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Imutabilidade do nome

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NOTARIAL E REGISTRAL

A mudança tem nome

IMUTABILIDADE DO PRENOME

LEI 14.382/2022

LEI DE REGISTROS PÚBLICOS

MEDIDA PROVISÓRIA 1.085/2021

SERP

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

24/10/2022

Em 1975, Tim Maia chegou em casa com seu filho nos braços e avisou a toda família: “Olha aí o Telmo”. O nome Telmo havia sido sugerido por um guru da Cultura Racional, cujos ensinamentos o músico seguia naquela época. Acontece que, no cartório do registro civil, Tim informou que o nome do menino era Carmelo. O próprio Carmelo, hoje adulto, conta: “Pra minha família sou Telmo até hoje. Sofri vários problemas por causa do nome. Na escola, professores, coordenadores, achavam que eu sofria de audição, chamavam Carmelo Maia e eu não respondia. Não sabia que me chamava Carmelo[1].

A imutabilidade do nome e a Lei 14.382/2022

A história pitoresca sublinha a importância do nome não apenas como instrumento de identificação perante a coletividade, mas como noção fundante da própria identidade pessoal. Pessoas que não se identificam com seus nomes, ou que não gostam dos nomes que receberam de seus pais, tendem a sofrer com problemas de falta de confiança e autoestima[2]. Ainda assim, nossa ordem jurídica considerava o prenome, em regra, imutável – até o fim de junho deste ano, quando foi publicada a Lei 14.382/2022, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos.

Embora tenha sido fruto da conversão da Medida Provisória 1.085/2021, a Lei 14.382/2022 trouxe, em seu texto final, uma inovação importante: a alteração dos artigos 55 a 57 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), com o afastamento da regra geral de imutabilidade do nome da pessoa humana. O dogma da imutabilidade, herdado da tradição jurídica ibérica, encontrava respaldo na redação original do artigo 59 da Lei de Registros Públicos, que afirmava expressamente que “o prenome será imutável.”

Muito embora aquela lei admitisse a retificação por erro gráfico evidente (art. 59, parágrafo único) e proibisse os oficiais de registro de aceitarem “prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores” (art. 56), a regra geral era a imutabilidade do nome, o que gerava numerosos e desnecessários processos judiciais em que o autor se via no inglório papel de demonstrar que sua insatisfação com seu nome advinha de uma situação vergonhosa qualquer, e não de um “mero capricho[3].

Jurisprudências sobre o nome

Nas últimas décadas, a concepção rígida do nome, como sinal distintivo imodificável, já vinha sendo excepcionada por leis específicas, como a Lei 9.708/1998, que permitiu a alteração ou substituição do prenome com a inclusão de apelido público notório — como no caso de Luiz Antônio Feliciano Neguinho da Beija-Flor Marcondes[4] — e a chamada Lei Clodovil (Lei 11.924/2009), que autorizou o enteado ou enteada a adotar o nome de família do padrasto ou madrasta. Nos demais casos, as pessoas que pretendessem alterar seu prenome precisavam recorrer ao Poder Judiciário, com dispêndio de tempo e recursos, como no caso de Kumio Tanaka, manifestando sua intenção de escapar ao cacófato, precisou requerer judicialmente a alteração de seu prenome para Jorge[5]. Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a alteração do nome de Maria Raimunda para Maria Isabela, a fim de evitar pilhérias de baixo calão sofridas pela autora na sua vizinhança e no seu local de trabalho[6].

Em outro caso conhecido, a 5ª vara de Fazenda e Registros Públicos de Campo Grande acatou o pedido de Wonarllevyston Garlan Marllon Branddon Bruno Paullynelly Mell para retificar seu nome. Em audiência, sua ma?e, Dalvina Xuxa, esclareceu que o nome do adolescente havia sido fruto de diversas sugestões feitas por amigos e parentes, mas reconheceu que tinha exagerado no produto final. O juiz ressaltou que a mãe procurou enfeitar o nome do filho, mas o resultado acabou “caracterizando um capricho que achou espaço na negligência do oficial de registro[7].

Mais recentemente, o STJ também acolheu o pedido de uma autora chamada Ana Luíza que passou a se chamar apenas Luíza, uma vez que Ana havia sido atribuído por seu pai, com quem a autora não tinha vínculo afetivo: “No caso dos autos, há justificado motivo para alteração do prenome, seja pelo fato de a recorrente ser conhecida em seu meio social e profissional por nome diverso do constante no registro de nascimento, seja em razão da escolha do prenome pelo genitor remetê-la à história de abandono paternal, causa de grande sofrimento[8].

Dogma da imutabilidade do nome

Nem sempre, todavia, as ações judiciais propostas em relação a esta matéria tinham um final feliz. O dogma da imutabilidade do nome, historicamente arraigado em nossa cultura jurídica, exercia e continua a exercer influência sobre a interpretação das próprias normas que autorização alterações no nome.

Em precedente recente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) negou provimento ao pedido de um homem que pretendia ver incluído no seu nome o apelido pelo qual é conhecido nas redes sociais. A corte considerou “temeroso” o argumento de que a mudança se justifica uma vez que o cidadão assim é conhecido nas redes sociais: “Aceitar a possibilidade de modificação em situações tais faria com que o registro público se tornasse abruptamente submisso às dinâmicas de redes sociais, permitindo que o ‘número de seguidores’ condicionasse a alteração de prenomes, o que por certo não se encaixa à situação de excepcionalidade demandada pela legislação civil para tal modificação[9].

Particularmente sensível era a situação enfrentada por pessoas trans, que, muitas vezes, tinham o pedido de modificação do nome rejeitado ou condicionado à realização de cirurgias médico. Evidenciando o indissociável nexo entre o nome e a construção da identidade pessoal, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão histórica proferida em 2018, decidiu que “o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa[10].

Conforme registrado no voto do ministro Dias Toffoli: “Não há como se manter um nome em descompasso com a identidade sexual reconhecida pela pessoa, que é, efetivamente, aquela que gera a interlocução do indivíduo com sua família e com a sociedade, tanto nos espaços privados como nos espaços públicos. Não é o sexo do indivíduo, a identidade biológica, que faz a conexão do sujeito com a sociedade, mas sim sua identidade psicológica”.  Na esteira da decisão do STF, foi editado o Provimento nº 73/2018 do CNJ, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no registro civil das pessoas naturais, de modo a viabilizar o cumprimento da decisão.

Toda essa jornada, que se estendeu por décadas, culminou na edição da Lei 14.382/2022. A nova lei alterou a redação do caput do artigo 57 da Lei de Registros Públicos, segundo a qual “a alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro”. E alterou, na mesma direção, a redação do caput do artigo 56 da Lei de Registros Públicos, que passa a afirmar que “a pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico[11]. Era o que já defendia a melhor doutrina, que enxergava no prenome um espaço de autonomia, que não podia ser suprimido por presunções de fraude ou má-fé daqueles que buscavam a alteração do seu próprio prenome[12].

Para fazer frente aos habituais receios de que a alteração do nome seja usada como meio de fraude a credores ou à persecução penal, a Lei 14.382/2022 limitou a possibilidade de modificação extrajudicial e imotivada do prenome a uma única oportunidade, submetendo eventuais modificações posteriores ao crivo judicial (LRP, art. 56, §1º)[13].

No mesmo sentido, o §2º do artigo 56 prevê que “a averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas”. Por fim, o §4º do mesmo artigo determina que, “se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação”.

Inversão da lógica da alteração do nome

Com isso, inverte-se a lógica em matéria de alteração do nome. É a rejeição aos pedidos de alteração que deve ser fundamentada com a indicação específica da ameaça que a modificação traz à coletividade. Não se presume mais a má-fé de quem pleiteia a alteração do próprio nome, como ocorria antes da Lei 14.382/2022.

Além de consagrar a possibilidade de alteração imotivada do prenome, a Lei 14.382/2022 modificou a redação do artigo 57, caput, da Lei de Registros Públicos, instituindo um amplo rol de hipóteses em que se permite a modificação do sobrenome: “A alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento, independentemente de autorização judicial, a fim de: I – inclusão de sobrenomes familiares; II – inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento; III – exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas; IV – inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado”.

A nova Lei 14.382/2022 não apenas retira do Poder Judiciário um volume elevado de processos desnecessários, mas também garante uma proteção mais célere e eficiente ao exercício da autonomia da pessoa humana na definição de seu nome, dispensando a análise de motivações e assegurando que tudo seja feito extrajudicialmente perante o oficial de registro. O novo diploma legal concretiza uma travessia há muito aguardada no direito brasileiro: o nome deixa de ser tratado sob a ótica exclusiva da segurança jurídica, deixando de ser visto como questão de Estado ou imposição do destino para se converter em um genuíno espaço de realização da autonomia existencial da pessoa humana. Neste contexto, o “direito ao nome” — como proclamado, há duas décadas, pelo Código Civil brasileiro (art. 16)[14] — passa a ter real significado e sentido, tornando-se realmente um direito do seu titular.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] Entrevista de Carmelo Maia ao Jornal do Commercio, em 7 de abril de 2019.

[2] Como seu nome pode afetar sua personalidade, reportagem de Christian Jarrett publicada pela BBC Future em 8 de julho de 2021: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-57564726.

[3] Maria Celina Bodin de Moraes, Sobre o Nome da Pessoa Humana, in Revista da EMERJ, vol. 3, n. 12, 2000, p. 59.

[4] “Neguinho da Beija-Flor acrescenta nome artístico em certidão de nascimento” (g1.globo.com, 12.8.2008).

[5] Revista dos Tribunais 443/146.

[6] STJ, 3ª T., REsp 538.187/RJ, Rel. Min. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 2.12.2004.

[7] “TJ aprova e Wonarllevyston tira Paullynelly Mell do nome” (g1.globo.com, 10.10.2008)

[8] STJ, 4ª T., REsp 1.514.382/DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 1.9.2020.

[9] “TJSC: Popularidade em rede social não ampara pleito para alterar nome em registro civil” (IBDFam, 22.7.2021)

[10] STF, Tribunal Pleno, RE 670.422, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 1.3.2018.

[11] Embora a Lei 14.382/2022 não tenha revogado expressamente o artigo 58 da Lei de Registros Públicos,  que afirma que “o prenome será definitivo”, tal norma somente pode ser lida, neste novo cenário normativo, como uma reminiscência histórica.

[12] Louise Vago Matieli, Análise Funcional do Direito ao Nome à Luz do Artigo 55, Parágrafo Único, da Lei de Registros Públicos, in Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 6, 2016, p. 119: “Tal flexibilização é absolutamente necessária, na medida em que, como se viu, o direito ao nome exerce função principal de proteger e promover a personalidade da pessoa humana. O papel de identificação social não pode se sobrepor à tutela do nome enquanto verdadeiro direito da personalidade. Entender o contrário implicaria em permitir que a pessoa tivesse o desenvolvimento da sua identidade pessoal tolhido por razões de interesse puramente estatal, as quais, contudo, podem ser facilmente contornadas em um processo judicial. O prejuízo para a pessoa, porém, nem sempre é reversível.” Na mesma direção, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, Disponibilidade dos Direitos de personalidade e Autonomia Privada, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 221: “Ora, na maioria das vezes, os interesses de terceiros quanto à imutabilidade do nome das pessoas é de natureza econômica, disponível, enquanto o interesse de uma pessoa na alteração de seu nome é, na maior parte das vezes em que isso chega ao Poder Judiciário, questão de conservação e exercício de atributos de personalidade.” Seja consentido remeter também a Anderson Schreiber, Direitos da Personalidade, em cuja 1ª edição (2011) já se afirmava: “Nesse contexto, tanto quanto o prenome, o sobrenome deve ser tido como modificável sempre que puder impor risco ao pleno desenvolvimento da personalidade, seja por expor seu titular ao ridículo, seja por razões atinentes a? realização familiar ou a? segurança do indivíduo, como no caso de testemunha que altera seu nome para escapar a ameaça ou coação criminosa. Tais hipóteses, ja? insculpidas na Lei de Registros Públicos (arts. 57 e 58), devem ser vistas como meramente exemplificativas das situações em que o nome serve de embaraço ao pleno desenvolvimento da personalidade, não podendo o Poder Judiciário deixar de considerar outras situações manifestadas em concreto.

[13] “Art. 56. (…) § 1º A alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial.”

[14] “Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

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