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A responsabilidade dos Estados em direito internacional

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REVISTA FORENSE

A responsabilidade dos Estados em direito internacional

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REVISTA FORENSE 150

Revista Forense

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02/05/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 150
NOVEMBRO-DEZEMBRO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICARevista Forense 150

Ortotanásia ou eutanásia por omissão – Nélson Hungria

DOUTRINA

  • A responsabilidade dos Estados em direito internacional – Raul Fernandes
  • Os funcionários públicos e a Constituição – Carlos Medeiros Silva
  • Responsabilidade dos juristas no Estado de Direito – José de Aguiar Dias
  • Defesa dos postulados essenciais da ordem jurídica – Murilo de Barros Guimarães
  • O Código Civil e a nova concepção do direito de propriedade – Abelmar Ribeiro da Cunha
  • Evolução do Direito Social brasileiro – A. F. Cesarino Júnior
  • Divisibilidade – seu conceito no direito privado – Alcino Pinto Falcão
  • A analogia da lei comercial em face das fontes subsidiárias do direito – Mário Rotondi

PARECERES

  • Impostos estaduais – Excesso de arrecadação nos municípios – Bilac Pinto
  • Instituto do açúcar e do álcool – Fixação de preços – Intervenção do Estado na ordem econômica – Castro Nunes
  • Governador – Incompatibilidade do mandato com o cargo de ministro de Estado – Osvaldo Trigueiro
  • Testamento – Regras de interpretação – Descendentes e filhos – Fideicomisso – Antão de Morais
  • Locação comercial – Retomada para uso próprio – Notificação – Luís Antônio de Andrade
  • Deputado – Perda de mandato – Licença para tratamento de interesses particulares – Antônio Balbino
  • Requisição de bens e serviços – Tabelamento de preços – Comissão federal de abastecimento e preços – Teotônio Monteiro de Barros Filho

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A inconstitucionalidade do prejulgado trabalhista – Alcides de Mendonça Lima
  • Responsabilidade civil por danos causados por aeronaves estrangeiras a terceiros e bens a superfície Convenção de Roma – Euryalo de Lemos Sobral
  • Sôbre o conceito de Estado – Jônatas Milhomens
  • As autarquias estaduais e as concessões de serviços de energias elétrica – José Martins Rodrigues
  • A filiação adulterina no direito brasileiro e no direito francês – Válter Bruno de Carvalho
  • Recurso ordinário em mandado de segurança – João de Oliveira Filho
  • A habitação como acessório salarial – Carmino Longo
  • Operações bancárias – Francisco da Cunha Ribeiro

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: Limitação das soberanias. Tratados e costumes internacionais. Origem e medida de responsabilidade. Alguns exemplos. Decisões dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Lesão de direitos de pessoas estrangeiras. Motins e guerra civil. Casos ocorridos no Brasil e em outros países. Cobrança de dividas. Doutrina dê DRAGO. Conclusão.

Sobre o autor

Raul Fernandes, ex-ministro das Relações Exteriores

DOUTRINA

A responsabilidade dos Estados em direito internacional

* A responsabilidade dos Estados em direito internacional é o problema central do direito pias nações, no conceito de autoridades tão qualificadas como o Sr. HILDEBRANDO ACCIOLY1 e o saudoso Dr. VITOR MAURTUA,2 emérito internacionalista e diplomata, peruano, de quem todos nos recordamos com saudades, pois aqui faleceu colho embaixador de seu pais, e era um fervoroso amigo do Brasil.

A importância da matéria não decorre sòmente do imenso campo de aplicação de seus princípios, que apanham o Estado em tôda a sua atividade, assim exterior como doméstica, mas ainda das controvérsias de doutrina e de jurisprudência suscitadas pelo desenvolvimento dêsses princípios, quando postos em obra para solução dos litígios emergentes.

Sou reconhecidamente dotado de certo poder de síntese, mas não sei como me aplicar com êxito em resumir numa breve palestra um mare magnum de tal densidade, que só dificilmente se atravessará num curso integral de algumas lições.

Serei, pois, forçado a um esquema, um esqueleto, pouco mais do que um sumário, tanto mais apertado quanto o próprio enunciado do tema que me foi proposto obriga-me a ilustrar algumas proposições com exemplos tirados dos precedentes, o que, aliás, facilita a compreensão do assunto e, ao mesmo tempo, mitiga, em parte, a aridez desta alocução.

Direi, assim, tão sucintamente quanto possível, sabre os fundamentos da responsabilidade dos Estados em direito internacional, sôbre os atos e fatos que podem origina-la, direta ou indiretamente, e sôbre as causas de exoneração.

Essa responsabilidade existe; os fatos a comprovam freqüentemente. Não obstante, há autores, como PRADIER FODÉRÉ, FUNCK-BRENTANO e SOREL, que a negam radicalmente, sob o fundamento de que os Estados, sendo soberanos, não conhecem poder superior que lhes possa reconhecer faltas e sanciona-las.

Tal objeção, rejeitada pela corrente dos juristas é superada na prática Internacional cotidiana, já estava fulminada desde o tempo de Luis XIV por BOSSUET,3 quando distinguia entre o govêrno absoluto e o govêrno arbitrário. O govêrno absoluto, dizia êle, tira êste caráter do fato de não estar sujeito a nenhum outro poder no Estado; mas daí não se segue que êle seja arbitrário, pois há leis nos impérios que fulminam de nulidade tudo o que se faz com seu desprezo.

Nas relações entre Estados é manifesto que a soberania de cada qual há de ser limitada pela obrigação de respeitar seus próprios deveres para com as outras soberanias. Êsses deveres são prescritos pelo direito internacional.

É certo que a lei internacional, no sentido técnico da palavra, não existirá enquanto um órgão não se constituir com a função de criá-la. As Nações Unidas não tiveram a coragem de conferir êsse poder, mesmo inter partes, à sua grande Assembléia, como poderiam ter feito com vantagem para todos, e sem risco para ninguém, mediante certas qualificações da maioria deliberante, tal como assentaram, nas suas relações recíprocas, as Repúblicas americanas, segundo o Tratado do Rio de Janeiro, de 1947.

Tratados e costumes internacionais

Mas, mesmo na imperfeita sociedade em que vivemos internacionalmente, certas normas de procedimento existem, cuja observância é obrigatória.

Umas, criam desde logo obrigações mútuas, e tais são as que decorrem dos tratados concernentes a determinados negócios. Por exemplo, os tratados de paz e os de limites.

Outras, são estabelecidas nos tratados Normativos, que não estipulam prestações, recíprocas ou não, e por isso não são propriamente contratos, e sim uniões, em que os Estados participantes firmam a vontade e a obrigação comuns de observarem certas regras de convivência. A Declaração de Paris, de 1858, o Covenant da Sociedade das Nações, a Carta de São Francisco, são exemplos conspícuos desta espécie de fonte de direitos internacionais.

A prática generalizada, uniforme e duradoura de certos atos, ou omissões, na vida de relações dos Estados, constitui os costumes, que atestam a adesão geral a determinadas normas de procedimento, e são, como tais, uma terceira fonte do direito internacional.4Essas três ordens de preceitos constituem o assento de direitos e correlativos deveres dos Estados.

Origem e medida de responsabilidade

Estes deveres são a origem e a medida da sua responsabilidade. Mas o Estado, pessoa moral, só age por intermédio das autoridades revestidas de um poder delegado. O comportamento dêsses órgãos, ou agentes, e só ele, empenha a responsabilidade estatal; e se esta responsabilidade, como se vê corretamente, pode decorrer de atos praticados por pessoas não revestidas de qualquer autoridade pública, ainda aqui ela só existirá em razão de falta imputável a agentes ou prepostos do Estado, negligentes em prevenir, ou, pelo menos, em reprimir êsses atos.

Decisões dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo

Pouco importa, na esfera Internacional, a natureza das atribuições cometidas a tal ou qual órgão ou agente do poder público. A economia do govêrno exige internamente a partilha dessas funções entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um com seus próprios agentes distribuídos hieràrquicamente. Da unidade da soberania decorre que as violações do direito imputáveis a qualquer desses órgãos ou agentes acarretam a responsabilidade do Estado.

Assim, quanto ao Poder Legislativo, seja como for a sua organização nacional, incumbe-lhe editar as leis necessárias ao cumprimento das obrigações internacionais do Estado, derivadas dos tratados ou dos costumes estabelecidos; e ao mesmo tempo lhe corre o dever negativo de se abster de legislar em contrário a essas obrigações.

A infração dêsse dever por ato ou omissão do Poder Legislativo acarreta a responsabilidade do Estado; princípio êste que vige também na ordem interna, dentro de conhecidos limites, e impera com o mesmo rigor, porém com maior extensão, na ordem externa.

Citarei três exemplos da aplicação desta doutrina. Por uma convenção de 14 de março de 1884, para a proteção dos cabos submarinos, as potências contratantes, entre as quais a Grã-Bretanha, obrigaram-se a tomar as medidas legislativas necessárias para assegurar a execução do ajuste, especialmente para punir com prisão e multa os contraventores de certas cláusulas. Na Grã-Bretanha, a proposta do govêrno para êsse efeito foi emendada no Parlamento, segundo o interesse de companhias proprietárias de cabos submarinos, e a lei, em certos pontos, saiu contrária ao tratado. Os signatários, em conseqüência, firmaram um protocolo pelo qual a Convenção entraria em vigor em 1° de maio de 1888, sob a condição de que se reputariam sujeitos às suas estipulações os governos contratantes que até essa data não houvessem adotado as medidas legislativas internas adequadas. O Parlamento britânico inclinou-se, e votou a lei necessária. A impunidade legal dos atos declarados repressíveis pela Convenção poderia acarretar, como se vê, a responsabilidade do Estado omisso em modificar a sua legislação.

Também na célebre arbitragem de Genebra para dirimir as reclamações americanas contra a Grã-Bretanha no caso do corsário “Alabama”, o Tribunal (em que um dos três árbitros foi designado pelo imperador do Brasil) aplicou a mesma doutrina, declarando em sua sentença “que o govêrno de sua majestade britânica não podia se escusar de falta de diligência alegando a insuficiência dos “meios legais de que dispunha”. Se um Estado não cumpre o dever de editar a legislação necessária para executar suas obrigações internacionais, incorre em responsabilidade e deve reparação dos prejuízos causados por sua omissão.

O terceiro precedente ocorreu á propósito do Tratado de Paz de Versalhes, de 28 de junho de 1919, cujo art. 80 dispunha:

“A Alemanha reconhece e respeitará estritamente a independência da Áustria dentro das fronteiras que se fixarão no tratado a celebrar-se entre êsse Estado e as principais potências aliadas e associadas; reconhece que essa independência será inalienável sem o consentimento da Sociedade das Nações”.

Pouco depois, a Constituição alemã de 11 de agôsto de 1919 exarava o seguinte preceito (art. 61):

“A Áustria alemã depois de sua reunião ao Império alemão terá o direito de participar no Conselho do Império com o número de votos correspondente à sua população”.

O govêrno francês protestou contra êsse texto perante o Conselho da Sociedade das Nações; e, transmitido o protesto ao govêrno do Reich, êsse artigo da Constituição de Weimar foi suprimido.

Verdade é que, 20 anos depois, o anschluss se operou pela intervenção militar de Hitler, sem oposição das potências e, sem responsabilidade imediata por tão escandaloso ato de fôrça. Esta era, e desgraçadamente ainda é, a ultima ratio…

O Poder Judiciário é organizado, nas democracias modernas, com atributos especiais de independência em relação aos outros poderes políticos. Entre nós, especialmente, essas garantias, consubstanciadas na inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos dos magistrados, são as mais completas. Pelos erros ou desvios dêsse Poder o Estado é irresponsável na ordem interna, pois as decisões judiciárias, depois de esgotados os recursos processuais, constituem coisa julgada que pro veritate habetur. A ilegalidade da decisão motiva, é certo, a ação rescisória; mas desta conhece o próprio Tribunal que houver julgado a causa em última instância; pois, se as sentinelas se escalonam ao longo da hierarquia, mas só dentro dela; porque se trata de um poder independente, pela natureza das coisas uma dessas sentinelas há de ser a derradeira, diante da qual fica sem resposta a pergunta – quis custodiet ipsos custodes?

Na esfera internacional, porém, as coisas se passam diferentemente. Pode o Estado ser responsabilizado por denegação de justiça, a qual ocorre – ou porque a sentença negue ao estrangeiro o aceso legal aos tribunais, ou porque a decisão postergue flagrantemente as regras inconcussas do direito, ou, ainda, porque se retarde tanto que, afinal, já não tenha nenhum efeito prático.

Daqui resulta que, nestes casos, o estrangeiro tem situação melhor do que o nacional. Não porque êle tenha um recurso que ao nacional falece, pois não há propriamente recurso, nem a sentença é Infirmada por decisão de poder estranho. A resistência oposta pelo Estado, de que é súdito o litigante em causa, não se funda em direito dêste, não o vindica. Ela assenta num direito do próprio Estado reclamante, qual o de proteção aos seus nacionais, a cujo tratamento justo as nações estão internacionalmente obrigadas, umas para com as outras.

Por esta razão, como veremos adiante, é que as cláusulas hispano-americanas de irresponsabilidade internacional, estabelecidas em lei ou estipuladas em contratos administrativos passados com estrangeiros, visando a prevenir reclamações diplomáticas fundadas em danos pecuniários, ou em violações de direito outras, são tachadas de nulas pelos Estados Unidos da América, pela Grã-Bretanha e pelos países europeus em geral, bem como pela unânime doutrina aí professada.

Pràticamente e ao cabo, se em instância internacional, ou em negociação diplomática, o Estado incriminado se vê obrigado a compor o dano arrogado pela sua Justiça deficiente, a composição, por liberalidade do Estado vencedor, pode verter, e quase sempre verte (ainda que não necessàriamente), em favor do seu súdito. E é sob êste aspecto que pode dizer-se que a reclamação por denegação de justiça constitui uma desigualdade entre litigantes, sendo mais favorecido o estrangeiro do, que o nacional.

Os fundamentos da responsabilidade dos Estados por motivo de decisões judiciárias foram lapidarmente resumidos por CHARLES DUPUIS nestas palavras que vale a pena transcrever: “Freqüentemente se pôs em dúvida, e muito sem razão, a responsabilidade do Estado em conseqüência de decisões de seus tribunais. Alegou-se que em virtude da separação dos poderes a autoridade judiciária, é independente e soberana. A separação dos poderes – fórmula um tanto confusa, aliás, senão obscura e errônea – é inteiramente estranha ao domínio das relações de Estado a Estado; ela só é válida internamente, onde traduz, em estilo ambíguo, a divisão de funções, ao passo que a unidade do Estado é a única a considerar-se em face dos outros Estados. Sem dúvida, há Côrtes soberanas no Estado soberano, o que vale dizer que há Côrtes que não sofrem a supervisão de ninguém; mas o Parlamento também é soberano na ordem legislativa, como o Poder Executivo é soberano no govêrno. Ora, o Estado, responsável por suas leis e por sua administração, não poderia deixar de sê-lo por seus julgamentos. De qualquer modo que se exerça a soberania interna, o Estado é responsável para com outros Estados por tôdas as faltas para com as soberanias estrangeiras, por tôda infração das obrigações internacionais. Não lhe é mais facultado romper com o direito das gentes por autoridade da Justiça do que pela fantasia do Parlamento ou pela desenvoltura do govêrno”.5

Esta questão foi objeto de uma sentença arbitral em um caso que, na ocasião, fêz grande ruído. Em 1891, Carpenter, súdito, britânico, capitão do navio australiano “Costa Rica Packet”, acusado de roubo, foi detido por ordem das autoridades judiciárias das Índias Neerlandesas. Pouco tempo depois, Carpenter foi liberado, pois o inquérito demonstrara que o delito fôra cometido fora das águas territoriais e, conseqüentemente, em lugar onde as autoridades holandesas não tinham jurisdição. O govêrno britânico tendo reclamado sem êxito uma indenização por via diplomática, foi a controvérsia consecutivamente submetida a Julgamento arbitral. O árbitro condenou o govêrno holandês a pagar a indenização.

Os atos e omissões do Poder Executivo em prejuízo de Estado estrangeiro, ou de súdito seu, constituem a causa mais freqüente de responsabilidade. Isto decorre òbviamente de que êsse Poder exerce atividade em todo o vasto domínio administrativo, mais exposto do que os outros, em razão da multiplicidade dos negócios que aí se tratam, a ocasionar erros, abusos e negligências.

Na hierarquia do govêrno, todos os órgãos, agentes, funcionários e prepostos – do mais graduado ao mais modesto agem em nome e sob a responsabilidade do Estado, que responde, conseqüentemente, pelas faltas e abusos que êles cometam no exercício de suas funções, ainda quando procedam em contrário à lei ou às instruções de serviço. Sem dúvida, por êsses desvios êles são responsáveis perante o Estado; mas êste, porque os investiu da sua autoridade, responde por tais transgressões perante terceiros prejudicados, inclusive e sobretudo perante os Estados estrangeiros.6

Lesão de direitos de pessoas estrangeiras.

Antes de mencionar alguns problemas que suscitam a responsabilidade internacional do Estado por prejuízos ocasionados a outros. Estados, ou a pessoas estrangeiras, pelo órgão de qualquer dos poderes políticos ou pelo comportamento de seus agentes, cumpre mencionar duas questões que, por sua generalidade, cobrem todos os casos de responsabilidade.

A primeira, é se a responsabilidade é puramente objetiva, vale dizer, se basta, para que ela ocorra, que a lesão do direito promane de ato ilícito e imputável a qualquer dêsses órgãos ou agentes. Os doutores discutem. O primeiro e mais qualificado monografista desta matéria, o professor ANZILLOTTI,7 que por 14 anos luziu como um dos mais provectos juízes da Côrte Permanente de Justiça Internacional, e com êle alguns outros, sustenta que o fato ilícito e imputável determina por si só a responsabilidade. Em outra opinião, influenciada pela doutrina civilista, inspirada no direito romano, a culpa é um terceiro elemento Integrante da responsabilidade. O indubitável é que êste parecer só é correto quando o ato incriminado é a falta de diligência no impedir ou reprimir as violações do direito praticadas por particulares contra o Estado estrangeiro ou seus nacionais. A prática internacional a êste respeito é constante e uniforme. Se se trata, porém, de violações praticadas pelos próprios poderes públicos, ou por seus agentes, neste caso a responsabilidade é objetiva e independente de culpa. A haver culpa, será, na linguagem do direito civil culpa in re ipsa.

A segunda questão, é a da responsabilidade do Estado pelos atos ou omissões de seus componentes políticos ou administrativos (Estados federados, províncias e municípios autônomos, autarquias). Essa responsabilidade é admitida sem discrepância de opinião, pois tais partilhas do poder são puramente internas e não conferem personalidade internacional aos Estados federados, e ainda menos a províncias, municípios e autarquias.

Daí decorrem dificuldades particulares quando a Constituição interna não deixa ao poder central uma autoridade suficiente para impor a todos – coletividades e indivíduos – a observância dos tratados ou das leis assecuratórias do cumprimento das obrigações internacionais.

A quase independência dos Estados da União – Norte-americana, e a autonomia tão larga outorgada aos Estados federados no Brasil, podem, sob êste aspecto, acarretar graves percalços; tanto mais que entre nós, cometidas a justiça e a policia aos Estados, e usando a União mui timidamente dos poderes implícitos nas suas atribuições expressas,8 o cumprimento de nossas obrigações internacionais, em grande parte, depende exclusivamente dos poderes estaduais.

São ilustrativos, a êste respeito, alguns precedentes norte-americanos:

Em Nova Orleans, alguns italianos foram processados por certos crimes, inclusive pelo assassinato do chefe de Policia local. Foram absolvidos; mas a absolvição indignou o povo. As autoridades, por precaução, reconduziram à prisão os réus absolvidos, mas omitiram qualquer medida para conter previsíveis excessos da população exaltada. O resultado foi o assalto e arrombamento da cadeia, e o linchamento dos italianos. O govêrno norte-americano pagou as Indenizações exigidas pelo da Itália; mas, prometendo fazer o que pudesse para submeter a processo os responsáveis pelo massacre, confessou que “muito provàvelmente não teria ação para constranger, com êsse propósito, as autoridades independentes da Luisiânia”.9

Em 1906, o condado de São Francisco decidiu criar escolas especiais para as crianças de origem asiática, onde seriam as únicas da sua raça, separadas, assim, rigorosamente, das crianças brancas, às quais outras escolas se reservavam. O governo japonês protestou contra essa discriminação, argüindo que ela infringia o tratado de 22 de novembro de 1904, que assegurava aos seus nacionais residentes nos Estados Unidos as mesmas liberdades é privilégios de que gozassem os cidadãos do pais, ou os súditos da nação mais favorecida. O govêrno federal dos Estados Unidos quis honrar seus compromissos, mas encontrou oposição do govêrno do Estado da Califórnia, que protestou contra a intromissão federal no assunto, alegando que isso violaria os seus direitos constitucionais. O conflito só se resolveu por negociações da União Federal, de um lado com o Japão, de outro lado com o governo da Califórnia, abolindo o govêrno estadual a discriminação contra os japonêses, ao mesmo tempo que o govêrno de Tóquio anuía à limitação da imigração nipônica no país, como na Califórnia se desejava vivamente. Mas o presidente da República sentiu a impotência a que o reduzia a legislarão federal para assegurar a estrita observância dos tratados, e em mensagem de 4 de dezembro de 1906 ao Congresso escreveu: “Peço muito sèriamente sejam modificadas as leis criminais e civis dos Estados Unidos, de tal maneira que o presidente, agindo em nome da União que é responsável pelas nossas relações internacionais, Possa proteger os direitos dos estrangeiros de acôrdo com os tratados. Na situação atual, o govêrno federal nada pode fazer neste sentido”.10

A responsabilidade, como vimos, pressupõe uma ação ou inação, infringente de obrigação internacional, imediatamente para com outro Estado, ou imediatamente para com pessoa sob sua proteção, e Imputável a órgão ou agente do infrator. Da primeira espécie recordaremos dois exemplos: o da França, em conseqüência do efêmero govêrno de Napoleão, evadido da ilha de Elba, e o do nosso Brasil, por motivo do tráfico de escravos.

No primeiro caso, havia antes de tudo uma falta pessoal imputável ao próprio Bonaparte, o qual, segundo proclamaram as potências signatárias do Tratado de Paris de 1814, “rompendo a Convenção que o estabelecera na ilha de Elba, destruiu o único título legal que protegia sua existência” e “reaparecendo em França com desígnios de perturbações e subversão; privou-se por si mesmo da proteção das leis e manifestou, à face do “universo, que com êle não pode haver paz nem trégua”. Declararam elas, em conseqüência, que “Napoleão Bonaparte se pôs fora da lei, e, como Inimigo e perturbador da paz do mundo, entregou-se ê, vindita pública”. Com o degredo na minúscula Santa Helena, perdida na vastidão do Atlântico, o corso fulgurante pagou a infração do Tratado de Fontainebleau, de 11 de abril de 1814, pelo qual renunciara ao trono de Franga.

Mas a culpa não era só do imperador vencido e destronado. A nação francesa não resistira à vibrante proclamação em que ele, desembarcando no gôlfo Juan, anunciara que “a águia vingadora voaria com as côres nacionais, de campanário em campanário, até pousar nas tôrres de Notre Dame”. O fascínio do homem venial arrastou o novo, e durante os cem dias, fugido LUÍS XVIII, ele se restabeleceu no trono. Derrotado, porém, em Waterloo, a França foi declarada responsável no Tratado de Paz de 20 de novembro de 1815, que estipulou contra ela sanções territoriais e pecuniárias, estas últimas fixadas na indenização, considerável na época, de 700.000.000 de francos.

O caso brasileiro é a pungente história de uma longa humilhação infligida ao pundonor. nacional.11 Herdáramos de Portugal o tratado de 22 de janeiro de 1815 com a Grã-Bretanha, pelo qual o governo de D. JOÃO VI se obrigou a abolir o comércio de escravos ao norte do Equador e a adotar, de comum acôrdo com essa potência, as medidas que melhor pudessem contribuir para a execução dêsse ajuste. Uma convenção adicional, de 28 de julho de 1817, estabeleceu, entre outras providências, o direito de visita e busca e a criação de comissões mistas, uma na África, outra no Brasil, para julgarem os apresamentos realizados pelos cruzadores das partes contratantes. Os africanos apreendidos seriam restituídos à liberdade, conforme as circunstâncias, na África mesmo ou no Brasil, onde o govêrno os encaminharia para trabalhar nas lavouras ou em estabelecimentos públicos, e lhes daria, em certo prazo, o certificado de sua condição livre. O Brasil independente confirmou êsses ajustes por uma convenção vigente desde 13 de março de 1827; na qual se estipulou que, três anos depois dessa data, não seria mais lícito o comércio de escravos na Costa da África pelos súditos brasileiros, comércio esse que, desde então, seria tratado como pirataria. Um artigo separado das convenções, assim confirmadas, estipulou que as medidas consentidas à Grã-Bretanha cessariam 15 anos depois de abolido o tráfico.

Para o govêrno brasileiro, êsse prazo de 15 anos contar-se-ia de 13 de março de 1830. Expirava, pois, em 13 de março de 1845, e neste sentido o govêrno britânico foi devidamente notificado. A resposta do govêrno da RAINHA VITÓRIA foi a votação, pelo Parlamento, da lei de 8 de agôsto de 1845, o chamado bill Aberdeen, em virtude do qual se conferiu aos tribunais do almirantado, e aos do vice-almirantado, o direito de julgar a captura de navios com a bandeira brasileira empregados no tráfico de escravos e de adjudicá-los, podendo a detenção e captura ser feitas por qualquer pessoa ao serviço de sua majestade.

O nó da controvérsia, que não tinha juiz, e havia de ser resolvida como entendia a Grã-Bretanha pela fôrça da sua marinha de guerra, então dominadora sem contraste nos cinco mares, consistia em que para o nosso govêrno, a captura dos navios brasileiros, em tempo de paz, só era possível por concessão nossa, e esta concessão expirara com o tratado que a estipulara em favor dos britânicos. O govêrno de Londres, porém, entendia que nos obrigáramos perpètuamente, não só a abolir o tráfico, mas a considerá-lo pirataria, o que juridicamente punha os Infratores fora chá lei.

O conflito durou até que o ominoso comércio foi realmente trancado por volta de 1852, quando as leis enérgicas votadas por iniciativa de EUZÉBIO e NABUCO DE ARAÚJO venceram a resistência dos traficantes e dos fazendeiros; mas nesse meio tempo os navios de guerra britânicos exerceram a vigilância, não só no alto-mar, mas sobretudo nas águas territoriais do Brasil, praticando, mesmo aqui, desembaraçadamente, a captura, a despeito dos nossos veementes protestos.

O primeiro dêsses protestos tem a data de 22 de outubro de 1845, em nota do ministro de Estrangeiros, LIMPO DE ABREU, mais tarde VISCONDE DE ABRETÁ, ao ministro de sua majestade britânica no Rio de Janeiro. O conselheiro LAFAYETTE, no seu livro “Princípios de Direito Internacional”,12 louva essa nota, qualificando-a como um “monumento de razão jurídica, de dignidade calma e serena, e da energia que dá a consciência do direito diante da prepotência da fôrça”. E exclama, não sem justa parcialidade (pois esquecia, sob a República, ministros da estatura de CARLOS DE CARVALHO e RIO BRANCO): “Que tempos felizes para o Brasil, em que êle tinha ministros de Estrangeiros da capacidade e do patriotismo do venerável e nunca assaz lembrado VISCONDE DE ABAETÉ!”

A ocasião mais freqüente da responsabilidade internacional do Estado verifica-se, porém, na lesão do direito de pessoas estrangeiras.

Os problemas a respeito dêste aspecto da responsabilidade são árduos e numerosos. Vejamos, per summa capita, os mais interessantes.

Qual a extensão do direito dos estrangeiros?

Motins e guerra civil

Responde o Estado por danos ocasionados a estrangeiros em motins ou guerra civil?

A responsabilidade pecuniária pode ser vindicada por intervenção armada?

A doutrina que prevalece nos países latino-americanos, inclusive o Brasil, é que, no tocante ao gôzo dos direitos civis, os estrangeiros residentes são equiparados aos nacionais. Esta equiparação, na Constituição de 1891, era sem reservas. As que vigoraram depois introduziram certas limitações, por exemplo: sôbre a propriedade de terras nas fronteiras e terrenos de marinha e sôbre o exercício de certas atividades que interessam à segurança nacional. A Convenção sôbre a condição dos estrangeiros, votada na 6ª Conferência Internacional Americana (Havana, 1928), estipula no art. 5° que:

“Os Estados devem conceder aos estrangeiros domiciliados, ou de passagem em seu território, tôdas as garantias individuais que concedem aos seus próprios nacionais, sem prejuízo, no que concerne aos estrangeiros, das prescrições legais relativas à extensão e modalidade dos direitos e garantias”.

Esta regra vigora na Holanda, na Itália, na Espanha. Em alguns países europeus, o sistema adotado é o da reciprocidade; em outros, e bem assim em alguns Estados da União Norte-Americana, limitam-se os direitos dos estrangeiros relativamente a institutos jurídicos especiais, tais como o direito de sucessão e a aquisição de bens imóveis. Estamos, assim, bem longe de um direito uniforme nesta matéria, e não devo ocultar que a tendência favorável à concessão de um estatuto especial aos estrangeiros já se vai acentuando, como atesta HILDEBRANDO ACCIOLY,13 seja na doutrina, seja nas resoluções do Instituto de Direito Internacional, seja na própria jurisprudência da antiga Côrte Permanente de Justiça Internacional, hoje Tribunal de Justiça Internacional. O Instituto, na sua reunião de Lausana, em 1927, adotou uma resolução, da qual consta o seguinte:

“Art. 4° Ressalvados os casos em que o direito internacional exija um tratamento do estrangeiro preferível ao do nacional, o Estado deve aplicar ao estrangeiro, contra os fatos lesivos provenientes de particulares, as mesmas medidas de proteção que aos seus nacionais. Conseguintemente, os estrangeiros devem ter, pelo menos, o mesmo direito de obter indenização que os nacionais”..

Quanto à Côrte de Justiça, numa sentença de 25 de maio de 1926, declarou a existência de um direito internacional comum que protege os estrangeiros contra medidas contrárias a êsse direito; ainda que tais medidas, na opinião generalizada dos internacionalistas europeus, sejam legítimas em relação aos nacionais.

Contra essa jurisprudência, e contra essa opinião, já me insurgi numa conferência pronunciada no Instituto dos Advogados em 1929, pois não sei o que seja o “direito internacional comum”, enquanto nas relações internacionais prevalecerem, como é forçoso, sòmente as normas consentidas por acôrdo expresso ou tácito dos Estados que elas devem reger.

Sem dúvida, há um direito comum, que se contrapõe ao direito singular ou de exceção. Mas, o que eu receava é que nesse direito comum, só estabelecido por acôrdo expresso ou tácito dos Estados, se pretendesse incluir o que os autores chamam os “padrões de justiça civilizada”, e o estatuto da antiga Côrte Permanente de Justiça Internacional denominava “princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas”, mandando aplicá-los na decisão dos litígios.

A mesma regra foi escrita no art. 38 do atual Tribunal de Justiça Internacional, e vejo, agora, o meu alarma de há 23 anos partilhado por KELSEN, o qual, analisando o preceito, duvida se tais princípios existem num mundo cujo antagonismo político e econômico se estenderá inevitàvelmente ao campo do direito, e, a existirem, se devem ser reconhecidos por todos os Estados, ou por um determinado número de Estados (o que de nenhum modo está definido), para receberem aplicação como regras de direito (HANS KELSEN, “The Law of the Unibed Nations”, New York, 1950, pág. 533).

O MARQUÊS DE SÃO VICENTE, um dos nossos mais abalizados jurisconsultos, sendo ministro de Estrangeiros em 1870, em nota à Legação italiana, que reclamava indenização por danos decorrentes do assalto e bombardeio de Paiçandu, escreveu êstes conceitos lapidares: “A garantia de segurança para o estrangeiro lhe é devida, não por essa qualidade, mas sim pela de habitante do pais. O estrangeiro não tem direito senão a uma proteção igual à que cobre os nacionais; fora disso, não se pode reconhecer naquele um direito mais extenso sem criar, em seu proveito, um privilégio, que, como tôdas as disposições excepcionais, não se deriva senão de uma lei formal ou de uso geralmente admitido. Quando um estrangeiro vai a um país, tem direito, sem dúvida alguma, à segurança de seus bens e de sua pessoa; mas é preciso não esquecer que essa garantia lhe é devida, não porque é estrangeiro, mas porque se torna habitante do pais”.

Neste particular,- os países latino-americanos foram, no correr do século XIX, e ainda nos primórdios do século XX, o campo de reclamações muitas vêzes injustas e excessivas. Foi com a lembrança dêsse fato que CHARLES DUPUIS14 escreveu que os estrangeiros abusaram, pedindo Indenizações sem proporção com os prejuízos sofridos, e com demasiada freqüência obtiveram de seus governos um apoio dado sem discernimento.

A experiência brasileira a êsse respeito é amarga. Nem sempre pagamos sem justiça, como, por exemplo, quando indenizamos com soma apreciável (1.010:000$000) as famílias dos engenheiros franceses Buette e Müller. Estes dois estrangeiros prestaram seus serviços técnicos à esquadra revoltada do almirante CUSTÓDIO DE MELO. Dominada a rebelião, foram contratados para reparos no couraçado “Aquidaban”, gravemente avariado em Santa Catarina. Recuperado o navio, de grande valor na época, o coronel MOREIRA CEBAR recolheu presos os engenheiros a uma fortaleza. Aí desapareceram os dois homens. Alegava o ministro da França que tinham sido fuzilados sumAriamente e reclamava indenização; de seu lado, o coronel MOREIRA CÉSAR afirmava que êles se tinham evadido. Mas o certo é que, se evadidos, apareceriam em alguma parte, e não só não apareceram, como as suas famílias em França dêles não tinham nenhuma noticia.

O govêrno pagou discretamente a Indenização, fazendo-o, embora, pela consideração dos valiosos serviços prestados por Buette e Müller à Fazenda Pública, sem reconhecer, nem negar, o fuzilamento, cuja prova dependeria de averiguações, As notas diplomáticas da Chancelaria brasileira salvaram ao mesmo tempo a face do govêrno e a Justiça. São documentos, êsses, brilhantemente redigidos e argumentados, o que não surpreende, pois seu autor e signatário foi o insigne ministro das Relações Exteriores, conselheiro CARLOS DE CARVALHO, um dos mais exímios jurisconsultos brasileiros de todos os tempos.15

Menos felizes fomos com os inglêses, com os quais novamente andamos às voltas, no ano de 1862 e seguintes, em dois incidentes lamentáveis. Na costa do Albardão, no Rio Grande do Sul, naufragou um barco mercante, o “Prince of Wales”. Grande parte da carga foi trazida à praia pelas ondas, e com ela os corpos de quatro marinheiros afogados. A autoridade mais próxima, um subdelegado de policia, estava a muitos quilômetros de distância. Logo que informada do naufrágio, acorreu ao local, acompanhada de um cônsul de sua majestade e de médicos. A autópsia revelou que os marujos haviam morrido por asfixia. Quanto à carga, pela maior parte tinha sido pilhada e alguns dos ladrões já se tinham pôsto a salvo além da fronteira. A Legação, porém, insinuava que os marinheiros tinham sido assassinados, pretendia que as autoridades tinham sido negligentes, e reclamava um pouco mais de seis mil libras esterlinas de indenização. A frente da missão britânica estava o ministro Christie, que êsse conflito tornou famoso. Homem tão competente e enérgico, quanto duro e intratável, foi surdo a tôdas as nossas alegações de que, nas circunstâncias do caso, nenhuma negligência podia ser imputada às autoridades brasileiras e, portanto, era irrecusável a irresponsabilidade do govêrno. Sobreveio, nesse meio tempo, outro incidente, o da fragata “Forte”; surta no pôrto do Rio de Janeiro. Dela desembarcaram à paisana o capelão, um tenente e um aspirante. Andaram pela cidade e foram parar na Tijuca. Beberam, como costumam fazer os marinheiros folgando em terra, e assim “intoxicados” insultaram á sentinela do pôsto policial do bairro, pelo que um alferes os recolheu ao xadrez, sem lhes saber a identidade nem compreender o que diziam na sua língua. Logo que Identificados, foram encaminhados à autoridade superior, que os mandou para bordo do seu navio. E foi tudo. A Legação Imediatamente exigiu a baixa do alferes de polícia, autor da prisão, o castigo da sentinela insultada e a censura pública do chefe de Polícia e do subdelegado do Engenho Velho. Respondeu-se-lhe que não havia razão para essas penalidades: as autoridades policiais em nenhum grau eram culpadas de ofensa à marinha Inglêsa, nem mesmo por negligência. Apesar disso, o govêrno britânico nos forçou a mão por meio de represálias, aprisionando cinco navios que demandavam a barra e desembarcando a carga, como penhor, numa ilha vizinha! Nosso govêrno pagou, embora protestando, a indenização pelos salvados do “Prince of Wales”, reduzida pelo próprio govêrno britânico a pouco mais de três mil libras esterlinas; e quanto ao caso da fragata “Forte”, propusemos, e foi aceita, a arbitragem do REI LEOPOLDO I, da Bélgica, prova de confiança na integridade dêsse monarca, tanto maior quanto êle era nada menos do que tio da RAINHA VITÓRIA.16

O laudo foi integralmente a favor do Brasil, dizendo que “consideradas as circunstâncias, não houve no procedimento das autoridades brasileiras ofensa à “marinha britânica”, cumprindo à Inglaterra, não só reatar as relações diplomáticas (pois tinham sido rompidas), como nos dar satisfações. Durante dois anos negociamos, por mediação do REI D. LUÍS, de Portugal, o cumprimento dessa decisão arbitral, e finalmente o Gabinete OLINDA considerou e aceitou a seguinte proposta: “O ministro plenipotenciário de sua majestade britânica junto à República Argentina, o Sr. Thornton, será enviado em missão especial ao Brasil. A sua chegada, solicitará a honra de uma audiência do imperador. Exprimirá a sua majestade imperial o pesar com que sua majestade soube das circunstâncias que surgiram por ocasião da interrupção das cordiais relações existentes entre as duas Côrtes; declarará que sua majestade nega, pela forma mais solene, tôda intenção de ofender a dignidade do Império brasileiro; que sua majestade aceita plenamente, e sem reserva, o laudo do rei dos belgas e será feliz de nomear um ministro para o Brasil logo que sua majestade imperial estiver disposto a reatar “as relações diplomáticas”.17 Em conseqüência da aceitação desta proposta, o enviado britânico apresentou-se a D. PEDRO II em Uruguaiana, onde o monarca visitava a praça assediada pelos paraguaios e recebia a rendição do general Estigarribia. A cerimônia se desenrola na barraca de campanha do imperador, em 23 de setembro de 1865, com uma pompa e colorido que vale a pena ler no “Jornal do Comércio” da época, pronunciando o enviado britânico um discurso em que prestou, nos têrmos prèviamente ajustados, as satisfações a que tinha direito o melindre nacional.

Devo acrescentar, para atenuar a culpa da Grã-Bretanha, que esta, no curso das represálias, ofereceu submeter as duas questões a arbitragem, afinal aceita só para ó caso da fragata. “Forte”; e, bem assina, que narro o episódio, com os pormenores essenciais à sua compreensão, para mostrar a diferença dos, tempos, para melhor, pois atualmente a moral Internacional mais aprimorada, um inegável sentimento de solidariedade e as instituições em que se enquadra a vida de relações dos povos – mesmo ainda incompletas e apenas delineadas como se acham – tornam inconcebível tão desmarcado emprêgo da fôrça para solver controvérsias desta espécie.

A insurreição e a guerra civil são origem de consideráveis prejuízos às pessoas e a seus bens. Os estrangeiros, molestados como a generalidade dos habitantes, reclamam sempre indenizações.

A êste respeito, os países da América latina, trabalhados por dissensões que a imaturidade política faz desfechar freqüentemente em lutas intestinas, têm sido o campo de reclamações muitas vêzes injustas e excessivas.

A responsabilidade do Estado por prejuízos decorrentes dessas desordens não difere, nos seus princípios e na sua medida, da que lhe incumbe ordinàriamente.

A parcialidade política de certos Internacionalistas europeus tem inspirado opiniões absurdas, tendentes a estender essa responsabilidade muito além dos limites que lhe traçam a eqüidade e os seus fundamentos jurídicos. Assim, segundo um autor (BRUSA), o Estado assume para com os estrangeiros estabelecidos no seu território o compromisso implícito de lhes fornecer garantias especiais em troca da cooperação por êles prestada. Se a necessidade obriga a certos atos lesivos, isto não isenta o Estado do dever de indenizar a vítima. Esta sofre um prejuízo em proveito da comunhão; cabe-lhe, em conseqüência, o direito à reparação.

Esta teoria é especiosa. Sem dúvida, se o Estado, deliberadamente, para necessidade de sua defesa, utiliza ou destrói a propriedade particular, deve compor o dano ao proprietário, seja êste nacional ou estrangeiro. Se há interêsse geral na prática do ato lesivo, é compreensível que êsse interêsse seja atendido pela comunidade nacional e não ùnicamente pelo proprietário. O princípio é justo, está consagrado no art. 141, § 16, da Constituição brasileira de 1946, e até então não era sufragado pela jurisprudência dos nossos tribunais. Mas é evidente a sua Incongruência com os danos resultantes de lutas civis, quando não sejam premeditados, mas ocorram ao acaso do entrechoque das fôrças em conflito. Nesta emergência, a teoria de BRUSA se inverte contra ela mesma. Trata-se, então, de um caso fortuito, ou de fôrça maior irresistível. Nesta hipótese, ainda que as circunstâncias permitam identificar as fôrças legalistas como autoras dos danos, e assim seja incontestável a imputabilidade do Estado, ocorre um ato visando à manutenção ou ao restabelecimento da ordem pública, ato licito, portanto, insuscetível de gerar direito a indenização.

Outro autor, e êste de máxima autoridade, pois se trata de FAUCHILLE, aventou aplicar-se ao caso, em proveito dos estrangeiros, a teoria do risco, isto é, o direito à indenização pelo dano, independentemente de qualquer consideração de autoria e de culpa. Na espécie, entretanto, não concorrem as razões sociais e econômicas que introduziram a responsabilidade pelo risco nas legislações internas, e, aí mesmo, em domínio muito limitado, como nos acidentes de trabalho e em certas modalidades de transporte.

A verdade, porém, é que, ainda no caso das lutas civis, têm inteira aplicação as regras comuns da responsabilidade internacional do Estado: só a negligência das autoridades em prevenir o dano autoriza a indenização. Se essa prevenção excede as possibilidades do govêrno assoberbado pela insurreição, a defesa, com tôdas as suas conseqüências, é uma necessidade, que a torna lícita e irresponsável. Os estrangeiros se acham em comunhão de fortuna com os nacionais, ë não podem pretender um tratamento de favor. E é precisamente por esta razão que se entende de vida a indenização quando o motim, revolta ou insurreição é, não contra a autoridade, mas contra os estrangeiros especialmente, por motivo de nacionalidade, de raça ou de religião. É que neste caso rompe-se a comunhão de fortuna em que êles se achavam com os nacionais e os igualava a êstes, não ficando em campo mais do que as garantias internacionais de incolumidade de pessoas e de bens, que acompanham o homem onde quer que se encontre.

Chegando a esta conclusão, o eminente internacionalista argentino PODESTÁ COSTA escreveu um primoroso “Ensayo sobre las Luchas Civiles y el Derecho Internacional”, que faz honra à cultura do país vizinho, e sinto não poder resumir no âmbito estreitíssimo desta explanação, limitando-me a recomendar sua leitura a quantos se interessam por êstes assuntos.

A doutrina oficial brasileira, em substância, não difere da que estou expondo, como minuciosamente se pode ver nos autores nacionais, especialmente exposta, com a habitual proficiência pelo embaixador HILDEBRANDO ACCIOLY no seu excelente “Tratado de Direito Internacional Público” (vol. I, págs. 338 e segs.).

O caso mais notável da ruptura dessa comunhão de fortuna entre nacionais e estrangeiros, pondo imediatamente a proteção dêstes a cargo dos respectivos Estados, verificou-se na insurreição chinesa dos boxers, em 1899. Os estrangeiros de raça branca, como tais e só por isso, sofreram terríveis perdas de vidas e de bens. Os missionários foram massacrados bàrbaramente. Os próprios diplomatas acreditados em Pequim tiveram de se entrincheirar na Legação britânica. Os edifícios de outras missões foram incendiados. O ministro da Alemanha, barão von Ketteler, foi assassinado, e a mesma sorte sofreu o chanceler da Legação japonêsa Sujiyama. A passividade, e às vêzes a cumplicidade ativa das autoridades, eram patentes. Deu-se, então, a intervenção conjunta das potências interessadas (Estados Unidos, Alemanha, Grã-Bretanha; Itália, Japão, Holanda, Bélgica, Áustria-Hungria, França, Rússia). Um corpo expedicionário, sob o comando do marechal de campo alemão conde de Waldersee, invadiu a China, ocupou Pequim, libertou as missões diplomáticas e destroçou os boxers. A China, pelo protocolo de 7 de setembro de 1901, sujeite a severas reparações e obrigou-se a garantias consideráveis, que incluíram: o estabelecimento das missões em um bairro privativo onde nenhum chinês poderia residir; a guarda permanente das legações por contingentes militares dos respectivos países; a, ereção de monumentos expiatórios e comemorativos dos assassinatos dos diplomatas; a punição com penas, impostas pelo govêrno chinês, a vários personagens de alta categoria na administração, penas essas que variavam, desde a morte e o suicídio até à prisão e ao exílio; finalmente, o pagamento de quatrocentos e cinqüenta milhões de “taels”-ouro, em 39 anos, com juros de 4% ao ano, seguro por vários impostos, especialmente pelas rendas aduaneiras.

As atrocidades foram terríveis, tremenda a responsabilidade do govêrno chinês. As reparações morais e pecuniárias foram proporcionadas aos agravos. Isto vem minuciosamente narrado nas revistas da época e nos digestos do direito internacional.18 Mas um internacionalista belga, ERNEST NYS, que, como é costume no seu país, não tem a “língua no bôlso”, na pitoresca expressão francesa, mostrou, no reverso dessa medalha, a exasperação dos chineses ante a pilhagem estrangeira, que, pela conquista ou pelas concessões extorquidas, lhes roía o território e lesava a soberania, o que fêz com que os boxers fôssem, mais do que uma sociedade secreta de fanáticos, um partido de patriotas desesperados (E. NYS, “Le Droit International. Les Príncipes. Les Théories. Lês Faits”, vol. 2°, pág. 234).

A responsabilidade dos Estados, quando de caráter pecuniário, pode ser cobrada manu militari?

No curso do século XIX, duas teorias se afrontaram a êste propósito, ambas de inspiração puramente política. Nos países credores, a possibilidade do emprêgo dessa forma de compulsão encontrou sua expressão numa circular de LORD PALMERSTON, em 1846, aos agentes diplomáticos britânicos no exterior; nos países devedores, a tese oposta era propugnada pelo grande internacionalista argentino CARLOS CALVO, autor de um tratado clássico de direito internacional, e foi trazida com estrondo à atenção da opinião pública, no ano de 1902, pela famosa nota diplomática de LUIZ DRAGO, eminente jurisconsulto e, ao tempo, ministro das Relações Exteriores da República Argentina.

LORD PALMERSTON declarava que a melhor política era a de não fazer questão internacional por causa da impontualidade de governos estrangeiros para com súditos britânicos, isto com o fim de não estimular empréstimos imprudentes; mas, ao mesmo tempo, afirmava que, para o govêrno britânico, era questão de pura discrição, e não de direito, decidir se intervinha, ou não.

Na França, prevalecia a mesma política. O ministro de Estrangeiros PICHON, em discurso na Câmara dos Deputados, dizia, em 7 de junho de 1907: “Não se pode repelir sistemàticamente, em todos os casos, tôda medida coercitiva na esfera internacional para a satisfação de reclamações pecuniárias, sobretudo quando tais reclamações se apóiam na execução de tratados, em direitos Inteiramente respeitáveis, em interêsses do comércio, da indústria, da prosperidade dos Estados, eventualmente lesados por governos infiéis às suas promessas ou descuidosos em cumprir suas obrigações. Há uma distinção a fazer entre as necessidades Inelutáveis, diante das quais todos os governos se inclinam, e as especulações anônimas ou individuais, às quais é preciso saber resistir”.

Cinco anos antes dêste discurso do ministro francês ocorrera, em 1902, a demonstração armada de três Estados europeus (Alemanha, Grã-Bretanha e Itália), contra a Venezuela, para a cobrança e dívidas, das quais algumas concerniam a empréstimos do Estado e outras procediam de reclamações por prejuízos sofridos por súditos dêsses três países em desordens internas nessa República. Navios de guerra aprisionaram as modestas belonaves venezuelanas, bombardearam os portos de La Guayra, Puerto-Cabello e Maracaibo e estabeleceram um severo bloqueio ao longo das costas.

Tal ação, que preludiava a ocupação do território, pelo menos a das alfândegas, suscitou profunda emoção neste continente. Os Estados Unidos da América Interpuseram-se; fizeram cessar a violência e induziram o govêrno venezuelano a um acôrdo para o pagamento da sua divida pública, bem como para o estabelecimento de uma comissão mista para apreciar as outras reclamações pecuniárias. É interessante notar, de passagem, que a comissão mista afinal reduziu a 3 milhões de bolívares os 40 milhões reclamados pelos italianos, a 2 milhões os 7 milhões das reclamações alemãs, e a 9½ milhões os 14¾ pedidos pelos britânicos; o que mostra a temeridade de esposarem as chancelarias pretensões que não têm fundamento prévio numa sentença judicial, tanto mais que, mesmo nos países mais civilizados, êsses departamentos do govêrno não têm um órgão adequado para apreciar o fundamento e o valor das reclamações dessa espécie.

Foi sob a, emoção do incidente venezuelano que LUIZ DRAGO entrou na história ao enviar sua célebre nota: de 22 de dezembro de 1902 ao Departamento de Estado em Washington, chamando a atenção do govêrno americano para o perigo que ameaça, a independência; a, paz e segurança do continente em conseqüência da atitude das três potências empenhadas em ação contra a Venezuela.

Doutrina de DRAGO

Nesse documento, notabilíssimo por sua generosa inspiração e pelo vigor dos argumentos políticos e jurídicos, DRAGO sustentava a tese da, inadmissibilidade do emprêgo de meios compulsórios para a cobrança da dívida pública; – e como se apoiava, para essa conclusão, em princípios explanados. com certa amplitude, a nota argentina passou a constituir, na literatura do direito internacional, a chamada “Doutrina de Drago”, o que bastou para perpetuar a memória de seu autor.

O interêsse despertado por êsse documento foi imenso. Inúmeros especialistas lhe dedicaram estudos; CALVO, que ainda vivia nesse tempo; mandou uma circular aos seus colegas do Instituto de Direito Internacional pedindo que opinassem a respeito, e recolheu respostas em grande maioria favoráveis.19Por iniciativa do secretário de Estado ROOT, presente à 3ª Conferência das Repúblicas Americanas, reunida em 1906 no Rio de Janeiro, esta deliberou que os delegados à Conferência da Paz, convocada para o ano seguinte na Haia, recebessem instruções para “convidar a Conferência a examinar a questão da cobrança pela fôrça das dívidas públicas, e, em geral, as medidas tendentes a diminuir entre os povos os conflitos de origem exclusivamente pecuniária”.

Na Haia, DRAGO, delegado de seu país, sustentou a sua tese. Contra ela se pronunciou RUI BARBOSA, obedecendo, nesse passo, as instruções precisas do nosso govêrno, preocupado, antes de tudo, em não abalar o crédito indispensável para os empréstimos necessários ao, desenvolvimento econômico do país.

RUI, em erudito e magistral discurso, colocou-se rigorosamente no terreno jurídico. Mas o aspecto político era dominante, e acabaria prevalecendo, embora parcialmente. Na verdade, escreveu sir JOHN FISCHER WILLIAMS20 “a conclusão política era sólida. Havia, contra o emprêgo da fôrça armada para a cobrança de dividas do Estado, na ausência de qualquer decisão judiciária, uma objeção de importância prática capital; a objeção é que isto seria uma lei em proveito do poderoso contra o fraco. Nenhum govêrno fraco, em nenhum tempo da história, pensou em cobrar pela violência contra um Estado forte os créditos de seus, súditos, e não parece que haja, na história moderna, um único exemplo de um govêrno usando, por êsse motivo, da violência contra uma potência de fôrça igual à sua. Sòmente quando se pensa que a operação é pràticamente um passeio militar, que se realizará sem efusão de sangue (o que nem sempre é justificado na prática), é que tal emprêsa é decidida: o Estado devedor deve ser tão fraco que a resistência possa ser considerada sem esperança. Hoje mesmo, em presença do maior calote conhecido na história, pelo repúdio de uma dívida pública para com os nacionais de uma potência estrangeira (o autor alude à Rússia Soviética), ninguém pensa empregar a fôrça contra um Estado devedor cujo potencial militar é reconhecido como formidável. Muito se pode dizer em favor da instituição de uma policia internacional; mas uma fôrça desta natureza deve estar ao serviço de uma lei Imparcial. Um sistema de policia no qual a mesma pessoa é, a um só tempo, o magistrado, a vítima e o soldado, não é de todo um sistema jurídico. Eis por que DRAGO politicamente tinha razão, contanto que consentisse em admitir a introdução de certas garantias contra o abuso que se pudesse fazer da fraqueza (porque pode-se abusar da fraqueza assim como da fôrça) com o fito de deixar imune um devedor desonesto, que tivesse sido condenado por um tribunal Imparcial”.

Por proposta do delegado norte-americano PORTER adotou-se a convenção, que veio a ser conhecida pelo nome de seu iniciador, segundo a qual as potências contratantes resolveram não recorrer à fôrça para a cobrança de dividas contratuais reclamadas ao govêrno de um país por outro govêrno em favor de seus nacionais; tal estipulação, entretanto, não sendo aplicada quando o Estado devedor recusar uma oferta de arbitramento, ou, aceitando-o, tornar impossível o acôrdo sôbre o compromisso, ou, depois do arbitramento, não cumprir a sentença proferida.

Note-se que a convenção PORTER não cobre as reclamações de indenização de prejuízos decorrentes de atos ilícitos. A própria nota inicial de DRAGO as descartava do seu protesto, entendendo que o direito vigente já obrigava as partes a esgotarem os meios processuais segundo as leis internas do Estado devedor, não se internacionalizando o litígio senão em caso de denegação de justiça.21

Quando se estabelece a responsabilidade do Estado, cumpre a êste prestar a devida reparação. Neste particular, o direito internacional se apropriou inteiramente das regras do direito civil. Assim, a mais completa reparação consiste em repor as coisas no estado anterior, afora a indenização de perdas e danos eventuais. Se a situação não pode mais ser restabelecida, ou as coisas não podem ser restituídas, o sucedâneo imperfeito, mas único possível, é o pagamento de adequada indenização pecuniária, isto é, que equivalha, tanto quanto possível, à perda sofrida. A avaliação do dano compreende o mal direto e imediato resultante do ato ilícito, bem como seus efeitos perniciosos, desde que sejam conseqüência necessária, ligada a êsse ato por nexo de causalidade. Se o prejuízo fôr puramente moral, como nos casos de ofensa à honra e à dignidade da nação, a satisfação será da mesma natureza: explicações solenes, testemunhos de consideração, etc.

Finalmente, cumpre referir as causas excludentes da responsabilidade. Incluem-se nesta categoria: 1°) a fôrça maior, que ULPIANO definiu omnem vim cui resisti non potest, e pode ser de ordem física, como um terremoto ou inundação, ou de natureza política, como as insurreições que paralisam ou embaraçam o poder público constituído; 2°) a legitima defesa, que supõe uma agressão contrária ao direito internacional, ou a iminência de um perigo que não deixe ao Estado ameaçado outro meio de proteção senão a violência. Nesta última hipótese, que se confunde com o estado de necessidade, autores de reconhecido prestígio22sustentam que a violência deixa de ser um ato ilícito, mas não exclui a reparação de prejuízos conseqüentes, pois, se o Estado assim satisfaz uma necessidade de sua preservação, e com isto obtém um proveito, deve satisfazer o dano que outro Estado, ou seus súditos, tenham sofrido em seu favor; 3°) as represálias justas, em tempo de paz. A responsabilidade neste caso não cabe ao Estado que as pratica, e sim ao Estado que as motivou por seu injusto procedimento.

Alguns autores de nota incluem entre as causas de exoneração a chamada cláusula Calvo e a prescrição. Quanto a esta, o que se aduz para justificá-la só procederá de jure codendo, pois o instituto da prescrição, com os seus prazos e regras relativos ao respectivo comêço, suspensão e interrupção de curso, depende estritamente do direito positivo, e nada há estabelecido a êste respeito na esfera Internacional, quer nos tratados normativos, quer nos costumes. O mais que pode haver são prazos de decadência fixados em tratados particulares, isto é, prazos marcados para o exercício do direito de pedir reparação.

A cláusula Calvo, assim chamada porque foi sugerida por êsse internacionalista, consiste em disposições legais ou estipulações contratuais, pelas quais os estrangeiros ficam obrigados a não reclamar a proteção diplomática de seus governos em caso de contestações atinentes a violações de direitos, a respeito das quais a decisão da Justiça nacional se entenderá como definitiva.

Escarmentados com reclamações diplomáticas nem sempre justas no fundamento e quase sempre imoderadas, muitos países da América espanhola Introduziram tal prescrição, ora nas suas Constituições, ora nas leis ordinárias, e muitas vêzes nos contratos de concessão. Mesmo a 2ª Conferência das Repúblicas Americanas, reunida no México, adotou resolução neste sentido, contra o voto do delegado norte-americano e com o voto favorável do delegado brasileiro, se bem que o Brasil nunca inserisse tal estipulação, quer em suas leis, quer nos seus contratos administrativos.

Como já dissemos, os Estados Unidos a impugnaram sistemàticamente23 e do mesmo modo os países europeus, e bem assim a doutrina geralmente professada,24 sob o fundamento, que nos parece correto, de que o direito de proteção de seus nacionais é uma prerrogativa do Estado, que não pode ser cerceada pelas leis internas de outros Estados, nem por contratos com particulares.

Cumpre terminar. Passei, pela angústia do tempo, ao lado de muitas questões interessantes, mas pela maior parte eriçadas de controvérsias enfadonhas para qualquer auditório, sobretudo para um auditório; de leigos, e às vêzes irritantes pelo pedantismo dos doutores apostados em rachar em muitas partes um fio de cabelo. Limitei-me a expor, em linhas muito sumárias, o direito vigente, que amanhã já pode ser outro. No limiar da era atômica, e diante da incoercível interdependência das nações, uma geral revisão das normas de sua convivência está em marcha, e já as Nações Unidas vão criando uma moral e uma consciência jurídica internacionais, que auguram o progressivo império do Direito entre os Estados livres e iguais.

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Notas:

* Conferência pronunciada em 1962.

1 “Tratado de Direito Internacional Público”, vol. 1°. Pág. 287.

2 Conferência na Academia de Direito Internacional de Havana, publicada na “Rev. de Derecho”, dezembro de 1929, pág. 214.

3 “Politique tirée de l’Ecriture Sainte”, livro 8. art. II.

4 LAFAYETTE, “Princípios de Direito Internacional”, vol. 1°, § 5°.

5 CHARLES DUPUIS, “Les Rél. Int.”, in “Recueil des Couro de l’Académie de Droit Int.”, vol. 2°. pág. 864.

6 CLÓVIS BEVILÁQUA. “Direito Internacional Público”, vol. 1°, pág. 191.

7 DIONÍSIO ANZILOTTI, “Teor. Gen. della Responsabilità dello Stato”, págs. 155 e segs.

8 AMARO CAVALCANTI, “Regime Federativo”, págs. 329-334.

9 “Journal de Dr. Int. Prive”, 1891, página 1.168.

10 “Rév. Gén. de Dr. Int. Public”, 1907, página 646.

11 “Notes on Brazilian Questiona”, por N. D. CHRISTIE, passim.

12 Ob. cit., vol. 19, pág. 360, nota 1ª.

13 Ob. e loc. cits., págs. 333 e segs.

14 Ob. e loc. cits., págs. 359-360.

15 Relatório do ministro das Relações Exteriores, 1895.

16 Relatório do ministro de Estrangeiros, 1863.

17 J. NABUCO. “Um Estadista do Império”, vol. 1°.

18 BASSET MOORE, “Dig. of Int. Law”, volume 5°, págs. 476-533.

19 “Rev. de Dr. Int. et de Lég. Comp.”, 2ª série, vol. 5ª, págs. 597 e segs.

20 Cit. “Recueil des Cours”, vol. 1°. pág. 326.

21 E. A. MOULIN, “La. Doctrine de Drago”, pág. 18.

22 BUSTAMANTE, “Derecho Int. Pub.”, volume 3°, pág. 502.

23 BASSET MOORD, cit. “Dig. of Int. Law”, vol. 60, § 918.

24 Cit. “Recueil des Cours”. vol. 2°, pág. 362.

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Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:

  1. adequação à linha editorial;
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