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A maçã podre da Reforma Administrativa
Irene Patrícia Nohara
22/02/2022
Depois de desidratar alguns pontos deletérios da Proposta de Emenda à Constituição – PEC 32, originalmente advinda, de setembro de 2020, do Ministério da Economia, houve, após manobras políticas pouco transparentes, a aprovação na Comissão Especial do relatório que foi submetido à votação do Plenário da Câmara dos Deputados, o que foi feito após a apresentação de diversas versões de pareceres reformulados, alterando para PEC 32-A, sendo que, na calada da noite anterior à derradeira votação, ainda houve a reformulação para PEC 32-B…
Nesta semana, poderia ter havido a votação no Plenário a partir da terça, dia 28.09.2021, mas o Presidente da Câmara acabou não pautando, para dar início aos trabalhos políticos, com olhos na aprovação da matéria… diante da incerteza do quórum necessário elevado de 308 deputados… (3/5)
Discussão da Reforma Administrativa
Discutir Reforma Administrativa, que atinge os servidores, empregados públicos e sobretudo a organização estrutural do Estado demanda que, em primeiro lugar, saibamos que modelo de Estado devemos reformar para o seu aprimoramento.
Não adianta querer empurrar goela abaixo uma versão que, não obstante o corte de diversos itens ‘prejudiciais’ da maçã podre que foi a proposta original da PEC 32, foi consensualmente criticada como de péssima qualidade técnica e anunciadora de retrocessos na Administração por praticamente todos os administrativistas, independentemente do espectro de cores políticas, pois simplesmente não dá para aproveitar uma ou outra fatia remanescente, apelidando-a da A ou B, sendo que ela é fruto que advém de uma árvore cujas estruturas não batem com os fundamentos e objetivos da Constituição para a Administração e para o servidores.
Maçã podre
Ainda, quiseram pegar as partes remanescentes da maçã cortada e desidratada e jogar ‘um melzinho’ para algumas carreiras específicas (ex. transformar guarda em órgão de natureza policial…), em detrimento de várias outras, e procurar algum apoiador, algum consenso… o que foi feito com a proibição da cassação de aposentadoria como hipótese de sanção (algo que a doutrina sempre criticou a partir do momento que a aposentadoria passou a ser contributiva, não obstante tese em sentido contrário do Superior Tribunal de Justiça) ou mesmo tentativas pequenas, migalhas, para salvar a oportunidade… e o Guedes, que procura não negar a origem da proposta, não dizer que não fez nada do que prometeu (torcendo para apresentar esse troféu ao mercado: a Reforma Administrativa e seus cortes anunciados).
Ocorre que, por mais que se diga que é uma proposta diferente, para tentar desvinculá-la disfarçadamente do atual governo, sobretudo após a racha política ocorrida no 7 de setembro, mas já parcial e surpreendentemente recomposta…, ainda assim ela mantém as características iniciais, pois deriva da mesma semente de uma árvore cujas raízes estão deitadas na proposta de um Estado subsidiário e minimalista, inspirado na ideia de Friedman, ou seja, de um Estado que atende às demandas sociais pelo setor privado e que não investiria mais em instalações, recursos materiais, muito menos recursos humanos, isto é, remunerações dos servidores, sendo estes possivelmente trocados por serviços de terceirização de mão de obra que se pretendem abertos a mecanismos concorrenciais do mercado.
Daí essa volta do 37-A, em que todos os entes poderão firmar instrumentos de cooperação públicos e privados para execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e UTILIZAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS DE PARTICULARES, COM OU SEM CONTRAPARTIDA FINANCEIRA.
Outrossim, no § 2º do art. 4º há a prorrogação da duração de contrato por tempo determinado por até DEZ ANOS… Ainda, a flexibilização de até 25% da jornada com REDUÇÃO DA REMUNERAÇÃO nas carreiras não típicas.
A partir da emenda, se aprovada como está, servidores estáveis que ocupam cargos cuja desnecessidade ou OBSOLESCÊNCIA venha a ser formalmente reconhecida, não ficarão em disponibilidade. Note-se que esta obsolescência pode ser uma circunstância de configuração muito arbitrária…
A OIT preocupa-se com o desemprego estrutural que virá das transformações tecnológicas, onde qualquer tipo de profissão pode sofrer impactos, procurando adequar o viés schumpeteriano de transformações disruptivas com a preocupação keynesiana de garantia de emprego, pois uma economia que perde postos de trabalho e de remuneração perde também sua pujança no consumo de serviços e demais atividades… mas a preocupação aqui foi muito mais com o descarte, diante de uma visão de corte de custos mais próxima do gerencialismo puro… work better, cost less…
A precarizada da iniciativa privada como paradigma pro funcionalismo
Trazer a realidade precarizada da iniciativa privada como paradigma pro funcionalismo, com um sistema de servidores on demand, avaliados por plataformas e substituídos por mão de obra arregimentada pela iniciativa privada, dentro de um sistema que sequer promete licitação pelos convênios que serão disseminados, acrescidos dos contratos “temporários” de prazo de até dez anos, pode ser uma solução boa para alguns agentes políticos que adorariam poder ‘mudar o baralho’ dos servidores de sua repartição, mas, com certeza pode ser algo muito deletério à população que deve ser atendida por servidores capacitados, comprometidos e com razoáveis remunerações, pois a troca constante não significa que o trabalho seja feito de forma qualificada (muito pelo contrário…).
Mas um ponto que é sempre levantado: a reforma não atinge os salários efetivamente altos, pois estes são encabeçados por corporações mais bem representadas no Legislativo. Ela ataca os que ganham salários médios e baixos, que é a maioria do funcionalismo, o que sequer poderá gerar tanta economia, sendo mais uma satisfação simbólica do que um fator de redução significativa de custos… Aliás, não fora apresentado estudo substancial para mensurar quais seriam os impactos nos custos…
Ainda, não haveria necessidade de disciplinar avaliação periódica de desempenho por Emenda à Constituição, o que foi a solução ao longo do processo de desidratação do péssimo projeto inicial, pois o instrumento para isso seria lei complementar, conforme art. 41, § 1º, III, criado pela última Reforma Administrativa, conforme a Emenda 19/98…
Pior: pretende-se alterar a competência nacionalizando uma série de questões que são da autonomia dos entes federativos: autonomia para autoadministração, dado que se pretende inserir no art. 22 da Constituição o inciso XXX, que afronta a federação, estabelecendo que será competência privativa da União legislar sobre norma gerais sobre criação e extinção de cargos públicos, concurso público, critérios de seleção e requisitos para investidura em cargos em comissão, estruturação de carreiras, política remuneratória, concessão de benefícios, gestão de desempenho, REGIME DISCIPLINAR, PROCESSO DISCIPLINAR, CESSÃO E REQUISIÇÃO DE PESSOAL”… Um absurdo tamanho que está até em caixa alta, sendo que regime disciplinar é de cada estatuto, dentro da autonomia dos entes…
A PEC desacreditada
A PEC 32 já foi altamente desacreditada pela comunidade de especialistas da área, por servidores e por estudiosos e analistas do Estado, bem como pela sociedade que também percebeu que ela não atingia os maiores salários do funcionalismo… que ela procurava inicialmente deixar sem critérios indicações para cargos de liderança…
Ela recebeu muitos apelidos: PEC da rachadinha, por diminuir concursos, aumentar apadrinhamentos, PEC da desgraça, PEC do retrocesso etc. Aqui vamos de maçã podre, pois não adianta fatiar uma maçã de tal forma podre que não sobre pedaço, apenas para não perder a oportunidade… ainda mais se os pedaços estão comprometidos com a origem e já foram, portanto, também contaminados…
Não adianta cortar pedaços podres, pois ela já está comprometida com um ‘des’projeto de Estado…Ainda, nesta CRISE INTENSIFICADA PELA PANDEMIA, em que há esse resultado econômico cada vez pior, com aumento dos preços de insumos, alimentos, aluguel, inflação, desemprego… disfuncionalidade na política econômica, desarticulação política, se há uma janela de oportunidade, esta seria OUTRA, isto é, seria perceber o RIDÍCULO que é PRETENDER REDUZIR O ESTADO, ainda mais AGORA!!!
O Estado sucateado, com incêndios em museus, sem políticas públicas consistentes, diante de um sucesso de vacinação TARDIO (mas celebrado, pela colaboração do POVO BRASILEIRO EM SE VACINAR…) tendo em vista a omissão do governo federal no momento de negociar as vacinas que estavam sendo oferecidas, sendo que se preferiu encontros com empresários inidôneos que ofereciam vacinas com sobrepreço, conforme se verifica da CPI da COVID, ainda, na constatação que só conseguimos acelerar a vacinação pela existência de um Sistema Único de Saúde, que atende 7 em cada 10 brasileiros, que necessitam do SUS… Enquanto os Estados Unidos, por exemplo, perderam validade de vacinas por não terem um escoamento tão bom, não terem sistema único de saúde com postos distribuídos em âmbito nacional, dependerem de convênios com estabelecimentos privados… apesar de todo esforço assumido pelo atual Presidente dos Estados Unidos…
Como, diante da crise que iremos enfrentar, que se anuncia no mundo todo, em face dos auxílios que são apresentados pelos países desenvolvidos para reconstrução de suas economias, vamos defender um ESTADO MINIMALISTA, incapaz de apresentar instrumentos políticos e econômicos passíveis de enfrentar o período anticíclico, isto é, de crise que estamos vivendo?
A REPACTUAÇÃO SOCIAL deveria ser, como acontece no mundo desenvolvido, para outra direção, caso as forças progressistas se articulassem numa plataforma que efetivamente lance luz a uma proposta de desenvolvimento, o qual depende de um Estado firme para promover o bem-estar da população paulatinamente pauperizada, já passando fome, lamentavelmente…
Aqui não estou falando de um ou outro partido, mas de todos os que se preocupam com a desconstitucionalização, com a quebra do pacto federativo, com a guerra entre Poderes, o desrespeito à Justiça, com a iminente pauperização inclusive da classe média, com a insegurança que assola o País, diferentemente do cenário idílico pintado por propaganda governamental…
A Constituição de 1988 organizou carreiras, deixou de lado os extranumerários, não ficou criando clivagens de status entre os servidores…
Essa não é, sem dúvida, a melhor oportunidade de Reformar o Estado – e sua longa manus de servidores e empregados públicos, que cumprem com engajamento as tarefas de apoio ao bem estar da população, está é, a bem da verdade, a pior ocasião: regada a escândalos derivados da CPI da Covid com negociatas com empresas inidôneas para compra de vacina; insatisfação com os resultados econômicos prometidos depois de tantas reformas que ceifaram direitos sociais, sem que houvesse as contrapartidas de crescimento e de aumento da empregabilidade…; instabilidade entre Poderes e crise intensificada pela pandemia…
Amanhã, em vez de termos servidores concursados e capacitados, teremos as negociatas pelo Brasil afora de agentes políticos com empresas inidôneas de fornecimento de mão de obra terceirizada, esta mesma mão de obra que por vezes é tratada de forma indigna, por vezes o Estado ainda, a depender a ausência de qualidade do ‘contratado’ (conveniado), arca em pagar subsidiariamente os salários que sequer são depositados por empresas que quebram e levam o pagamento dos valores deixando a dívida à sociedade… que a paga duas vezes…
Vamos deixar legarem uma proposta como essa para o Estado brasileiro, sendo que sequer na ditadura tivemos um ataque tão intenso às carreiras públicas?!!!?
Não dá para ficar fatiando, falando veja – já retiramos a parte podre, se o fruto já advém de uma concepção equivocada em seus fundamentos…
Melhor que se JOGUE FORA ESSA MAÇÃ PODRE NO LIXO DA HISTÓRIA e que, em uma ocasião melhor, jamais em face desta urgência de Estado e de suas prestações por meio dos servidores, seja refletida uma proposta CONDIZENTE com o projeto de Estado de nossa Constituição…
Então, na torcida para que não alcance o quórum e que evitemos essa precarização desnecessária e deletéria aos alicerces constitucionais da proposta da Administração Pública, pois, em sendo PEC 32 A, PEC 32 B… será originada da PEC 32 e seus pressupostos… pois são projetos que têm a mesma origem e que irão intensificar a corrupção, o patrimonialismo na gestão, prejudicando o profissionalismo dos servidores, a realização de concursos e a situação funcional de inúmeras carreiras públicas essenciais ao bem estar da população brasileira…
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