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A representação proporcional no sistema eleitoral brasileiro

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REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL

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REVISTA FORENSE 153

SISTEMA ELEITORAL

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24/08/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 153
MAIO-JUNHO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

PARECERES

  • A representação proporcional no sistema eleitoral brasileiro – Osvaldo Trigueiro
  • Desapropriação – Retrocessão – Perdas e Danos – Carlos Medeiros Silva
  • Impôsto e Taxa – Assistência Social – Competência Tributária dos Municípios – Osvaldo Aranha Bandeira de Melo
  • Seguro de Vida – Cláusula de Suicídio – Período de Carência – Levi Carneiro
  • Interdito Proibitório – Revogação do Mandado Inicial – Luís Machado Guimarães
  • Casamento – Anulação – Êrro Essencial – Impotência “Coeundi” – A. Almeida Júnior
  • Vereador – Imunidade Concedida em Lei Estadual – Agnelo Amorim Filho
  • Compra e Venda de Árvores – Impôsto de Transmissão – Fajardo Nogueira de Sousa

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • Lei Reguladora do Estatuto Pessoal – Haroldo Valadão
  • O Sistema Penitenciário no Direito Brasileiro – Lourival Vilela Viana
  • Contrôle das Assembléias Gerais das Sociedades Anônimas – Filomeno J. da Costa
  • Da Apuração do Dano Conforme a Natureza da Culpa – Abelardo Barreto do Rosário
  • A Inconstitucionalidade do Impôsto Adicional de 1%, Da Fundação da Casa Popular – Alípio Silveira
  • A Crise da Propriedade Industrial – João da Gama Cerqueira
  • Revelia do Autor – Absolvição de Instância – A. Lopes da Costa
  • Unificação de Justiça – João Solon Macedônia Soares
  • Salário Mínimo – Extensão aos Servidores Civis, Militares e Autárquicos, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, Bilac Pinto
  • Abono de Desemprêgo, Bilac Pinto

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA 

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: A prática do sufrágio popular. Representação das minorias. Voto majoritário. Origens do sistema proporcional. Experiência prática. Multiplicação dos partidos. O Código Eleitoral de 1932. Os resultados obtidos entre nós. Indisciplina partidária. O Código eleitoral de 1950. Voto preferencial. Conclusões.

Sobre o autor

Osvaldo Trigueiro, Deputado federal pela Paraíba

DOUTRINA

A representação proporcional no sistema eleitoral brasileiro

A prática do sufrágio popular — Representação das minorias

A prática do sufrágio popular que, no século XIX, se estendeu a todo o Ocidente civilizado, revelou, desde o seu inicio, que o problema não se resolveria satisfatòriamente com a simples constatação da preferência da maioria eleitoral, porque isso poderia dar lugar a injustiças inconciliáveis com o próprio princípio da representação democrática. Um partido que obtivesse 51% da votação manifestada poderia, pelo menos teòricamente, conquistar a totalidade dos postos de representação nos órgãos governativos. Redundaria isso na possibilidade de tornar-se inviável a representação das minorias, por ponderáveis que fossem, o que acarretaria, não apenas o desestímulo, mas o desaparecimento de tôda a oposição efetiva.

Recorreu-se à técnica do direito público para evitar-se que o sistema de eleições pelo voto majoritário, ou simplesmente plural, levasse a resultados tão injustificáveis quanto antidemocráticos. Adotou-se desde o expediente das listas incompletas até o do voto cumulativo. Nada disso, entretanto, conseguiu destruir as críticas que punham em evidência as imperfeições daquele método de escolha dos representantes do povo. A fixação do têrço, para representação das minorias, era arbitrária e também injusta, porque não podia contemplar mais de uma corrente. O voto cumulativo estava sujeito a ser burlado pelo rodízio, como entre nós se tornou usual, sob a chamada Lei Rosa e Silva.

O princípio da representação proporcional, em contraposição ao do voto majoritário, deu origem a um movimento que, com o correr do tempo, se tornou irresistível. Através dêle chegava-se a um sistema eleitoral que removia tôdas as objeções opostas à legislação tradicional, e assegurava a representação das minorias por forma mais racional e mais justa. Graças a êsse princípio, seria possível garantir-se a todos os partidos, nos corpos legislativas, número de representantes proporcionalmente correspondente aos votos de cada um.

Voto majoritário

A controvérsia entre os proporcionalistas e os adeptos do voto majoritário data de mais de um século. Há quem a faça remontar ao próprio movimento de idéias gerado na Revolução Francesa, o que carece de precisão histórica. Mas já em 1820 o matemático francês GERGONNE, no ensaio “Sur les élections et le système representatif”, pode ser apontado como um dos precursores da representação proporcional e da formulação de sua exeqüibilidade.

Em 1846, VÍTOR CONSIDERANT levou a idéia para o campo prático, ao propor, ao Grande Conselho do Cantão de Genebra, a introdução de novo sistema eleitoral, que justificou em trabalho intitulado “De la sincerité du gouvernement réprésentatif ou exposition de l’élection véridique”. Daí par diante a campanha foi adquirindo novas adesões e conquistando terreno por tôda a parte.

A experiência ANDRAE, na Dinamarca, é de 1856. No ano seguinte, THOMAS HARE publicava o trabalho em que expunha o seu sistema de voto transferível, entusiàsticamente defendido por STUART MILL. A oposição de BAGEHOT, que considerou a iniciativa como coisa de romance, deu ao tema a consagração de que precisava para ser aceito na doutrina do direito público.

Em 1891, a representação proporcional obteve a sua primeira conquista legislativa, ao ser adotado pelo Cantão de Tessino, na Suíça. Na passagem do século, obtinha a primeira vitória de âmbito nacional, ao ser introduzida no direito constitucional da Bélgica, onde, como base do sistema eleitoral, vem sendo ininterruptamente praticada até agora. Da Bélgica o sistema se estendeu a vários países da Europa e da América Finlândia, Suécia, Portugal, Bulgária, Cuba. Depois da primeira guerra mundial tomou êle um impulso avassalador, sendo adotado pela Suíça, para as eleições federais, pela Noruega, pela Itália e também pelos países que, como a Alemanha e a Áustria, tiveram de reorganizar-se constitucionalmente em conseqüência daquela conflagração. Por essa época observou DUGUIT:

“No estrangeiro, a representação proporcional ganha terreno cada dia e não é temerário dizer que, em futuro que não está distante, o sistema proporcionalista formará o direito eleitoral comum de todos os países que praticam o regime representativo” (“Traité de Droit Constitutionnel”, II, pág. 744).

Como em geral ocorre com as profecias, principalmente no mundo político, a do grande mestre de Bordeaux não se realizou por completo. Mas é positivo que, com a exceção dos países de língua inglêsa, a representação proporcional ganhou evidente predomínio na maioria das nações democráticas.

Do ponto de vista estritamente doutrinário, o problema já não oferece novidades e parece destituído de maior interêsse. Em mais de 100 anos de polêmica, os doutos, de lado a lado, esgotaram todos os argumentos que a especulação pode mobilizar.

O princípio majoritário teve em ESMEIN o defensor mais intransigente. Para êle “a população deve ser a única base da representação; qualquer outra forma de repartição desnaturaria ainda a soberania nacional, que segue a lei do número” (“Droit Constitutionnel”, I, página 336).

A sua impugnação foi ao extremo de considerar que a representação proporcional é lògicamente inconciliável com as tendências e as regras formais do regime representativo francês, no que teve o apoio de CARRÉ DE MALBERG (“Teoria General del Estado”, pág. 161).

A tese oposta foi brilhantemente sustentada por DUGUIT, para quem “não sòmente a representação proporcional não está em contradição com o princípio da soberania nacional e do mandato representativo, como é o único sistema eleitoral a êle adequado. É preciso acrescentar que só ela evita a injustiça flagrante, que existe sob o regime majoritário, com o qual pode ocorrer que apenas a metade e mais um dos cidadãos viva a vida política, enquanto que o restante permanece como se atingido de morte cívica” (ob. cit., II, pág. 729).

Em nossos dias, essa controvérsia em tôrno de teorias políticas ou concepções jurídicas perde muito de importância, superada como está pela observação objetiva da realidade. A questão deslocou-se naturalmente do plano acadêmico para o da experiência que está sendo vivida pelas nações democráticas. No século XIX, a representação proporcional, a rigor, não passou de tema abstrato de política, a inspirar um grande movimento reformador. No século atual, a partir da primeira eleição belga de 1900, passou ela a ser um método vivo, que está sendo praticado in anima nobili, através de sua adoção, transitória ou definitiva, pela grande maioria dos países da Europa continental e por alguns da América, entre os quais o Uruguai e o Brasil.

Êsse meio século de contínua e variada experimentação já fornece à ciência política larga messe de dados positivos, com base nos quais é possível verificar se a representação proporcional está realmente correspondendo às esperanças de quantos, a partir de GERGONNE, têm visto, em seu complicado mecanismo, o único meio de resguardar-se a veracidade e a justiça do regime representativo.

Origens do sistema proporcional

A partir de 1900 mais de 20 nações passaram a adotar o sistema proporcionalista. Em várias delas – Bélgica, Suécia, Dinamarca, Países-Baixos, Suíça, Noruega – o sistema funciona com relativa perfeição, sem embargo das críticas e restrições de que não se pode eximir. Nestas pequenas nações, a vida constitucional é um modêlo de ordem, de estabilidade, de normalidade democrática. A representação proporcional nêles se aclimatou satisfatòriamente, funcionando como processo adequado para levar aos corpos legislativos os mandatários de todos os partidos. O êxito do proporcionalismo, nestes casos, está fora de discussão, parecendo inexistir, em qualquer dêsses países, movimento de opinião favorável à restauração do sistema majoritário.

Em outras, porém, a experiência não se apresenta consagrada pelo mesmo indubitável sucesso. A começar pela Alemanha, sob a Constituição de Weimar, onde a representação proporcional foi assegurada com rigor matemático e perfeita disciplina jurídica, e pela Itália, que, também em 1919, pela Lei Nitti, adotou o sistema dos colégios plurinominais com distribuição proporcional. Nestas duas grandes nações, a prática da representação proporcional, no período de após-guerra, abriu caminho aos regimes totalitários, que lançaram o mundo em nova e mais terrível conflagração. Quando não se possa dizer que a representação proporcional, por si só, gerou a desordem democrática, em que essas nações submergiram, é inegável que atuou como concausa, deixando de pesar como fator de equilíbrio favorável à sobrevivência da ordem constitucional.

Após à segunda grande guerra, reabriu-se, na Europa, a experiência da representação proporcional. Depois de longo eclipse fascista, a Itália voltou ao sistema que anteriormente começara a praticar. Em 1945, a França também se incorporou à série dos países proporcionalistas, substituindo o sistema dos círculos uninominais e eleições em dois turnos, pelo das listas partidárias, à base de círculos departamentais.

Experiência prática

É de tôda a evidência que as duas grandes repúblicas latinas não conseguiram solução tranqüila para o seu problema eleitoral. A representação proporcional na França, graças ao sistema de listas rígidas ou bloqueadas, trouxe inegável refôrço à disciplina dos partidos. Mas nem ao menos atenuou, antes parece ter agravado, os males resultantes da multiplicidade partidária e da instabilidade governamental, que tão sèriamente ameaçam, nos próprios fundamentos, as instituições democráticas, no país precursor da democracia.

Na Itália, a representação proporcional, é certo, tem permitido, nestes sete anos, a estabilidade ministerial, com o predomínio da Democracia Cristã. Mas já se fêz necessário reformar a legislação, com a finalidade de assegurar dois terços d representação ao partido ou coligação que conseguir 51% dos sufrágios, o que é, em teoria, o repúdio do proporcionalismo puro, e, na prática, o sinal de dificuldades que se avolumam e que as últimas crises eloqüentemente denunciam.

Haveria outras experiências a considerar, como as da Áustria, da Islândia, da Bulgária, de Portugal, de Cuba e do Uruguai, mas esta não têm maior fôrça exemplificativa, quer, em uns casos, por seu caráter efêmero, quer, em outros, pelas circunstâncias que interromperam ou impossibilitaram o funcionamento normal do regime democrático.

De todo o modo, o tirocínio adquirido pela maioria dos Estados democráticos europeus, em matéria de representação proporcional, já nos oferece alguns valiosos ensinamentos. O primeiro é no sentido da confirmação de que a sorte dos regimes políticos não repousa ùnicamente sôbre o sistema eleitoral. O conceito de CORMENIN, para quem na lei eleitoral estava todo o govêrno, todo o Estado, tôda a Constituição, contém um exagêro que a realidade não abona. As instituições políticas mudam com os tempos e as circunstâncias, e, como aquela verdade a que se referia PASCAL, também se modificam ao transporem os Pireneus. Uma boa lei da França pode perder tôda a virtualidade quando transplantada para Portugal.

Na Suíça e nas pequenas monarquias do norte da Europa Continental, a representação proporcional, quaisquer que sejam as críticas que comportem, funciona a contento. Mas, o que é que nesses países não funciona bem? As instituições políticas, a ordem jurídica e os serviços públicos atestam uma capacidade de organização e uma experiência administrativa que dificilmente podem ser superadas. Que a representação proporcional opere ali com a precisão do ensino, do cooperativismo, da previdência social, nada tem de surpreendente. Se qualquer dessas nações voltasse ao sistema majoritário, tudo faz crer que o resultado da mudança não seria inferior ao que se verifica na Grã-Bretanha ou no Canadá.

Entretanto, em outros países onde a vida política sofre a interferência de fatôres peculiares, ou de perturbações sociais mais graves, as condições da vida constitucional são, naturalmente, modificadas. Na Alemanha pré-hitleriana, como na França de hoje, as instituições foram afetadas por diáteses que zombam da fôrça curativa que uma lei eleitoral possa conter.

Decerto não será razoável esperar-se que a representação proporcional-se converta numa panacéia para todos os males que ameaçam o govêrno representativo, como não será justo atribuir-lhe as culpas de todos os desastres que as nações democráticas têm sofrido, nestes tempos de transformações revolucionárias. Uma coisa, porém, devemos reconhecer e é que a representação proporcional, mesmo por definição, realiza o regime da multiplicidade partidária. Onde encontrou vários partidos, a representação proporcional os conservou. Onde essa multiplicidade não existia, a representação proporcional propiciou e estimulou o seu aparecimento.

Se consideramos que a proliferação dos partidos é inofensiva, ou, pelo menos, que não é incompatível com o bom govêrno, nenhuma censura poderemos irrogar ao proporcionalismo. Mas, se admitimos que essa proliferação de pequenos partidos é um dos maiores males das democracias contemporâneas, e particularmente um dos mais sérios obstáculos à estabilidade do govêrno parlamentar, então devem atribuir à representação proporcional uma larga parcela de responsabilidade num estado de coisas em que se geram tantas ameaças à sorte dos governos livres.

Estudando a influência dos sistemas eleitorais sôbre a vida política, MAURICE DUVERGER chegou a conclusões que esquematizou nos três pontos seguintes: 1º) a representação proporcional tende a um sistema de partidos múltiplos, rígidos e independentes; 2º) o escrutínio majoritário de dois turnos, a um sistema de partidos múltiplos, flexíveis e independentes; 3º) o escrutínio majoritário de um só turno, ao dualismo dos partidos (“L’Influence des Systèmes Electoraux sur la Vie Politique”, pág. 13).

A fórmula apresentada não pode ter a consistência de uma lei científica e o próprio DUVERGER admite que as suas conclusões não passam de aproximações, que exprimem hipóteses destinadas a orientar futuras pesquisas. Em recente monografia, LAVAU rejeita a teoria do mestre citado, que, a seu ver, não encontra apoio na realidade social dos países por ambos estudados. LAVAU nega a possibilidade de construir-se uma ciência dos partidos, parecendo-lhe mesmo contestável a teoria da influência dos regimes eleitorais sôbre a vida política. (G. E. LAVAU, “Partis Politiques et Réalités Sociales”, passim).

Seria decerto um avanço temerário considerar-se a vida partidária de uma nação condicionada, exclusivamente, pelo seu sistema eleitoral. Mas seria igualmente errôneo desconhecer-se que o regime jurídico do sufrágio popular é fundamental para a boa prática do govêrno representativo.

Que o sistema dos círculos uninominais dificulta a multiplicação dos partidos, parece fora de tôda a dúvida. Os exemplos dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e dos países da Commonwealth, resistem a todas as objeções. Uma experiência mais que secular demonstra que o sistema se coaduna admiràvelmente com o rotativismo de dois grandes partidos, como é característico das democracias de língua inglêsa.

A observação de que, nesses países, existem mais de dois partidos, não infirma o princípio, porque inexiste de todo o modo a multiplicidade partidária, e o contrôle do govêrno é mantido, sem transformações bruscas ou imprevistas, por duas grandes correntes dominantes. O próprio LAVAU assinala o fato de que no Canadá, apesar de existirem mais de dois partidos, o liberal domina há muitos anos a cena política, graças à sólida maioria de sua representação parlamentar.

Pretende DUVERGER que o sistema majoritário, de dois turnos, tende à multiplicidade de partidos, mas de partidos flexíveis e independentes. E’ esta uma conclusão de procedência discutível, porque êsse sistema só nos oferece, a bem dizer, o exemplo da França, sob a Terceira República. Atualmente, parece que êle não é adotado em nenhum país, pelo menos em nenhum dos que são exponenciais do progresso político da época. A simples observação do caso francês não nos permite aceitar a generalização. A multiplicidade dos partidos terá tido no sistema dos dois turnos um clima favorável, mas não será possível negar-se que a vida partidária francesa sofre a influência de fatôres políticos e sociais mais complexos e mais profundos.

7. Quanto à representação proporcional, a conclusão de DUVERGER resiste a tôda a contestação, até porque ela não faz mais do que exprimir a communis opinio dos escritores políticos. O proporcionalismo é, por natureza, o sistema da multiplicidade dos partidos e tôda a sua técnica tem por objetivo possibilitar à representação, nos corpos legislativos, de tôdas as nuances do pensamento político. Não há negar que ela cria o clima ideal para a coexistência de grande número de correntes partidárias.

E’ êsse um fato que se observa em todos os países que abandonaram o voto majoritário, sendo certo que onde existe o proporcionalismo há nunca menos de dez partidos a disputarem entre si as preferências dos sufrágios populares. Não é fácil apontar-se, em qualquer dêles, um partido que disponha de maioria parlamentar e que, portanto, esteja em condições de governar sem coalizões, e de executar, sem transigências deturpadoras, o programa com que se apresentou às urnas. Dessa observação podemos não tirar nenhuma lei de rigidez científica, mas constatamos uma tendência generalizada e rebelde a todos os corretivos tentados através de repetidas reformas de legislação.

A influência da representação proporcional sôbre a situação partidária é, assim, tão irrecusável quanto a influência paralela da multiplicidade de partidos sôbre a vida política. O problema nos leva a uma indagação da maior importância, qual a de saber-se se essa multiplicidade é compatível com a estabilidade e a durabilidade do regime democrático. Não podemos dissipar, de plano, tôdas as dúvidas que essa indagação suscita. Podemos verificar, entretanto, que o grande número de partidos é uma fonte perene de crises que contribuem largamente para a debilidade dos governos, A multiplicação partidária divide e enfraquece o govêrno e dêle retira algumas das condições indispensáveis à continuidade e à eficiência da administração. O professor HERMENS vai ao extremo de sustentar que a Suíças que sempre foi tranqüilamente governada enquanto adotou o voto majoritário, passou a um período de crises contínuas a partir da instituição da representação proporcional, em 1919. No seu conhecido “Democracy or Anarchy”, HERMENS procura demonstrar que, mesmo nas pequenas monarquias da norte da Europa, o êxito e as vantagens da representação proporcional ainda não passaram em julgado. Tudo isso nos leva à verificação de que já estão desfeitas muitas das ilusões dos reformadores que, há mais de um século, iniciaram a demolição do regime eleitoral fundado no voto majoritário.

O Código Eleitoral de 1932

No Brasil, tentou-se introduzir a representação proporcional no século passado, quando nenhum país ainda a havia adotado. E’ de 1893 o projeta de ASSIS BRASIL, que não teve aceitação. Tivemos de esperar ainda 40 anos para que a idéia fôsse transposta para o direito positivo. Foi o Código Eleitoral de 1932 que, cumprindo uma das promessas da revolução, implantou entre nós o sistema proporcionalista, fazendo-o nos têrmos do projeto ASSIS BRASIL, de dois turnos simultâneos, prevendo o primeiro a divisão por cocientes, adotando o segundo o voto plural, para as vagas, não preenchidas no primeiro. Foi sob êsse sistema que se realizaram as nossas eleições para a Constituinte de 1933 e para a legislatura que a ela se seguiu. O Código de 1932 foi reformado em 1935, mas a sua aplicação foi impedida pelo golpe de Estado que sobreveio dois anos depois.

O retôrno do regime democrático, em 1945, restaurou o sistema proporcional. A lei decretada nesse ano restabeleceu a distribuição proporcional dos mandatos legislativos, suprimindo, porém, o chamado segundo turno, com a atribuição, à legenda mais votada, dos lugares não preenchidos. Na lei votada pela primeira legislatura, e que é o vigente Código Eleitoral, o sistema foi retificado no sentido de uma proporcionalidade mais rigorosa, o que se obteve pela adoção da sistema das maiores médias para o aproveitamento das sobras, como já pretendera a frustrada lei de 1935.

Na representação proporcional foram postas as melhores esperanças de quantos lutaram pela regeneração dos costumes políticos na primeira República, durante a qual não tivemos leis que nos dessem eleições verdadeiras e livres. A revolução de 1930 foi pregada sob a inspiração do binômio “Representação e Justiça”, cuja efetivação importaria a remoção dos vícios que, ostensivamente, deturpavam a manifestação da vontade popular através das urnas.

Em 1930 a representação proporcional estava em maré alta e a sua aplicação, numa grande nação como a Alemanha, dava-lhe enorme prestígio. Não apenas pela influência que o regime de Weimar exercia sôbre o mundo democrático europeu, mas sobretudo porque a legislação eleitoral alemã era considerada a mais perfeita que a arte política idealizara.

No livro que publicou em 1929, sôbre “Sistemas Eleitorais”, o professor JOÃO CABRAL pregava que a reforma política mais importante para o país era a da lei eleitoral, sustentando que essa reforma não poderia ser feita senão para a adoção do regime proporcionalista. Em 1931, no curso em que estudou os problemas de “Eleição e Representação”, GILBERTO AMADO assinalava que tôdas as constituições européias, promulgadas depois da guerra, consagravam a representação proporcional. O trabalho do eminente publicista dava-nos uma das exposições mais claras e uma das justificações mais brilhantes do sistema preconizado. Exprimia êle, com fidelidade, os anseios de reforma que viam, no proporcionalismo, o remédio infalível para es males crônicos que afligiam o regime eleitoral brasileiro, e que a revolução de 1930 pretendia abolir. Para GILBERTO AMADO o sufrágio universal tinha na representação proporcional o seu “esplendor supremo” (“Eleição e Representação”, pág. 99).

9. Que a Revolução de 30, apesar dos pesares, nos deu eleições verdadeiras, é reconhecimento de justiça que não lhe deve ser negado. Por mais de um século, de 1822 a 1930, o Brasil sempre foi um país de representação política meramente nominal. Os vários sistemas e as várias reformas tentadas nunca impediram que as nossas eleições pudessem ser grosseiramente desvirtuadas pela compressão e pela fraude, o que de antemão impossibilitava o acesso normal das oposições ao govêrno e tornava as máquinas oficiais pràticamente invencíveis. A partir de 1933, porém, sempre que nos foi permitido exercer o direito de voto, tivemos eleições reais, a cujos resultados a justiça impôs o devido acatamento. Nesse terreno, a transformação operada foi imensa e atingiu o cerne de nossa vida política.

Cumpre, entretanto, estabelecer uma distinção, que é fundamental. As boas eleições, que temos tido, e a conseqüente veracidade da manifestação popular através das urnas não são o efeito da representação proporcional que estamos praticando. O que assegura eleições livres e honestas é, primordialmente, o voto secreto garantido pela justiça eleitoral. Foram estas duas inovações que mudaram completamente a fisionomia política do país, dando-nos um regime representativo que, apesar de ainda imperfeito, porque caro, complicado, moroso, assegura ao sufrágio universal, como processo democrático, ás imprescindíveis condições de seriedade e de êxito.

E’ questão diferente indagar-se até que ponto a representação proporcional tem contribuído para êsse resultado. Decerto, ainda estamos em fase experimental. Entre 1933 e 1937, tivemos apenas duas eleições gerais, sujeitas a tôdas as dificuldades decorrentes da transição para o novo regime constitucional. De 1945 para cá, outras duas, também afetadas pelos efeitos residuais do Estado Novo, e pelos óbices naturais às mudanças políticas tumultuárias, como têm sido as nossas. A nossa experiência com o sistema proporcionalista, portanto, nem é longa, nem se tem processado em ambiente de inteira normalidade institucional. Mas não será pouco dizer-se dêle que tem assegurado, a todos os partidos, a possibilidade de elegerem representantes em número proporcional à sua fôrça eleitoral, como tem permitido o funcionamento regular do congresso, e de tôdas as assembléias estaduais, com a representação popular dividida por numerosos partidos.

O reconhecimento dessa verdade, todavia, não nos impede de observar deficiências notórias, que precisam ser supridas, e defeitos sérios, que não sabemos se poderão ser satisfatòriamente corrigidos. Como tem ocorrido em outros países, muitos reformadores já admitem que a representação proporcional, que aí está, não é a dos nossos sonhos.

Sem dúvida, a prática do sistema tem que sofrer com a adaptação às peculiaridades do meio e não pode deixar de refletir muitas das causas que explicam quanto de primitivo e precário ainda subsiste em nossa vida pública. Isso, porém, não diminui a importância da experiência, nem anula a influência substancial que o proporcionalismo está exercendo em nossa geografia partidária. Para muitos, essa influência é inteiramente benéfica, mas, para alguns, ela já se apresenta como responsável por certos males que, se agravados pelo uso e não extirpados em tempo, poderão comprometer, nos seus fundamentos, o edifício constitucional que várias vêzes reconstruímos e que, na estrutura atual, nos dá pelo menos a aparência de solidez duradoura.

Os resultados obtidos entre nós

10. De acôrdo com a observação do professor DUVERGER, a representação proporcional leva a um sistema de partidos múltiplos, rígidas e independentes. A experiência brasileira evidentemente confirma a primeira parte da fórmula. Na atual legislatura, têm assento no Congresso Nacional representantes de nada menos de doze partidos. A multiplicidade é, pois, um fato incontestável, e um fato que está vinculado ao sistema eleitoral vigente. Mas, o caso brasileiro não confirma as demais conclusões, certo como é que, em nosso país, não podemos falar nem em partidos rígidos, nem em partidos independentes.

Como dissemos, DUVERGER inspira-se nos exemplos europeus e, particularmente, no sistema alemão e na nova legislação eleitoral da França. Nestes países, o sistema adotado foi o de listas bloqueadas, isto é, de listas organizadas pelos vários partidos, que elegem os seus candidatos por ordem de colocação. Graças a êsse expediente, é possível impor-se aos partidos uma disciplina de alto grau, porque a eleição de qualquer candidato depende sobretudo da posição que o partido lhe concede na lista respectiva. Por outro lado, no exercício do mandato, o representante tem todo o interêsse em seguir à risca as determinações do partido, porque dêle ùnicamente dependerá a sua reeleição. Esse sistema pode ainda assegurar a permanência dos mesmos representantes na função eletiva, enquanto o partido mantiver sua fôrça eleitoral, o que concorre para dar relativa estabilidade aos mandatos, tornando possível a carreira parlamentar.

Sob a atual lei brasileira não só nada disso ocorre, como as coisas estão postas em moldes individualistas de tal natureza, que a disciplina partidária se torna cada dia mais fraca. O candidato a mandato legislativo só precisa que o partido lhe dê o lugar na chapa, o que é fácil, quando há tantos partidos, e quando as chapas têm mais nomes do que cargos a preencher. Tudo o mais depende do voto preferencial, que nenhum partido controla. Dessa forma, pode-se dizer que os partidos, entre nós, não elegem ninguém, nem mesmo os seus chefes, pois já vimos como vários deles foram deslocados para a baixa suplência. Cada candidato tem, antes de tudo, que cuidar de si mesmo, conseguir votos para o seu nome, gastar apenas no interêsse de sua votação individual.

O resultado é que os partidos, antes de enfrentarem os concorrentes, no prélio das urnas, têm que sofrer a luta intestina de seus candidatos, guerreando-se uns aos outros, num salve-se quem puder incompatível com a lealdade de comportamento, a harmonia de vistas e a conjugação de esforços que devem esperar de todos os seus adeptos e, especialmente, dos que se destinam aos postos da representação popular. Ao terminarem as apurações, passam os partidos pela crise certa das recriminações e dos ressentimentos, que geram defecções inevitáveis e cisões às vêzes fatais.

No sistema brasileiro, portanto, não existe, nem pode existir, a rigidez partidária da fórmula DU VERGER, pois essa rigidez é utópica onde os partidos estão desarmados para impor qualquer sanção, próxima ou remota, que resguarde eficientemente os pressupostos mínimos de disciplina.

11. Parece que, no caso brasileiro, também não podemos louvar a representação proporcional por assegurar a independência dos partidos. Os monografistas franceses, como é o caso de DUVERGER, observam apenas o que ocorre na Europa, onde domina a representação proporcional associada ao regime parlamentar, por conseguinte, em países onde sòmente se realizam eleições diretas para os órgãos do Poder Legislativo. Nesses países, é possível aos partidos manterem uma linha mais ou menos isolacionista, disputando as eleições por sua conta e risco. O objetivo único de qualquer, organização partidária em qualquer eleição é conquistar, para os seus candidatos, o maior número de lugares nos corpos legislativos, o que depende exclusivamente de sua fôrça eleitoral e de sua capacidade de aliciamento. Ressalvada a hipótese do segundo turno sucessivo, que a França aboliu, as eleições na Europa se processam sem alianças necessárias ou coalizões inevitáveis.

Em sistema de govêrno presidencialista, porém, como é o nosso caso, êsse quadro se modifica por inteiro. Aqui temos que eleger por voto popular, direto e majoritário, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os senadoras, 20 governadoras e 2.000 prefeitos. Sendo as eleições para os cargos executivos muito mais importantes do que as eleições para os cargos legislativos, podemos dizer que, entre nós, as eleições pelo sistema majoritário são mais importantes do que as eleições pelo sistema proporcional. Como nenhum partido está em condições de, isoladamente, eleger presidentes, senadores, governadores e prefeitos, as coligações de partidos, dando lugar às mais variadas, imprevistas ou mesmo absurdas combinações, tornam-se não apenas prováveis como imprescindíveis.

Disso resulta que nenhum partido se mantém independente, nenhum pode subsistir isolado ou intransigente na sustentação de suas idéias ou de seus candidatos. Para conquistar o poder, que é o seu objetivo primordial, nenhum partido se recusa a alianças que redundam em concessões ou renúncias, e em compromissos limitadores de sua liberdade de ação. Êsse fato, que decorre da dificuldade de conciliar-se a multiplicidade partidária com o sistema presidencialista, de índole nitidamente majoritária, explica, pelo menos em parte, a fraqueza intrínseca dos nossos partidos, a flutuação das alianças, as imposições dos pequenos partidos quando chamados a desempatar entre os grandes, a impossibilidade de livre escolha, pelos grandes partidos, de candidatos aos cargos executivos, porque essa escolha depende também dos compromissos decorrentes das necessárias composições.

O exemplo brasileiro é, pois, uma completa negação da independência dos partidos, como conseqüência da representação proporcional. Essa independência é, na verdade, impossível, em face da necessidade das alianças para as eleições pelo voto majoritário.

O Código eleitoral de 1950

E’ finalidade precípua da representação proporcional assegurar aos vários partidos uma divisão equitativa dos mandatos populares, através de fórmulas matemáticas, que estabeleçam relação uniforme entre a expressão eleitoral de cada um e o número de seus representantes. E’ o que se tem tentado pôr em prática nas várias soluções até agora imaginadas, e que foi elevado ao mais alto grau na legislação alemã, pelo expediente do cociente fixo, com o aproveitamento das sobras nas listas regionais e, por fim, na lista nacional.

No Brasil, entretanto, essa justiça distributiva tem sido relegada a plano secundário, de tal forma que o nosso proporcionalismo se apresenta de certo modo falseado nos seus fundamentos.

O Código Eleitoral de 1952, adotando o chamado sistema ASSIS BRASIL, com a eleição de segundo turno por voto plural, favorecia injustamente os grandes partidos. A reforma de 1953, resolvendo o problema das sobras pelo critério das maiores médias, corrigiu aquêle inconveniente, mas isso ficou no papel porque com o colapso do regime constitucional, em 1937, a reforma não teve aplicação.

Em 1945 reincidimos no êrro anterior, pois a lei eleitoral atribula as vantagens das sobras às legendas mais votadas, adotando o ponto de vista dos que advogam o refôrço das maiorias, para que o govêrno assente em base parlamentar estável. Isso permitiu que o Partido Social Democrático conquistasse 53% dos lugares da Constituinte, tendo tido apenas 40% de votos em todo o país. Mas o novo Código Eleitoral de 1950 restabeleceu o proporcionalismo em sua pureza doutrinária, mandando distribuir as sobras pelo critério das maiores médias.

Aparentemente, o nosso proporcionalismo é perfeito, porém subsistem outras causas de desigualdade, que tornam a aplicação do sistema notòriamente defectiva. A primeira decorre de preceito constitucional, o art. 58, que não só impede a redução da representação, anteriormente fixada para os vários Estados da Federação, como adota diferentes critérios de proporcionalidade entre o número de deputados e a população, conforme se trata de Estado que tem mais ou menos de três milhões de habitantes. Disso resulta que o eleitorado dos pequenos Estados tem maior peso específico, o que pode ser politicamente razoável, mas é divergente da teoria proporcionalista. Além disso, a própria divisão eleitoral do país, em círculos estaduais, concorre para a alegada desigualdade, pois, em face da variação do coeficiente eleitoral, alguns Estados elegem um deputado com 10.000 eleitores, enquanto outros só o fazem com 35.000.

Objetar-se-á que essa desigualdade é inevitável, como contingência do regime federativo. De qualquer modo, porém, a desigualdade existe e deturpa a teoria do proporcionalismo. E’ que, a rigor, a representação proporcional sòmente pode ser aplicada, com exatidão, em círculo único, que abranja todo o país, como sustenta WALINE, “porque, se a eleição é uma escolha entre partidos, não há razão para dividir o país em circunscrições” (“Les Partis contre la Republique”, pág. 75).

Se a tudo acrescentarmos o costume brasileiro que torna freqüentes as mudanças de partidos, verificaremos que, no curso, e, sobretudo, no fim de uma legislatura, a representação de cada legenda, no Congresso ou nas Assembléias, não tem proporção exata com o número de votos por ela levado às urnas. No final das contas poderemos chegar à conclusão de que a nossa lei, a despeito de tôda a sua complexidade, não garante justa proporcionalidade entre os partidos, e permite, na prática, injustiças que não são menores do que as que motivaram a condenação do sistema majoritário.

Voto preferencial

Em 1931, quando se cogitava de elaborar a legislação eleitoral prometida pela revolução vitoriosa, escrevia GILBERTO AMADO: “Além dos argumentos de justiça, os argumentos em favor da representação proporcional tiram sua fôrça da prova que fazem de que é a representação proporcional o único meio de preservar o país das influências meramente locais, privilégio do voto de circunscrição. O voto proporcional é dado às idéias, ao partido, ao grupo. O voto de circunscrição, o voto distrital, o voto de simples maioria, é dado ao indivíduo, ao compadre, ao amigo, ao boss, ao chefe local, ao candidato que pede, insiste, trafica com o eleitor” (“Eleição e Representação”, pág. 70).

Esta argumentação, àquele tempo, baseava-se, como era natural, na experiência européia, particularmente a alemã, e nos prognósticos dos arautos do sistema proporcional. Aquêle poderia ser o quadro político em país de cultura mais avançada do que a nossa, e em que os partidos, além de separados por nítidas características históricas ou ideológicas, apoiassem a sua disciplina na rigidez das listas bloqueadas. Mas, o sistema que praticamos no Brasil é, por excelência, o do voto preferencial, isto é, o do voto dado mais às pessoas do que aos partidos, o do voto dado menos para escolher entre princípios abstratos do que para optar, realìsticamente, entre as solicitações de interêsses de tôda a sorte que dão à política a sua condição humana.

Ao contrário do que se poderia esperar, a representação proporcional, entre nós, exacerbou os inconvenientes das influências locais, que passaram a ser objeto de acirrada e às vêzes onerosa competição. A corrida ao voto preferencial faz com que sòmente sejam bem sucedidos os chefes locais de prestígio, ou os candidatos que conseguem o seu apoio. O resultado das últimas eleições, em que a Câmara Federal foi renovada em mais de dois terços (em 304 sòmente se reelegeram 90 deputados), demonstra que o eleitorado escolhe sem qualquer consideração de interêsse partidário geral, de tal maneira que não se puderam salvar nem os chamados grandes nomes, nem muitos dos chefes mais categorizados. O populismo elegeu alguns representantes, mas a grande maioria dêles deve a eleição ao apoio municipal.

E’ possível que, em certos casos, o voto proporcional haja contribuído para melhorar qualitativamente a representação. Isso é contestado, mesmo em países como a Suíça, onde se atribui ao sistema exatamente a influência oposta. Quanto ao Brasil, parece que não se pode dizer que, intelectualmente, o Congresso esteja pior ou melhor. Considerado em conjunto, é positivo que o país está mais culto e mais político do que há 30 ou 40 anos. Diante dos resultados do voto secreto e da justiça eleitoral, é também inegável que a representação atual é mais democrática, porque efetivamente escolhida pelo eleitorado. Mais, o que êsse eleitorado elege é menos o defensor de algumas idéias gerais, ou pregador de alguma reforma, do que o representante de interêsses partidários que são, acima de tudo, interêsses locais, cujo raio de ação alcança desde a construção de uma estrada ou de um prédio escolar, até a subvenção para a Sociedade de São Vicente de Paula, sem precisarmos citar o que mais de perto fala ao coração dos militantes partidários, que é a capacidade do candidato eleito para facilitar o acesso aos empregos públicos.

14. São os povos de língua inglêsa os únicos que se mantêm indiferentes às seduções da representação proporcional. Na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, nos Domínios, as eleições para o Poder Legislativo continuam a ser feitas pelo sistema tradicional, ou seja, pelo voto plural de um só escrutínio, através de circunscrições uninominais. Nesses países, a representação proporcional não conquistou sequer as preferências da doutrina, ou a adesão dos reformadores, tudo indicando que nêles o sistema eleitoral vigente permanecerá inabalável ainda por muito tempo.

Ao que observa ANDRÉ SIEGFRIED, “os inglêses, gente prática e que não ama a política de princípio, não se tem jamais desviado do turno majoritário único, que decerto deforma a representação, mas conduz à existência de grandes partidos disciplinados, sustentáculos de gabinetes duráveis” (apud DUVERGER, ob. cit., prefácio).

Nisso, como em tantas outras coisas, cabe indagar se na arte do govêrno democrático, devemos preferir o método anglo-saxão, que se apega ao que é prático e sensato; ou o estilo das instituições voltadas para o espírito de sistema e o gôsto das generalizações doutrinárias.

Será razoável, no presente estágio de nossa cultura política, esperar que os dez milhões de eleitores brasileiros escolham, entre programas, princípios, idéias gerais, de preferência a fazê-lo em razão das pessoas, dos fatos humanos e das coisas palpáveis, que influem no exercício do sufrágio? Essa expectativa estaria mais próxima da República de Platão do que das realidades políticas, que o legislador não deve perder de vista e que são indiferentes ao apêlo das utopias.

O eleitor brasileiro, tão humano quanto o da França ou dos Estados Unidos, preocupa-se mais com as pessoas que exercem os cargos de govêrno do que com os princípios que porventura representem. Em nenhuma região, município ou distrito, encontraremos as preocupações de ordem geral predominando sôbre a política prática, que gira em tôrno de pessoas físicas e de problemas concretos, cuja solução depende do poder público. Problemas de transporta, de educação, de saúde, de desenvolvimento econômico, de moralidade administrativa, enfim problemas sensíveis, agudos ou urgentes, que a opinião pública não deseja ver transferidos para plano acadêmico. Num país subdesenvolvido como o Brasil, onde quase tudo depende do govêrno, as doutrinas não modificam os costumes, e a só política das subvenções orçamentárias destrói muitas das ilusões e pressupostos da representação proporcional.

15. Dizer-se que o mandato deve ser do partido, e não dos eleitores, não altera a realidade da vida política. As condições peculiares do nosso país – a sua enorme extensão geográfica, a incultura de sua população, os desajustamentos econômicos, a ausência de tradições partidárias, a sobrevivência de costumes políticos primitivos – se não repelem ou impossibilitam a prática da representação proporcional, dificultam enormemente a sua aclimatação ao nosso meio, impondo-lhe deformações que anulam algumas de suas principais virtudes.

Por definição, a representação proporcional é a distribuição da representação política por todos os partidos, a fim de que possam atuar no govêrno tôdas as correntes de opinião, tôdas as ideologias políticas, que se agitam para a conquista do poder. Ora, isso a rigor não se pode verificar entre nós, porque, se temos grupos de ação partidária, numerosos e autônomos, não podemos dizer que disso decorra uma nítida diferenciação de idéias políticas.

É inútil traçar qualquer sensível diversificação de princípios pelos quais os nossos partidos se possam distinguir uns dos outros. Era fácil fazê-lo em relação ao Partido Comunista, que já não tem existência legal. Será possível fazê-lo, pelo menos nominalmente, em relação ao Partido Socialista. Quanto aos outros, que concentram 99% da representação na Câmara dos Deputados, não temos como identificar os princípios que porventura os separem. É: certo que o Partido Trabalhista dá maior ênfase as reivindicações das classes obreiras, mas os princípios por que êle se bate são também aceitos pelos demais partidos. É certo também que o Partido Libertador coloca a sua tônica na luta pelo parlamentarismo, mas nenhum partido a isso oficialmente se opõe e, em todos êles, as adesões ao parlamentarismo se avolumam de dia para dia. Dos dois grandes partidos dos Estados Unidos costuma-se dizer que são duas garrafas vazias, com rótulos diferentes. Não sei se o conceito pode ser aplicado ao caso brasileiro, mas é inegável que aqui, como na grande democracia, as cogitações de doutrina são como que colocadas à margem.

Nestas condições, um dos objetivos teóricos da representação proporcional, a necessidade de dar-se expressão legal a tôdas as correntes de opinião, ainda não tem no Brasil contemporâneo um sentido de real oportunidade: A lei eleitoral distribui os cargos legislativos entre vários grupos de ação política, entre partidos que são também instrumentos constitucionais do govêrno, mas isso não reflete diferenciações ideológicas, que não existem, nem pode gerar compulsòriamente essas diferenciações.

Importa ainda assinalar, no nosso caso, os riscos possíveis da representação proporcional, em virtude da falta de homogeneidade social que caracteriza o nosso país, considerados os enormes desníveis da nossa civilização política. O crescimento vertiginoso das nossas cidades, determinado pela expansão industrial e agravado pela nossa cegueira administrativa, que concentra nas capitais dois terços dos serviços, dos recursos, das preocupações do poder público, tende a aumentar a distância existente entre o país urbano e o país rural. Um sistema de circunscrições menores possivelmente representaria a nação com exatidão maior do que o atual sistema de listas por círculos estaduais, que aos poucos vai deslocando, para as grandes metrópoles, a decisão de tôdas as campanhas políticas.

Num país como a Bélgica ou a Dinamarca, a base geográfica da representação seria uma consideração talvez destituída de interêsse. Mas no Brasil a geografia tem a maior importância como dado de organização política. A simples representação por Estados talvez não seja suficiente para assegurar a forma mais justa de representação de todo o povo brasileiro, que não pode ser considerado apenas como expressão numérica, mas como população ligada a um território coberto por mais de 10.000 comunidades sociais. A representação não deve ser dividida apenas entre grupos políticos ou fórmulas abstratas, mas também tendo em consideração que tôdas as áreas políticas devem ser efetivamente representadas.

16. No terreno doutrinário a representação proporcional tem obtido todos os triunfos. Com a exceção, já assinalada, dos países de origem inglêsa, quase por tôda a parte o voto majoritário tende a ser por ela suplantado. Ainda existem reformadores convencidos, como GAMBETTA, de que a representação proporcional é o voto das grandes correntes, no qual a imagem da pátria se reflete como num espelho, enquanto que “o voto uninominal é um espelho quebrado em 1.000 facêtas e em que a pátria não pode reconhecer a sua imagem”. É uma bela figura literária, mas não é um conceito que possa ter curso na ciência política. Em nenhum país o poder é mais nacional, mais unitário, mais uniforme, do que na Grã-Bretanha, onde nunca se praticou outro sistema de voto que não o dá circunscrição uninominal. O mesmo se poderá dizer dos Estados Unidos e do Canadá, onde, a despeito da descentralização federativa, o sistema eleitoral jamais foi tido como inadequado para expressar a vontade comum do povo no govêrno das duas grandes nações. A própria França de GAMBETTA, a França da Terceira República, adotou o sistema uninominal durante quase 70 anos, no período em que foi mais unida e mais forte, na fase em que construiu seu império colonial e exerceu papel dominador entre as grandes potências.

A doutrina prefere a representação proporcional. A experiência, o senso prático, o realismo político, coisas que não são apenas temas de conferência, apontam a representação de base geográfica como uma solução talvez mais aproximada da natureza das coisas e da realidade social, que é, muitas vêzes, inamoldável às concepções do idealismo reformador. Meio século de prática generalizada da representação proporcional já nos fornece elementos para uma revisão de conceitos, ou uma limitação de esperanças. É positivo que já não podemos pensar no proporcionalismo como remédio infalível para os males que afligem a sociedade do nosso tempo.

Mesmo na literatura política a representação proporcional está sofrendo freqüentes impugnações. Isso ocorre particularmente na França, onde ela conta com adversários encarniçados. Entre outros, MICHEL DEBRÉ advoga o retôrno ao escrutínio majoritário, advertindo que tôda a República que o abandona toma um caminho difícil e perigoso (MICHEL DEBRÉ, “La République et son Pouvoir”, pág. 64).

No livro que publicou em 1941, após vários anos de pesquisas, o Prof. HERMENS defendeu a tese de que a representação proporcional é o cavalo de Tróia da democracia. Êsse estudo, que submete a experiência européia a um verdadeiro trabalho de demolição, conclui com a observação seguinte:

“Os países que adotaram a representação proporcional e nos quais a democracia faliu são a Itália, a Alemanha, a Áustria, a Polônia, a Letônia, a Lituânia, a Estônia, a Bulgária, a Grécia, a Iugoslávia e a Tcheco-Eslováquia. A população total dêsses países era, em 1937, de 198 milhões de habitantes. As nações que têm a representação proporcional e nas quais até a deflagração da guerra de 1939, a democracia sobreviveu são a Irlanda, a Bélgica; o Luxemburgo, os Países-Baixos, a Suíça, a Dinamarca, a Suécia, a Noruega e a Finlândia. A sua população total, na mesma data, era de 40,6 milhões. Esta é uma proporção de quase cinco por um. Está visto que esta enumeração não exprime mais do que uma correlação estatística. Entretanto, já dissemos bastante para tomar o índice de mortalidade de 80%, que essa comparação revela no espaço de pouco mais da metade de uma geração, como uma indicação clara dos efeitos políticos da representação proporcional. Compare-se isso com a longa duração das instituições democráticas nos países com o sistema do voto plural, tais como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha!” (“Democracy or Anarchy”, pág. 356).

A representação proporcional no Brasil ainda está na primeira infância. Não há contra ela movimento de opinião ou sinais de oposição ponderáveis. Ela tem em seu favor o apoio entusiástico dos pequenos partidos, para os quais é condição de vida e de morte. Além disso, a consagração que lhe dá o texto da Constituição federal é segura garantia de longevidade, tomado o conceito com as cautelas que o meio e a história estão a recomendar.

De qualquer modo, porém, temos que estar atentos aos resultados de uma experiência que, decerto, ainda não falhou, mas que já começa a matar muitas ilusões. O proporcionalismo está funcionando, entre nós, com imperfeições visíveis a ôlho nu, parecendo que muitas de suas supostas virtudes intrínsecas não resistem às mudanças do meridiano político. É preciso que a cada passo o legislador faça as adaptações necessárias e as correções mais urgentes. Mas, é preciso também que não confiemos tudo ao legislador, que é impotente para mudar costumes, tradições, peculiaridades culturais de raízes profundas. Podemos dizer das leis eleitorais o que BARTHELEMY diz das Constituições: mesmo que as mandássemos elaborar por SOLON e LICURGO, “não há carta que dispense os homens de serem justos e sábios e que os torne felizes e tranqüilos, a despeito de suas loucuras”.

_____________

Notas:

* Conferência pronunciada, no Instituto de Direito Público e Ciência Política, da Fundação Getúlio Vargas.

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  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
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