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Revista Forense
CLÁSSICOS FORENSE
CONSTITUCIONAL
REVISTA FORENSE
Intervenção Econômica do Estado Moderno
Revista Forense
25/10/2022
REVISTA FORENSE – VOLUME 155
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413
FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO
FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,
Abreviaturas e siglas usadas
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SUMÁRIO REVISTA FORENSE – VOLUME 155
CRÔNICA
- Intervenção Econômica do Estado Moderno
DOUTRINA
- A organização e o funcionamento do Poder Judiciário, M. Seabra Fagundes
- Autarquias estaduais e municipais, Carlos Medeiros Silva
- Normas gerais de direito financeiro, Rubens Gomes De Sousa
- As transformações do Direito de família, Lino De Morais Leme
- Nulidades no Direito contratual do Trabalho, Orlando Gomes
- Pressupostos processuais, Ademar Raimundo Da Silva
- A evolução do desvio de poder na jurisprudência administrativa, Roger Vidal
PARECERES
- Mandado de Segurança Contra a Lei em Tese – Ato Normativo – Requisição de Aguardente pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, Francisco Campos
- Fideicomisso e Usufruto – Distinção, Carlos Medeiros Silva
- Impôstos – Arrecadação Estadual – Excesso a ser entregue aos Municípios, Aliomar Baleeiro
- Impôsto de Renda – Pessoa Jurídica Domiciliada no Estrangeiro – Convenção de “Royalties”, Rui Barbosa Nogueira
- Contrato Administrativo – Revisão de Preço – Teoria da Imprevisão, Caio Tácito
- Contrato por Correspondência com Firma Estrangeira – Nota Promissória – Requisitos Essenciais, Afrânio de Carvalho
- Advogado – Retirada de Autos de Cartório – Processos Criminais, Evandro Lins e Silva
NOTAS E COMENTÁRIOS
- A Conclusão de Atos Internacionais no Brasil, Hildebrando Accioly
- O Federalismo e a Universidade Regional, Orlando M. Carvalho
- Inelegibilidade por Convicção Política, Osni Duarte Pereira
- Embargos do Executado, Martins de Andrade
- Questão de Fato, Questão de Direito, João de Oliveira Filho
- Fantasia e Realidade Constitucional, Alcino Pinto Falcão
- Da Composição da Firma Individual, Justino de Vasconcelos
- A Indivisibilidade da Herança, Gastão Grossé Saraiva
- O Novo Consultor Geral da República, A. Gonçalves de Oliveira
- Desembargador João Maria Furtado, João Maria Furtado
JURISPRUDÊNCIA
LEIA:
SUMÁRIO: O Estado e o uso legal da fôrça. Relações do Estado com a estrutura social. Defesa da ordem. A intervenção na ordem econômica em face das Constituições brasileiras. Política protecionista. Intervenção para fortalecer a iniciativa privada. Sistema capitalista. Crise do mundo atual. O intervencionismo moderno. Os artigos 145, 146 e 147 da Constituição. A preocupação da Justiça social. Necessidade de pensamento político organizado. Conclusão.
Sobre o autor
Hermes Lima, professor da Faculdade Nacional de Direito.
CRÔNICA
Intervenção Econômica do Estado Moderno
* Pretendo iniciar esta palestra fazendo uma observação que me parece capital para que possamos compreender a variedade de funções que històricamente têm cabido ao Estado.
Realmente, se percorrermos as páginas da História, veremos que o Estado tem feito de tudo. O Estado ora tem sido intervencionista, ora tem sido anti-intervencionista; todos os fins, mesmo os fins morais, têm cabido na função reguladora e compulsória do Estado. Encontramos, através de sua evolução, a maior variedade de funções, de tal maneira que surge naturalmente a pergunta: Que é que caracteriza o Estado? São os fins que o Estado colima que o caracterizam? De modo nenhum.
O Estado e o uso legal da fôrça
O que caracteriza o Estado é o monopólio do uso da fôrça. O Estado é aquela instituição que, na estrutura social, tem o uso exclusivo da fôrça; é a única instituição que pode legalmente usar da fôrça, usar da autoridade, e, portanto, em conseqüência, compelir as pessoas a procederem desta ou daquela maneira. Por conseguinte, a palavra fôrça não é uma palavra estranha ao Estado. A palavra fôrça exprime exatamente o tecido principal de que é formada a Instituição chamada Estado. A palavra fôrça é a companheira inseparável do Estado. Não há Estado sem fôrça, e é realmente uma visão muito primária dos fenômenos políticos confundir, por exemplo, democracia com um regime no qual o uso da fôrça não se aplica no desenvolvimento normal das relações estatais.
Evidentemente, o uso dessa fôrça pode apresentar diversas modalidades. Pode ser mais legal ou mais arbitrário. Pode estar sujeito a um condicionamento fornecido pelos critérios legais, que se acham na Constituição, nos diplomas normais votados pelo Poder Executivo; e pode estar condicionado ao arbítrio de uma ditadura, de um govêrno de fato. Mas, em qualquer situação, o que não é possível é prescindir do elemento fôrça na composição do Estado. E é o elemento fôrça que o caracteriza; fôrça e monopólio do uso legal desta fôrça.
Representa sem dúvida uma grande vantagem social que a vida do Estado se caracterize exatamente pelo princípio de que nós não podemos fazer justiça pelas nossas próprias mãos, não podemos, por nós próprios, regular as nossas questões de uns contra os outros. Há todo um aparelhamento legal que recebe do Estado a fôrça necessária para regular a existência dos homens que convivem, para regular as relações sociais que entre êles surjam e se desenvolvam.
Esta observação parece-me fundamental para acostumar qualquer pensamento, que se debruce sôbre o problema político do Estado, a levar em consideração que não é possível imaginar um Estado sem fôrça. Que, ao contrário, a fôrça é exatamente o elemento característico do Estado, porque êle tem o monopólio legal do seu uso. Só êle pode, legalmente, aplicar a fôrça, e não os indivíduos tomados isoladamente.
Relações do Estado com a estrutura social
Feita esta observação, entramos no problema do Estado em relação com a estrutura social e a estrutura econômica.
Em primeiro lugar, o Estado não pode nunca ser indiferente à estrutura econômica do meio em que surja. O Estado é, por definição, um organismo ligado a essa estrutura, cujos interêsses êle sustenta, protege e defende.
Não há nenhum Estado alheio aos interêsses econômicos da sociedade. Isso seria inimaginável, pois que os interêsses econômicos da sociedade compõem uma das partes, senão a parte principal, da ordem humana, da ordem social, e a manutenção dessa ordem, o seu equilíbrio, constituem exatamente funções do Estado, que êle exerce através do uso legal da fôrça de que se acha investido.
Não há nenhum Estado indiferente à estrutura econômica. Todo Estado tem o sentido de protetor da ordem econômica, da qual êle é um instrumento, um soldado, uma espécie de Cavaleiro Andante.
Defesa da ordem
O Estado existe para defender a ordem. Mas que é a ordem? A ordem é exatamente a composição dos interêsses econômicos, materiais e morais, que formam o ambiente de convivência dentro do qual se estabelece o equilíbrio das relações recíprocas entre os homens. Isso é que é a ordem. A ordem não é uma coisa imaginária, uma coisa fantástica; não é uma coisa que esteja na cabeça de cada um. É esquema objetivo da vida, é um sistema de vida; é um esquema de organização. A ordem de cada Estado não é produto de elucubração de gabinete; não é um valor teórico. A ordem é alguma coisa de material, de concreto. E é esta ordem material e concreta que o Estado é chamado a defender, e não uma ordem imaginária, ou que se encontre no espírito de cada um. O Estado não tem nada com o que se encontre, por exemplo, em um livro; nem com o decorrente de um esquema especulativo de vida, de um modêlo de organização proposto por filósofos, ou sociólogos, como matéria de discussão intelectual. O Estado só tem a ver com o que existe, e a isso não pode ser indiferente, como é óbvio, porque é o que existe que êle é chamado a proteger e defender.
O Estado surge exatamente para manter o equilíbrio da ordem existente. E a ordem existente não é uma invenção arbitrária do Estado. Decorre do modo de produção da sociedade. É êsse modo de produção que condiciona a posição do Estado em face da vida material da sociedade.
Devo esclarecer que por modo de produção se entendem as relações que se estabelecem entre os membros da sociedade em virtude da técnica existente de produção dos meios de vida.
Tivemos Estado na Grécia e em Roma; tivemos Estado na Idade Média e na Renascença; temos Estado no sistema atual.
Sempre houve Estado, e êsse Estado protegia ordens sociais diferentes. A ordem social, na Grécia e em Roma, eram ordens inteiramente diversas da ordem que existe hoje, e que o Estado assegura. É que o Estado atua sempre como protetor da ordem; existe exatamente como instrumento para assegurar seu pleno funcionamento.
De onde vem essa ordem? Quem a instituiu?
É problema interessante, mas me tomaria demasiado tempo e não me permitiria desenvolver a parte essencial da palestra de hoje.
Em todo o caso, repetirei apenas, como indicação para estudo, que a ordem não resulta da fantasia dos homens. Não é esquema que alguns políticos, ou alguns governantes, tenham extraído do fundo de uma gaveta, onde permanecia há muito tempo, para inventar um estilo de vida ou modo de funcionamento da sociedade. A ordem não é criada fantasiosamente; decorre das relações de produção de cada sociedade.
A ordem tem uma gênese, tem uma história social, e é uma história muito clara, muito precisa; e algo dessa história veremos no decorrer do que direi em seguida.
A intervenção na ordem econômica em face das Constituições brasileiras
O problema da intervenção no domínio econômico só aparece nas Constituições brasileiras a partir de 1934.
Temos cinco Constituições ao longo do período da nossa vida independente. Pois bem, apenas em três dessas Constituições aparece formulado o problema da intervenção do Estado na ordem econômica.
Ocorre-nos, então, perguntar: Será que, antes de 1934, o Estado, no Brasil, não intervinha na ordem econômica, que dela não chegava a tomar conhecimento? Quem pensasse assim estaria, na verdade, fora da realidade, porque bastaria ver que, na vigência da Constituição de 1891, houve três valorizações do café, a de 1906, a de 1914-1918 e a de 1924, que depois se tornou permanente, através do Instituto do Café.
O que foram as valorizações senão a intervenção do Estado na vida econômica?
O problema, que se apresentava, era o problema simples e clássico das economias capitalistas. Havia superabundância de produção do café. Os mercados não comportavam aquela produção, e o Estado foi então chamado a intervir, para assegurar preços compensadores. Nessa política êle chegou ao exagêro de queimar 70 milhões de sacas de café para assegurar preços compensadores aos produtores.
Em 1902, quando surgiu no horizonte a crise da superprodução do café, o Estado de São Paulo votou, através do seu Poder Legislativo, uma lei proibindo a plantação do café. Votou, depois, outra lei cobrando um impôsto proibitivo para novas plantações de café.
Vimos o Estado intervindo na ordem econômica, intervenção típica, e não havia nada na Constituição que dissesse ao Estado que tinha de intervir na ordem econômica. Mas o Estado não pode ser indiferente à ordem econômica, que está chamado a sustentar. O Estado não existe senão para sustentar a ordem econômica vigorante e, quando tiver de sustentar outra ordem econômica, também outra terá de ser a forma do Estado.
Política protecionista
E o protecionismo? Que é o protecionismo, senão uma intervenção na ordem econômica? Sabem muito bem o que é protecionismo. É sistema de tarifas altas, para incidir sôbre a importação de produtos que o Estado deseja sejam fabricados dentro do seu território.
Quando um Estado quer criar uma indústria própria, nacional, êle então impõe tarifa alfandegária protecionista, de modo a não permitir a concorrência do produto similar do mercado estrangeiro.
Ora, a política protecionista, no Brasil, é política tradicional e certa e, afora os exageros e erros, a única política que nos permitiria a possibilidade de criar um parque nacional, pois não nos seria possível competir com os velhos e desenvolvidos parques estrangeiros, que poderiam levar à ruína as fábricas, nacionais, de produtos similares.
Se há interêsse nacional pela independência econômica, pela segurança militar; se há interêsse em todos êsses setores, que necessitam da indústria nacional; e se o Estado é, como o Brasil, país que chegou relativamente tarde, no tempo, ao esquema de desenvolvimento técnico-industrial, é evidente que êle não pode senão lançar mão do protecionismo.
Mas isso é intervenção no domínio econômico; não é outra coisa senão o Estado colocar a sua fôrça, sua decisão, a favor dos interêsses econômicos predominantes na ordem que êle assegura, ou então predominantes no desenvolvimento nacional do país a que pertence.
Mas êsse intervencionismo do Estado antigo, do Estado, no nosso caso, anterior à Constituição de 1934, êsse intervencionismo é diferente do intervencionismo moderno, do intervencionismo posterior a 1934, e veremos em que consiste essa diferença.
Intervenção para fortalecer a iniciativa privada
O Estado antigo, o Estado da Constituição de 1891, o Estado da Constituição imperial, êsse Estado tomava medidas, elaborava providências de ordem econômica, mas com o fito de assegurar à iniciativa privada, aos negócios privados, uma atmosfera, um clima propício ao seu desenvolvimento. E o Estado agia dêste modo, porque raciocinava: se eu garanto condições para que se desenvolva uma indústria nacional, dentro do Brasil, com isso o Tesouro Nacional vai ganhar, porque as rendas aumentarão. Então, lançava a tarifa protecionista. As indústrias, à sombra dessa tarifa, podiam surgir e prosperar, e os impostos aumentavam; e, nessas condições, o Estado, dentro daquele esquema econômico e dentro daquela filosofia política, intervinha para favorecer a iniciativa privada. Êle intervinha para criar condições propícias aos negócios particulares, porque raciocinava que, com o aumento e o desenvolvimento dos negócios particulares, o Estado acabava também ganhando, pelo aumento das rendas oriundas do maior volume de mercadorias que pagavam impostos.
O Estado, portanto, nesse intervencionismo, não impunha nenhuma condição; não intervinha pròpriamente na natureza do negócio; não limitava a iniciativa privada. O que queria era criar condições para que a iniciativa privada pudesse prosperar. Êsse é que era o fim daquele intervencionismo, do intervencionismo da Constituição de 1891, do intervencionismo das valorizações do café (as chamadas defesas do café), do intervencionismo das concessões de juros às emprêsas que construíssem estradas-de-ferro – isso vem desde o Império – pois quando uma emprêsa queria construir uma estrada-de-ferro, o govêrno lhe dava a concessão da região onde ela deveria ser construída, garantindo-lhe os juros pelo capital empregado:
Assim se fizeram muitas das nossas estradas-de-ferro, assim se construíram muitos de nossos portos, como o do Rio de Janeiro, o da Bahia, o de Recife, que foram inicialmente construídos em tais bases. O pôrto de Santos representa uma exceção, porque a riqueza do café era bastante sólida para que os produtores pudessem fazer face à construção dêsse pôrto. Nos outros Estados, porém, os portos e estradas-de-ferro foram construídos naquele regime.
Conta-se, mesmo, a respeito das estradas-de-ferro, que, sendo estas construídas à base de uma garantia de juros pelo capital empregado, muitas emprêsas fizeram traçados que não eram os mais econômicos, traçados de curvas caprichosas e vadias que se iam prolongando e estendendo por aí a fora quilômetros de trilhos, porque não havia realmente maior interêsse em executar os traçados mais racionais, já que, para fazer face às despesas, o Estado garantia os juros do capital empregado.
Êste, portanto, era o tipo do intervencionismo característico do Estado liberal, do Estado da Constituição de 1891.
Mas vem a Grande Guerra de 1914, que é o fim do século XIX. Podemos dizer que êsse século termina exatamente quando começa a primeira Grande Guerra, e 1914 é bem o fim do século XIX.
Sistema capitalista
Logo após 1918, o sistema capitalista de produção entra em crise, não se mostra mais capaz de superar as suas próprias dificuldades, e isto justamente porque o aparelhamento técnico-industrial lhe aumentou enormemente a capacidade de produção. Todos sabemos que o sistema capitalista se caracteriza pela perfeita subordinação ê, produção, a um esquema de lucros. O capitalista só produz até onde a produção fôr interessante para seu lucro: quando a produção não fôr interessante para o seu lucro, êle, lògicamente, perde o interêsse em desenvolver a produção.
Não se duvida que o sistema capitalista haja representado um dos pontos culminantes do desenvolvimento humano. Êsse sistema trouxe uma soma de progresso, de melhoramentos extraordinários para a humanidade. O sistema capitalista representa uma das etapas positivas do progresso material e moral da humanidade.
Mas todo sistema tem o seu momento positivo e o seu momento negativo. Todo sistema é sistema em ascensão, quando produz resultados positivos, e em declínio, quando produz resultados negativos. O que aconteceu com o sistema capitalista foi que, aparelhado para produzir de uma maneira extraordinária, quando se viu compelido a limitar essa produção, entrou em crise. Não porque a população não tivesse necessidade de maior produção, mas exatamente porque, sendo a produção capitalista para o mercado e não para a comunidade, é alheia a qualquer idéia de serviço social, tem de estar subordinada ao lucro, ao benefício, ao dividendo.
E, assim, vemos que hoje o sistema capitalista pode viver, mas limitando sua própria capacidade de produzir, de prestar serviço à comunidade social. Por outro lado, essa limitação de prestar serviço à comunidade social, em virtude do aumento da população e desenvolvimento da indústria em todos os países, vem produzindo uma série de nacionalismo econômicos, já que cada Estado deseja comprar o mínimo possível e vender mais possível. O antigo mercado colonial e semicolonial, que estava, no século XIX, à disposição de algumas áreas metropolitanas, onde a produção capitalista se fazia no seu ritmo técnico-industrial, desapareceu; e, hoje, vemos que as nações não podem produzir aquilo de que são capazes, porque não têm mercado suficiente para absorver a produção.
Esta observação deve ser contrastada com o fato de que dois terços da humanidade vivem na miséria. Dois terços da humanidade vivem na miséria, ao passo que o sistema capitalista é obrigado a raciocinar na base de que a sua produção deve ser limitada ao esquema de lucro e dividendo a que êle está subordinado.
Se não houvesse a guerra da Coréia, ninguém pode imaginar quantos milhões de desempregados haveria na Europa e nos Estados Unidos.
Antes da guerra da Coréia, o Luxemburgo, que é um pequeno país cuja única produção é o aço (quase três milhões de toneladas), sendo talvez inferior, em tamanho, ao Distrito Federal, vivia na agonia, às voltas com os desempregados. Hoje, há sòmente dois desempregados no Luxemburgo, que naturalmente obedecem a alguma filosofia original, porque se não trabalham é porque não querem.
Com a guerra da Coréia, o Luxemburgo produz o máximo da sua capacidade de aço; a Bélgica produz o máximo de sua capacidade de aço. Em todo o mundo não há aço que chegue. O programa de armamento é formidável hoje, tanto no Oriente, como no Ocidente. A guerra da Coréia é uma espécie de dique, que se está enchendo de sangue, mas que seria perigoso suprimir porque é com essa guerra que se procura equilibrar, até onde, não se sabe, êste sistema, que se caracteriza pela incapacidade de produzir para a comunidade, em vez de produzir para o mercado.
Crise do mundo atual
Evidentemente, ninguém nega, seja qual fôr sua opinião política, a eficiência de uma crise social no mundo. Essa crise social é uma crise tão profunda, que nem as tribos da África estão isentas dela. A inquietação do mundo é tão profunda, que nem as populações mais remotas lhe são infensas. Presenciei tal fenômeno, há dois anos, na Assembléia das Nações Unidas. Vi representantes de tribos da África que ali estavam reunidos para reclamar contra a opressão; queriam maior liberdade, o direito de viverem sem a sujeição, que já não podem suportar mais. Não há área do mundo isenta dessa inquietação, dessa angústia social formidável, que caracteriza nossa época. Qualquer que seja nossa opinião sôbre essa crise, pouco importa. O que devemos verificar é o fato de que a crise domina a espécie humana. Não há continente, nem região qualquer, que não esteja contaminado.
O intervencionismo moderno
Pois bem, no Brasil, o novo intervencionismo, que começou com a Carta de 34, teve de levar em consideração exatamente a crise social, a crise de produção capitalista, e êsse desejo de maior justiça humana que invade tôdas as almas e aquece todos os corações, em qualquer latitude.
Essa é a diferença entre o intervencionismo moderno e o antigo. O intervencionismo moderno, como está, por exemplo, formulado na Constituição brasileira de 1946, que é, mais ou menos, a maneira pela qual já estava formulado nas Cartas de 1934 e 1937, o intervencionismo moderno da atual Carta é típico dessa inquietação, porque o intervencionismo econômico não quer, evidentemente, acabar com o regime capitalista de produção, baseado na iniciativa privada, baseado na propriedade privada dos meios de produção, mas quer introduzir-lhe maior porção de justiça social.
Sabe-se que meios de produção são a terra, as máquinas e o capital. O sistema capitalista de produção baseia-se na propriedade privada dêsses meios de produção. É exatamente essa a sua característica; a base da sua estruturação é a propriedade privada dos meios de produção.
A nossa Constituição não quer acabar com isso, mas reconhece que essa ordem econômica comporta muitas imperfeições e muitas injustiças que é necessário corrigir.
Eis aí a diferença entre o intervencionismo moderno e o antigo. O antigo não cogitava dessas injustiças, nem.dessas imperfeições de ordem econômica. O novo intervencionismo cogita, e cogita por que? Porque foi obrigado a fazê-lo em face da própria crise que se abre aos pés do Estado, que se está desenvolvendo e não se sabe a que fim poderá chegar.
Os artigos 145, 146 e 147 da Constituição
Diz o art. 145:
“A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano”.
É exatamente isso. Não é possível, diz a Constituição, que a ordem capitalista não comporte uma parcela substancial de maior justiça social.
Um dos instrumentos dessa maior justiça social é exatamente o art. 146 da Constituição, que diz:
“A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade…”
Ora, na Constituição de 1891, como na imperial, não havia nada disso. Não havia texto nenhum atribuindo expressamente ao Estado o poder de intervir. Hoje, êle intervém, e êsse intervencionismo é declarado, é formulado no próprio texto da Constituição. E isso por que? Por causa das novas condições, por causa da crise que se está desenvolvendo aos nossos olhos.
Diz, em continuação, o art. 146:
“A intervenção terá por base o interêsse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição”.
Ora, o primeiro direito fundamental assegurado na Constituição é o da propriedade privada dos meios de produção, porque, se o direito de propriedade se restringisse a assegurar a posse das coisas necessárias ao nosso confôrto, ao desenvolvimento da nossa vida e da de nossa família, evidentemente isso não teria maior significação. Mas o que tem significação aqui é que o direito de propriedade que se assegura é o da propriedade privada dos meios de produção.
É justamente êsse direito de propriedade privada sôbre os meios de produção que o intervencionismo moderno limita.
Como conciliar a consagração solene dêsse direito consignado no art. 141 com as limitações implícitas no art. 145?
É que na Constituição há o art. 147, ao qual não se dá, geralmente, uma ênfase maior, mas que está servindo, a todo momento, para as leis de intervenção que a cada instante se estão votando, inclusive a última, também de intervenção, de que surgiu a COFAP.
O art. 141, em seu § 16, assegura o direito de propriedade, mas o art. 147 estabelece que o uso dessa propriedade será condicionado ao bem-estar social. Diz o art. 147:
“O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social…”
Quer dizer: somos donos de casas, temos casas cuja renda constitui a nossa base econômica. Por que pode o Estado congelar os aluguéis? Por que pode o Estado limitar os aluguéis? Por que, constitucionalmente, pode fazer isso? Por causa do art. 147. Aí é que está a chave do assunto. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. É a distinção clássica entre possuir a propriedade e usar a propriedade.
Essa distinção já existia; não é nova; não é invenção dessa Constituição. Foi designadamente consagrada na encíclica “Quadragésimo Ano”, do papa PIO XI. Trata-se de uma distinção fundamental, cuja aplicação poderá chegar aos resultados mais profundos.
É em face do art. 146 que o Estado pode intervir, proibindo a montagem de usinas de açúcar. Ninguém é livre, hoje, no Brasil, para montar usinas de açúcar. Tem de pedir licença ao Instituto, que pode negar a licença. A livre iniciativa está condicionada pelos arts. 145, 146 e 147 da Constituição.
O art. 147 prossegue:
“… A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.
É o caso da desapropriação, pagando em dinheiro de contado.
Se o Estado tem o direito de dizer como é que se pode usar a propriedade, está claro que isso constitui uma limitação muito importante ao direito de propriedade.
E assim é, na prática, realmente. Aí está a origem dos contratos compulsórios. Hoje em dia, o Estado chega a determinar a maneira de contratar, como acontece na Lei do Inquilinato e em outras atividades, de que ternos exemplo na legislação brasileira.
A preocupação da Justiça social
Já está bem definida a diferença entre os dois intervencionismos. O intervencionismo, agora, é intervencionismo com preocupação de justiça social.
Não vão julgar que isso seja socialismo. Nós, os socialistas, não consideramos isso socialismo; consideramos isso expediente, recurso, que dará um pouco mais de vida ao sistema capitalista, que a nosso ver está condenado a morrer; está, mesmo, morrendo sob nossos olhos.
O que pretendo assinalar é que dentro da Constituição atual há uma margem mínima de progresso social. Mas a questão é que a Constituição não funciona por si mesma. Ela pode ficar numa gaveta, e não produzirá efeito nenhum; pode ficar em cima das mesas dos Ministérios. A Carta Constitucional precisa de alguma coisa para fazê-la funcionar. Precisa de um pensamento organizado; precisa de um pensamento estruturador da vida nacional; precisa de uma política. Não se pode governar o Estado sem política. A idéia de um Estado sem política é um absurdo. A má política pode produzir os maiores desastres para o Estado, mas não podemos, para obstar a êsses desastres, pensar na possibilidade de um Estado sem política. Sem política e sem políticos, nada pode haver, nenhum progresso é possível no plano da vida estrutural.
Já se faz tarde, e quero terminar fazendo uma observação final. O Brasil é, agora, um país que podemos chamar de semidesenvolvido. O nosso país não é país atrasado; é pais que está num progresso material formidável, mas que ainda não atingiu uma organização material, uma organização industrial que o possa equiparar às grandes nações desenvolvidas.
É, portanto, um país no meio do caminho; é um país com recursos enormes, possibilidades imensas. Acho que devemos, porque temos razões para isso, ser otimistas em relação ao desfecho da experiência brasileira. Estou convencido disso. Temos razões para ser otimistas, e essas razões de otimismo ressaltam logo que examinamos o passado do Brasil, as dificuldades vencidas, o trabalho imenso realizado, o domínio dêste vasto território, as dificuldades vencidas, as dificuldades incríveis com que temos lutado até aqui. E isso tudo representa o que poderemos já, sem ênfase nenhuma e sem ufania, chamar a epopéia brasileira.
Já há, verdadeiramente, uma epopéia brasileira, que nos dá motivos objetivos para ser otimistas em relação ao futuro do Brasil, em relação à possibilidade de o país chegar a constituir uma grande potência.
Francamente, acho que há motivos fortes e sólidos para isso. Evidentemente, que, se o pais não tiver cabeça política, direção, pensamento organizado, não chegará lá. Um país não marcha sòzinho; marcha com o pensamento, a vontade e a fôrça dos seus homens.
Evidentemente, é necessário que o país seja liderado, e quem lidera um país é a sua política, o seu pensamento organizado.
Êsse pensamento organizado é necessário, indispensável para que possamos atingir, digamos, no comêço do século vindouro, uma situação verdadeiramente excepcional, que dentro de 15 a 20 anos poderá estar perfeitamente desenhada.
Mas os países semidesenvolvidos ou atrasados, nessas condições, não podem esperar, completamente, da iniciativa privada, o esfôrço indispensável para que esse progresso se realize e essas transformações se consumam.
Num país como o Brasil o Estado tem que ser o líder; líder do progresso, líder da transformação; líder das coisas essenciais, das coisas audaciosas, que não estão ao alcance da iniciativa privada.
Damos, sôbre o assunto, pequeno exemplo: Paulo Afonso! Que iniciativa privada teria interêsse em aplicar seus capitais em Paulo Afonso? Seria demais pedir à iniciativa privada que tivesse interêsse nesse trabalho de execução tão demorada e profunda, que a organização brasileira está exigindo. Que interêsse teria o capital privado em montar Volta Redonda, se poderia ganhar, de imediato, muito mais dinheiro vendendo secos e molhados? Que interêsse teria o capital privado em forçar a mão, como seria o caso? Êle não pode, realmente, fazer face a êsses problemas. Êsses problemas são problemas do Estado, e o Estado, no Brasil, ou é capaz de organizar o país, para que êle conquiste nível superior de progresso, ou então o Brasil será sempre uma fazenda tropical, exportadora de matérias-primas, e em que certos interêsses, mais ou menos desenvolvidos, ganham o suficiente para confundir sua prosperidade com a prosperidade da nação.
Num Estado que não fôsse o Estado brasileiro, o problema, por exemplo, do petróleo não seria resolvido, porque, evidentemente, as companhias produtoras de petróleo já têm bastante que fazer, bastantes jazidas e refinarias, de onde retiram todo o óleo e gasolina de que precisam, e no momento não interessaria a elas, e é justo reconhecer-lhes razão, explorar a área brasileira, que precisa ser investigada e organizada. Que interêsse teriam em montar uma refinaria no Brasil, se podem, perfeitamente, trazer, com os seus navios-tanques, combustível para nos vender aqui?
O único que pode ter êsse interêsse é o Estado. O Estado, portanto, num país como o Brasil, como qualquer outro da América Latina, como era a Rússia antes de 1917, como a China, como a Índia, como os países asiáticos, o Estado é que é a grande alavanca do progresso. O Estado é que há de ser o grande líder.
Evidentemente, o Estado não pode ser um grande líder, se não estiver funcionando e pensando a serviço de uma grande política.
Necessidade de pensamento político organizado
Pois façamos votos por que essa grande política apareça e se desenvolva em todos os países que dela necessitam; o que falta, sobretudo na vida brasileira, é um pensamento político organizado.
Fui deputado, e, como meus companheiros, nunca sabia o que íamos votar; votávamos projetos indiscriminadamente; cada deputado vivia a sessão daquele dia, votando os projetos daquele mesmo dia, sem obedecer a um plano geral de grande alcance.
O que se constata é que não há, no Parlamento, nenhum partido verdadeiramente impregnado do sentimento de um pensamento organizado que se projete no corpo do país. Deputados, ministros, senadores, todos chegam aos seus postos para viver apenas o expediente diário.
Ora, o país precisa de viver mais alguma coisa do que o expediente; o país precisa de viver a sua organização, seus problemas de base, – os problemas de base a que o Sr. presidente da República se referiu, com muita oportunidade, na sua propaganda política, – e precisa saber que êsse pensamento nos deve conduzir a uma democracia social, a uma democracia em que o primeiro lugar, realmente, seja um lugar atribuído ao trabalho.
Causa espanto que um pensamento tão simples quanto êsse, de chamar as massas trabalhadoras à vida política institucional e econômica do país, pensamento timidamente articulado pelo presidente da República, em Pôrto Alegre, tenha provocado tanta estranheza no país.
Façamos, então, êsse voto, de que surja uma grande política nacional, que leve o Brasil aos maiores destinos, pelo aproveitamento de tôdas suas enormes riquezas materiais e magníficas qualidades morais.
Hermes Lima, professor da Faculdade Nacional de Direito.
_________
Notas:
* N. da R.: Palestra realizada no auditório do I. P. A. S. E., Rio, 1952.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS
I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
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