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Comportamento societário coerente
16/05/2022
Neste artigo, Gladston Mamede, Eduarda Cotta Mamede e Roberta Cotta Mamede discorrem sobre affectio societatis e o comportamento societário coerente. Acompanhe!
Comportamento societário coerente
Há questões jurídicas que deveriam ser comezinhas, mas que ainda engasgam no seu tratamento, seja porque faltam ajustes de sintonia fina para o adequado entendimento, seja porque são objeto de alguma resistência, para não falar de equívocos oriundos de uma cultura conceitual que expressa alguma inconsistência ou imprecisão (maior ou menor, conforme o caso).
A compreensão do Direito e de sua Teoria como um grande espaço dialogal (uma ágora, como em Atenas, ou fórum, em Roma) permite um processo de revisão e adequação constantes: um esforço de melhoramento. Para nós, aliás, um esforço ético e político: a valorização dos espaços de construção democrática de ações comunicativas diversas dadas no âmbito de múltiplas instituições/ambientes, a exemplo das academias, das Cortes e mesmo alhures.
Affectio societatis
Um dos temas mais elementares de Direito Societário e que, paradoxalmente produz mais confusões, é a chamada affectio societatis. Isso decorre da má-vontade de alguns e da má-compreensão de outros, ambas posturas levando ao entendimento equivocado de que a figura nomeada em latim diria respeito ao sentimento dos sócios: uma afeição.
Em fato, o vocábulo affectus, em latim, dá origem à palavra afeto, em português: um sentimento de ternura para com outrem. Entretanto, affectus também irá derivar para afeito: que se faz na medida de. No primeiro caso, um sentimento (e, assim, inútil ao estudo do Direito Societário). No segundo caso, uma postura e, consequentemente, aquilo que tem proveito jurídico para o estudo das corporações.
“A contratação da sociedade exige comprometimento de seus sócios, não apenas com o cumprimento das cláusulas avençadas, mas igualmente um comportamento compatível com a constituição de uma coletividade com objetivos econômicos. Isso demanda atenção ao conjunto de princípios jurídicos aplicáveis ao Direito Societário.” (MAMEDE, Gladston. Direito Societário: direito empresarial brasileiro. 14.ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 79) Essa é uma questão essencial, basilar: quem está numa sociedade deve manter um comportamento coerente com a ideia/conceito de sociedade. Dito pelo ângulo oposto, não se pode usar da condição de sócio para trabalhar contra a coletividade social: os demais sócios e/ou a pessoa jurídica.
Há sim aqueles que, tanto no mercado, quanto na teoria e na prática jurídicas, aceitam o contrário. Consideram ser lícito a qualquer um assumir a condição de sócio e, uma vez no seio da corporação, agir orientado exclusivamente por seus interesses e metas, ainda que isso implique em prejuízo aos demais sócios e/ou à pessoa jurídica.
Há nisso um contrassenso que agride princípios do Direito Privado Moderno que, como se sabe, calça-se na ideia de Estado Democrático de Direito e nos fundamentos inscritos nas disposições dos cinco primeiros artigos da Constituição da República. Referimo-nos à indispensabilidade de atuação privada que se paute por socialidade (princípio da função social das faculdades jurídicas), moralidade (princípio da probidade) e eticidade (princípio da boa-fé).
Distinções necessárias
Portanto, não se pode descurar que “os sócios devem agir de maneira coerente com o que contrataram, o que inclui o dever de fidúcia (de se fazer confiar, de agir de maneira coerente com haver contratado uma sociedade) e de lealdade. […] Assim, os sócios devem revelar em seu comportamento (comissivo e omissivo) uma disposição para a vida societária. Em suma, dever de fidúcia e lealdade para com a sociedade e para com os demais sócios, todos parceiros de uma mesma contratação.” (MAMEDE, Gladston. Direito Societário: direito empresarial brasileiro. 14.ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 80)
Toda a confusão que se cria entre afeto e afeito tende a desconhecer esse parâmetro mínimo: quem compõe uma sociedade deve adotar postura e atuação compatível com a assunção da condição de sócio. Noutras palavras, é preciso revelar postura altruísta, social, urbana, colaboracional. Pelo ângulo inverso, é preciso limitar os impulsos agonísticos: disputa, enfrentamento, egoísmo e egocentrismo. Do contrário, rompe-se com o animus contrahendi que é próprio e específico da assunção das faculdades/obrigações próprias da condição jurídica de sócio, mesmo nas pessoas jurídicas institucionais (estatutárias).
São aclaramentos óbvios, bem sabemos. Chover no molhado, dirão alguns. Mas certas verdades precisam ser repetidas e reiteradas a bem da realidade, do cotidiano e da construção do futuro. Há correntes doutrinárias e práticas jurídicas e negociais que se assentam sobre a lógica da rapinagem: uma extremação do interesse individual sobre o bem-estar das coletividades (micro coletividades e até a macro coletividade: a sociedade em geral, organizada sob a forma de Estado). A partir daí se estabeleceriam contextos de desconfiança e inconfidência, deslealdade e sujeição, ambientes de má-fé e imoralidades (maiores ou menores), vale dizer, sem principiologia jurídica sustentável.
Sociedades são coletividades e como tais devem ser compreendidas e concretizadas. Quem adere a um espaço coletivo deve ser comportar de forma coerente. Essa é a melhor tradução de affectio societatis.
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