fica sob a proteção do direito, a qual se vai alargando, à medida que adquire capacidade de autodeterminação.
V A lei civil e a descentralização por serviço
30. As dúvidas suscitadas, entre nós, em tôrno da personalidade jurídica das autarquias locais não encontram eco na organização federativa norte-americana, porque ali os Estados legislam sôbre o direito substantivo e o processual. Na França, na Itália e em outros países europeus, onde vigora o regime unitário, tanto a descentralização geográfica, como a inspirada na natureza do serviço, se operam por via da mesma fonte legislativa. Não tem, por êste motivo, nos aludidos países, êste aspecto do problema merecido a atenção dos publicistas.
VI. Autarquias criadas pelos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso e Rio Grande do Norte.
31. As autarquias federais são de variado tipo. Temos as dedicadas a atividades educacionais e culturais, como as universidades; as que exploram serviços industriais, como estradas-de-ferro (Estrada-de-Ferro Central do Brasil, Estrada-de-Ferro Noroeste do Brasil, Rêde de Viação Paraná-Santa Catarina); as emprêsas de transportes marítimo e fluvial (Lóide Brasileiro, Serviço de Navegação da Amazônia, Serviço de Navegação da Bacia do Prata); o Departamento Nacional de Estradas, de Rodagem, a Fundação Brasil-Central, a Administração do Pôrto do Rio de Janeiro; as de fiscalização profissional, como os Conselhos de Contabilidade, de Economistas, de Engenharia e de Medicina e a Ordem dos Advogados; as de previdência social, como as Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensões; as reguladoras da economia, como os Institutos do Açúcar e do Álcool, do Mate, do Pinho e do Sal; as Caixas Econômicas; as de construção de casas dos Ministérios da Guerra e da Marinha; a Comissão de Marinha Mercante; a Fundação da Casa Popular; o Serviço de Alimentação e Previdência Social; a Comissão Executiva dos Produtos da Mandioca; a Caixa de Mobilização Bancária; o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e o de Crédito Cooperativo; há outras, cuja enumeração se pode encontrar no “Indicador da Organização Administrativa Federal”, publicado anualmente pelo Departamento Administrativo do Serviço Público.18
32. Mas, sendo o objetivo dêste trabalho focalizar as autarquias estaduais e municipais, procurei obter, através do Instituto de Direito Público e Ciência Política, uma relação delas.
A colheita não foi das mais proveitosas., porque a maioria dos Estados e Municípios não atende ao apêlo do Instituto. O material recolhido oferece, entretanto, oportunidade para algumas considerações.
É justamente nos Estados de maior progresso que as autarquias estão proliferando.
VII
33. No Estado de São Paulo tivemos, em 1924, uma autarquia “perfeitamente caracterizada”, na expressão do TITO PRATES DA FONSECA. Foi o Instituto Paulista de Defesa Permanente do Café, criado em 1924, ao qual foi conferida personalidade jurídica, posteriormente retirada.19
A “Guarda Noturna” da capital foi erigida em autarquia estadual, em 1934. Também a cidade de Campinas teve a sua “Guarda Noturna”, com a mesma feição autárquica, criada pelo govêrno do Estado em 1945.
O Instituto de Previdência do Estado foi dotado de personalidade jurídica própria em 1939.
O Hospital das Clínicas é outra entidade com personalidade própria, criada em 1943, pelo govêrno estadual.
A Universidade de São Paulo foi definida como autarquia estadual em 1944. Na mesma época teve igual caracterização o Instituto de Pesquisas Tecnológicas.
O Departamento de Estradas de Rodagem é outra parcela da administração autônoma reorganizado em 1946.
A Caixa Estadual de Casas para o Povo é nutra autarquia estadual, criada por lei baixada em 1949.
A Caixa Econômica do Estado de São Paulo teve sua situação definida como entidade autárquica por lei de 1951.
O Departamento de Águas e Energia Elétrica é também uma autarquia, com personalidade jurídica própria, nos têrmos de lei promulgada em 1951.
O Fundo de Amparo ao Menor foi da mesma forma criado, como autarquia, em 1951.
O Departamento de Assistência Médica, do Instituto de Previdência do Estado, por uma lei de 1952, foi erigido em pessoa, jurídica autárquica.
Finalmente, par lei baixada em 1951, criou-se, com personalidade jurídica, capacidade processual e patrimônio próprio, a autarquia denominada “Comissão do IV Centenária da Cidade de São Paulo”. Ela é temporária, porque deverá cessar as suas atividades 180 dias após o encerramento oficial das comemorações daquela efeméride.
Existem, ainda, no Estado de São Paulo, leis estabelecendo medidas de caráter financeiro e de tutela das entidades autárquicas (lei nº 2.844, de 1937, e decreto-lei nº 14.339, de 1944) e bem assim concedendo-lhes imunidade fiscal (decreto-lei n° 1.4.788, de 1945).
34. No Estado do Rio Grande do Sul temos as seguintes autarquias:
A Comissão Estadual de Energia Elétrica., criada por lei de 1952, destinada a produzir, transformar, transmitir, distribuir e vender eletricidade, planejar e construir usinas hidro e termelétricas e exercer atividades relacionadas com êste objetivo principal; o Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais, criada por lei de 1951, para o fim de planejar, executar e fiscalizar todos os serviços concernentes à construção, melhoramento, conservação dos portos e das vias fluviais e lacustres do Estado; o Serviço de Loterias do Estado, organizado por decreto-lei de 1947; o Departamento Autônomo de Carvão Mineral, criado por decreto-lei de 1947; o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, reorganizado por um decreto-lei de 1947; o Departamento Estadual de Abastecimento de Leite, criada por decreto-lei de 1947; o Instituto Rio-Grandense do Arroz, regido por um decreto-lei de 1947; o Instituto Tecnológico, criado por um decreto-lei estadual de 1946, destinado a pesquisas de caráter experimental e semi-industrial que possam interessar às indústrias e às construções, e realizar estudos e ensaios neste setor, desempenhar a função de laboratório estadual e se incumbir de outras atividades afins; o Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes, que obedece às normas de um decreto-lei de 1939; o Instituto de Previdência do Estado, organizado por lei de 1931.
No Estado do Rio de Janeiro existem as seguintes autarquias: o Departamento de Estradas de Rodagem, que nasceu com a lei n° 1.675, de 1946; a Comissão de Águas e Esgotos, segundo a lei n° 1.267, de 1951; os Serviços de Viação de Niterói e São Gonçalo, nos têrmos da lei n° 1.241, de 1951; a Departamento de Assistência Econômica à Lavoura, criado pela lei número 1.396, de 1951; o Instituto de Previdência Social, organizado pela lei número 1.449, de 1952; a Comissão Estadual de Energia Elétrica, conforme a lei nº 1.681.
35. No Estado da Bahia existem seguintes órgãos autárquicos: o Instituto do Cacau, cuja origem data de 1931 e que foi reestruturado por uma lei de 1952; a Imprensa Oficial, erigida em serviço industrial autônomo, conforme lei de 1943; o Instituto do Fomento Econômico da Bahia, criado por uma lei de 1936: O Instituto Bahiano do Fumo, organizado por lei de 1935.
36. No Estado da Paraíba, são organismos autárquicos: a Repartição dos Serviços Elétricos, reorganizado por lei de
1952; a Administração do Pôrto de Cabedelo, reorganizada em 1947; o Montepio do Estado, que se rege por um texto de 1949.
37. No Estado de Minas Gerais vamos encontrar, com a mesma organização autárquica: o Departamento de Águas e Energia Elétrica, reorganizado por um decreto-lei de 1946; o Departamento de Estradas de Rodagem, reorganizado por decreto-lei de 1946; a Caixa de Habitação Rural e da Gleba Própria, criada por lei de 1950, com o objetivo de proporcionar a todos aquêles que vivem de salários ou de pequenos rendimentos a aquisição de pequenas glebas rurais, bem como a aquisição, reforma ou construção de moradia própria na zona rural.
38. No Estado de Mato Grosso foi criada por lei de 1952, como entidade autárquica, a Emprêsa de Fôrça, Luz e Água.
39. No Rio Grande do Norte temos o Departamento de Saneamento do Estado, reunindo os serviços de abastecimento de água e saneamento das cidades de Natal, Mossoró e Caicó, conforme lei de 1952.
40. No Distrito Federal foi criada, em 1948, uma autarquia para cuidar da Administração dos Estádios Municipais.
VIII Sociedades de economia mista criadas pelos Estados
41. A par dêstes organismos, é interessante mencionar que os serviços de transportes coletivos da capital de São Paulo competem a uma sociedade de economia mista, denominada “Companhia Municipal de Transportes Coletivos”, organizada pela Prefeitura, que lhe outorgou a necessária concessão, conforme leis estaduais baixadas em 1946.
42. Como sociedade de economia mista foi recentemente organizada, no Rio Grande do Sul, a “Companhia Rio-Grandense Reguladora de Economia” (Campoal), com amplos objetivos de natureza comercial e industrial, nos têrmos de uma lei de 1952.
43. Em Minas Gerais também a preferência pelas sociedades dêste tipo começa a acentuar-se. Uma lei de 1949 autorizou o Executivo a organizar sociedades de economia mista para construção e exploração de usinas hidrelétricas e outro texto, de 1951, deu-lhe iguais atribuições com relação a matadouros e frigoríficos.
44. Esta forma de intervenção do Estado na ordem econômica, por meio de entidades de cunho privado, tende a disputar com as autarquias uma larga parcela de atuação, como, em trabalho recente acentuou o Prof. BILAC PINTO.20
45. Mas, voltemos ao tema que ocupa a nossa atenção.
Vários assuntos de ordem legal e administrativa surgem com as autarquias estaduais e municipais.
46. Assim, imitando o govêrno federal, que submeteu, ao Tribunal de Contas, as contas dos administradores das autarquias (Constituição, art. 77, n° II), vários Estados dispuseram da mesma forma.
O contrôle das autarquias se limita, porém, a prestação de contas. É assunto mais amplo e complexo, sôbre o qual discorreu recentemente, com conhecimento de causa, A. NOGUEIRA SÁ.21 Em São Paulo a matéria acaba de ser objeto de largo estudo, concretizado em projeto de lei publicado em 1952.
47. O govêrno federal cuida também do assunto no projeto, que está elaborando, com a colaboração dos partidos políticos, sôbre a Reforma Administrativa.
48. Em verdade, pelo fato de descentralizar o serviço, não pode a Estado desinteressar-se de seu funcionamento. Mas a sua tutela, quanto à sua forma de administração, regime de bens e estatuto de pessoal, deve guardar distância das normas adotadas nos órgãos centralizados. Esta diferenciação não poderá, entretanto, ir ao ponto de confundir a autarquia com as emprêsas privadas. Êste equilíbrio não é fácil de encontrar-se.22 Assim, a par dos textos constitucionais, os órgãos autárquicos são freqüentemente submetidos a outros de ordem geral ou especial, destinados à administração centralizada.
_________
Notas:
* N. da R.: Conferência pronunciada, no Instituto de Direito Público e Ciência Política, em 31 de agôsto de 1953.
1 VÍTOR NUNES LEAL, “Alguns problemas municipais em face da Constituição”, in “REVISTA FORENSE”, vol. 147, pág. 9.
2 CHARLES EISENMANN, “Centralisation et Décentralisation”, 1948, pág. 23; HANS KELSEN, “Formas da Organização Estatal – Centralização e Descentralização”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 4, pág. 48; OSCAR SARAIVA, “Personalidade jurídica dos entes autárquicos” e “As autarquias no Direito Público Brasileiro”, no “Boletim do Ministério do Trabalho” ns. 12, de 1935, e 76, de 1940; idem, “REVISTA FORENSE”, vols. 84, pág. 771, e 100, pág. 233; RUI DE SOUSA, “Serviços do Estado e seu regime jurídico”, in “Rev. de Direito Administrativo”, volume 28, pág. 10.
3 LÉON MICHOUD e LOUIS TROTABAS, “La Théorie de la Personalité Morale”, 1932, 1ª parte, págs. 331 e segs.
4 LÉON MICHOUD, ob. cit., pág. 375.
5 TITO PRATES, “Autarquias Administrativas”, 1935, págs. 38 e 39; idem, “Lições de Direito Administrativo”, 1943, pág. 83.
6 Parecer nº 179-T, de 17-9-52, que emito como consultor geral da República, a propósito do S. A. M. D. U., publicado na “Rev. do Serviço Público”, fevereiro de 1953, pág, 89; AGAMMENON MAGALHÃES, Exposição de motivos, como ministro da Justiça, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 2, pág. 802; A. GONÇALVES DE OLIVEIRA, parecer como consultor jurídico do D. A. S. P., in revista cit., vol. 2, pág. 434; decisão do Tribunal de Contas da Prefeitura do Distrito Federal, in revista cit., vol. 22, página 264.
7 VÍTOR NUNES LEAL, “Leis Federais e Leis Estaduais”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 1, pág. 765; A. GONÇALVES DE OLIVEIRA, “Hierarquia das Leis e Competência Legislativa da União e dos Estados”, in “Rev. do Serviço Público”, fevereiro de 1945, pág. 85, e “Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores”, vol. 8, pág. 42.
8 FRANCISCO MARTINS DE ALMEIDA, “Os Estados e Municípios não têm competência para criar autarquias”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 29, pág. 487.
9 FRANCISCO CAMPOS, pareceres a propósito do Instituto Mineiro do Café in “REVISTA FORENSE”, vol. 71, pág. 25, e “Rev. de Direto Administrativo”, págs. 263 e 285.
10 MANUEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO, “Autarquias Administrativas”, 1929, pág. 87; idem, parecer, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 25, pág. 387.
11 TEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCÂNTI, “Tratado de Direito Administrativo”, 1913, volume IV, pág. 140.
12 VERCINGETÓRIX DE CASTRO GARMS, “Repertório de Jurisprudência do Código Civil”, 1952, vol. I, págs. 103-106; ac. do Tribunal de Justiça de São Paulo, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 22, pág. 175.
13 “Imunidade Tributária das Autarquias”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 2, página 908.
14 CARLOS DA ROCHA GUIMARÃES, “São as autarquias pessoas de direito público?”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 5, página 77.
15 ALFREDO DE ALMEIDA PAIVA, “Autarquias Estaduais Municipais”, comentário, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 31, página 442.
16 JOSÉ MARTINS RODRIGUES, parecer emitido como consultor jurídico do C. N. A. E. E., in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 33.
17 TEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCÂNTI, “Autarquia”, in “Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro”, vol. 5, pág. 704.
18 Idem, ERIMÁ CARNEIRO, “As autarquias e as sociedades de economia mista no Estado Novo”, 1944.
19 Ob. cit., págs. 41-42.
20 “REVISTA FORENSE”, vol. 146, página 9.
21 “Do Contrôle Administrativo sôbre as Autarquias”, 1952; idem, MIGUEL REALE, “Da Recorribilidade dos Atos Administrativos”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 23, página 25.
22 BYRON T. DE FREITAS, “As Autarquias Estaduais”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 33.
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