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CLÁSSICOS FORENSE
DOUTRINA
PENAL
PROCESSO CIVIL
REVISTA FORENSE
Sôbre a influência recíproca das jurisdições
Revista Forense
09/12/2021
REVISTA FORENSE – VOLUME 146
MARÇO-ABRIL DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413
FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO
FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto
Abreviaturas e siglas usadas
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SUMÁRIO REVISTA FORENSE – VOLUME 146
CRÔNICA
DOUTRINA
- O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas empresas públicas – Bilac Pinto
- Sôbre a influência recíproca das jurisdições – José de Aguiar Dias
- Direito comparado, ciência autônoma – Caio Mário da Silva Pereira
- Filosofia do direito e direito comparado – Paulo Dourado de Gusmão
- Do legado de coisa certa, em face do regime da comunhão de bens – Agostinho Alvim
- Pagamento postnumerando do salário – Orlando Gomes
- O compromisso de casamento no direito comparado – Alípio Silveira
PARECERES
- Lei e regulamento – Matéria reservada à competência do Poder Legislativo – Limites do poder regulamentar – Direitos e garantias individuais – Francisco Campos
- O poder de veto, e os projetos de lei fundados em proposta do Poder Judiciário – Haroldo Valadão
- Sociedade de economia mista – Fábrica nacional de motores – Participação em outra sociedade – Emissão de partes beneficiárias e de debêntures – M. Seabra Fagundes
- Sociedade comercial – Expiração de prazo contratual – Dissolução e liquidação – Prosseguimento das operações – Antão de Morais
- Sociedade por ações – Pagamento de dividendos de ações integralizadas antecipadamente – Egberto Lacerda Teixeira
- Contrato administrativo – Cláusula compromissória – Compromisso – Juízo arbitral – Carlos Medeiros Silva
NOTAS E COMENTÁRIOS
- O regime federativo e a educação – Osvaldo Trigueiro
- A superintendência da moda e do crédito, os bancos e a Constituição Federal – Abgar Soriano
- Delito político – Paulo Carneiro Maia
- Expulsão de estrangeiros – A. Dardeau de Carvalho
- Os direitos do autor na obra cinematográfica – Hermano Duval
- A proteção das marcas notoriamente afamadas – Thomas Leonardos
- Reajustamento pecuário – Contagem de juros – Responsabilidade da União – Edgar Quinet de Andrade
BIBLIOGRAFIA
JURISPRUDÊNCIA
- Jurisprudência Civil e Comercial
- Jurisprudência Criminal
- Jurisprudência do Trabalho
LEGISLAÇÃO
LEIA:
SUMÁRIO: Ação cível e sentença penal. Reparação do dano. Opinião de LIEBMAN. Doutrina francesa. Art. 1.525 do Cód. Civil. Apreciação de fatos. Aplicações práticas. O art. 65 do Cód. Penal. Influência da decisão cível sôbre a instância penal.
Sobre o autor
José de Aguiar Dias, juiz no Distrito Federal
DOUTRINA
Sôbre a influência recíproca das jurisdições
* Nenhuma novidade, bem o sinto, como bem o sabeis, aqui será dita. Não me desculpo. Teria de fazê-lo, sem dúvida, se pretendesse, presunçosamente, dizer novidades a tão ilustre auditório. Contentei-me em reagitar problema fascinante de direito. Meu prêmio estará em que, voltando a êle, por fôrça desta cordial provocação, os juristas desta terra predestinada enriqueçam, agora, como sempre, o patrimônio de nossa cultura jurídica.
Problema dos mais tormentosos no campo da ciência jurídica, aliás fértil em dificuldades, o da influência da sentença proferida em jurisdição diversa tem visto aumentar sua complexidade pela multiplicidade de opiniões que se manifestam sôbre êle.
Ação cível e sentença penal
O primeiro elemento perturbador consiste em expor o tema em aspecto restrito, sob a feição de dependência da ação cível em relação à sentença penal, quando seu verdadeiro conteúdo corresponde a alcance mais vasto: na realidade, trata-se de saber se, e em que proporção, a sentença proferida em uma produz efeito prejudicial sôbre a decisão a ser pronunciada em outra jurisdição. Com esta retificação da apresentação do tema, fica certo que êle não se reduz à impropriamente chamada questão da coisa julgada no crime, mas se amplia ao que podemos chamar, sem dúvida com mais propriedade, de problema da influência recíproca das jurisdições.
Reparação do dano
Deve ser reconhecido que êle se apresenta com freqüência máxima no aspecto de efeito da sentença penal sôbre a ação cível de reparação do dano. Isso escusará, talvez, a má designação a que nos referimos, como pobre de alcance, mas de maneira nenhuma pode legitimá-la, no seu defeito de tomar a parte pelo todo. Não é só a ação de reparação que deve respeito ao decidido no juízo criminal, não são exclusivamente as ações cíveis já alargando êsse âmbito tão restrito – que o devem guardar, mas é tôda e qualquer jurisdição que deve conter-se em certos limites, para não atingir a outra, no pronunciamento que tenha expedido.
Opinião de LIEBMAN
“A sentença”, afirma o douto LIEBMAN, “como ato autoritativo ditado por um órgão do Estado, reivindica, naturalmente, perante todos, seu ofício de formular qual seja o comando concreto da lei ou, mais genèricamente, a vontade do Estado, para um caso determinado. As partes, como sujeitos da relação a que se refere a decisão, são certamente as primeiras que sofrem a sua eficácia, mas não há motivo que exima os terceiros de sofrê-la igualmente. Uma vez que o juiz é o órgão ao qual atribui o Estado o mister de fazer atuar a vontade da lei no caso concreto, apresenta-se a sua sentença como eficaz exercício dessa função perante todo o ordenamento jurídico e todos os sujeitos que nêle operam.
Certamente, muitos terceiros permanecem indiferentes em face da sentença que decidiu sòmente a relação que, em concreto, foi submetida ao exame do juiz; mas todos, sem distinção, se encontram potencialmente em pé de igualdade de sujeição a respeito dos efeitos da sentença, efeitos que se produzirão efetivamente para todos aquêles cuja projeção jurídica tenha qualquer conexão com o objeto do processo, porque para todos contém a decisão a atuação da vontade da lei no caso concreto.
O juiz que, na plenitude de seus poderes e com tôdas as garantias outorgadas pela lei, cumpre sua função, declarando, resolvendo ou modificando uma relação jurídica, exerce essa atividade (e não é possível pensar diversamente) para um escopo que outra coisa não é senão a rigorosa e imparcial aplicação e atuação da lei; e não se compreenderia como êsse resultado todo objetivo e de interêsse geral pudesse ser válido e eficaz só para determinados destinatários e limitado a êles.[1]
Essa fôrça, mais inconscientemente sentida do que identificada, impôs a necessidade da concordância entre as diversas jurisdições. Era natural que, como resultado de intuição, se afirmasse empiricamente a prevalência do julgado criminal sôbre o cível. Com êsse critério furam construídas as doutrinas que procuravam sistematizar as idéias e normas reguladoras de tal subordinação, cuja necessidade de limitação para logo se sentiu também.
No antigo direito francês, o sistema da dependência da ação cível era precisamente o que PIERRE HÉBRAUD representa por esta fórmula: “a solução da ação pública envolve a solução da ação cível, porque, em virtude da sua estreita ligação e da dependência desta em relação àquela, o juiz penal, em julgando a primeira, terá julgado a segunda”.[2]
Era, assim, atribuir a solução do problema ao brocardo “Electa una via non datur recursus (ou regressus) ad alteram“. A máxima foi realmente invocada, não no período em que se conceituava a ação cível como simples dependência da ação penal, o que não se fazia necessário, mas exatamente quando, com a definitiva separação entre as ações,[3]se tornou impossível justificar a repercussão de uma decisão sôbre outra, como função de dependência da ação cível. O que aí se pode assinalar é um expediente dos práticos, ao perceberem que, afirmada ou reconhecida a total independência das ações, se deferia, por via de conseqüência, absoluta liberdade ao juiz do cível, em face da decisão criminal sôbre o litígio a êle submetido.[4]
Doutrina francesa
Ora, tal verificação ultrapassava o objetivo da doutrina e da jurisprudência, que não desejava tanto, mas apenas sistematizar e explicar a influência recíproca das jurisdições, tangidas pela intuição, por um lado, e, de outra parte, mais concretamente, pelo sentimento da necessidade de dar segurança às decisões judiciárias[5]e de resguardá-las de contradições penosas ao seu prestígio.[6]
Foi MERLIN o primeiro a elaborar uma verdadeira teoria sôbre a autoridade da coisa julgada criminal sôbre o juízo cível, afirmando enèrgicamente a tríplice identidade capaz de, na segunda jurisdição, legitimar a exceção. Em face da evidente artificialidade dessas bases,[7]MERLIN encontrou meios de contornar a dificuldade. A identidade de objeto resultaria da verificação do delito, objeto fundamental das duas ações. A identidade de partes estaria na consideração de que o Ministério Público é mandatário de todos e, portanto, também do lesado. A identidade de causa se demonstraria pelo fato de ser única, a saber, o delito, a base da ação.[8]
TOULLIER, em vigorosa crítica a MERLIN, refutou a pretensa tríplice identidade e negou a autoridade da coisa julgada criminal sôbre o juízo cível. Reconhecendo que a decisão criminal era prejudicial da ação cível, salientava que só o era no sentido de que devia ser julgada antes dela, jamais no de que exercesse sobre a segunda qualquer influência necessária.[9]A distinção, cada vez mais precisa na doutrina, entre a ação criminal e a cível, tornou insustentável a teoria de MERLIN, a exemplo do que sucedera com o sistema anterior. Surgiu, então, a doutrina de AUBRY et RAU, cuja concepção fundamental é a substituição, pelo ponto de vista da organização judiciária, do critério da autoridade da coisa julgada, exatamente como assinala ORTOLAN: “Les tribunaux civils maitres d’apprecier, en elles-mêmes, les questions civiles qui leur sont devolues, ne peuvent pas le faire en se posant en contradicteurs du juge pénal relativement à la decision sur la pénalité“.[10]
Embora, acentuando a discriminação de competência, a teoria de AUBRY et RAU lançava a idéia de que a jurisdição criminal tirava de sua natureza peculiar um poder que lhe permitia sujeitar a jurisdição civil.[11]Como assinala HÉBRAUD, o sistema de AUBRY et RAU perdeu sua coerência, não podendo oferecer base sólida a uma teoria lógica,[12]pois seu equilíbrio era apenas aparente e repousava sôbre uma confusão. Para êsse autor, as idéias da verdade da coisa julgada e da relatividade da autoridade da coisa julgada estão índissolùvelmente ligadas: “o caráter absoluto da autoridade da coisa julgada no crime não pode advir senão da idéia da autoridade da decisão. O respeito à decisão judiciária se impõe a todo o mundo e em tôdas as circunstâncias”.[13]
A doutrina francesa atual se filia, salvo discrepância de detalhes, a êsse ponto de vista, continuando a atribuir à coisa julgada criminal autoridade sôbre a ação cível, com fundamento em sua principalidade.
Art. 1.525 do Cód. Civil
Em nosso direito, o assunto encontra norma reguladora no art. 1.525 dó Código Civil, segundo o qual a responsabilidade civil é independente da criminal, proibida, porém, a discussão sôbre a existência do fato ou sôbre a sua autoria quando tais questões se acharem decididas no crime.
Frisemos que o Cód. Civil, repelindo, como um passo de progresso jurídico, a idéia de subordinação do juiz cível ao criminal, conservou-se, porém, em lamentável acanhamento de vistas, pois não é só no quadro da responsabilidade, embora seja êste o mais fecundo, que se apresenta o problema da influência das jurisdições. Por efeito ainda dessa limitação de perspectiva, cuidou que a questão se restringisse a efeito da decisão criminal sôbre a cível, deixando de regular o assunto tal como, na realidade, existe, isto é, secundàriamente, como problema de interdependência das jurisdições, mas fundamentalmente como problema de eficácia da sentença.
Se o tivermos em conta e atentarmos para a lição do eminente LIEBMAN, ficam dissipadas as dúvidas torturantes que há séculos afligem os juristas. A sentença, seja do juízo criminal, seja do juízo cível, repercute com igual fôrça em jurisdição diversa da em que foi proferida, porque é a vontade da lei no caso concreto, ditada por um órgão do Estado e não “…benefício combinado em família e produtor de efeitos somente para as pessoas iniciadas nos mistérios do feito, atividade processual singular, mas atividade pública exercida para garantir a observância da lei; e já que a esta estão todos sujeitos indistintamente, devem todos, por igual, sujeitar-se ao ato que é, pelo ordenamento jurídico, destinado a valer como sua aplicação a imparcial”.[14]
O problema da interdependência das jurisdições só se apresenta quando os diversos juízes decidem sôbre os mesmos fatos. Mas êsses fatos não são apreciados em si e por si. Conforme diz HÉBRAUD, os tribunais não são instituídos para apurar fatos, mas para resolver litígios. Não investigam e verificam fatos senão como base necessária à solução das demandas. Daí resulta que tôda constatação de fatos pelo juiz é relativa à ação em função da qual se procede.[15]
A falsa impressão que, não só os leigos, mas até estudiosos, recolhem da questão, deriva do errado ângulo em que a encaram, aceitando a absorção dos fatos pela decisão e, assim, acolhendo-os indiretamente, sob a visão do juiz, incompleta ou deformada, porque colocada no ponto de observação que corresponde à sua jurisdição.[16]
Mas os fatos, uma vez ocorridos, se incorporam à história. Nada os pode mudar. É claro que, se a decisão é fundada na ausência de prova – isto é, inexistência de fatos a apreciar – jamais se constituirá prejudicial no julgamento posterior, cuja instrução pode apurar fatos não verificados e sôbre êles livremente estabelecer decisão. É a essa irreversibilidade que se tem de atender, como limitação à autonomia das jurisdições. No que toca ao direito a pronunciar, cada juiz é absolutamente livre, na apreciação, que a sua decisão envolve, dos fatos verificados em outra jurisdição e por esta considerados, do ponto de vista em que se pode colocar, dadas as suas atribuições.
No que toca aos fatos em si, porém, não há como afastá-los ou dar-lhes versão diferente. Têm que ser aceitos definitivamente. Se, como diz HÉBRAUD, não se pode transportar diretamente a decisão de uma jurisdição para outra[17]isso deve ser entendido em têrmos. A apreciação do juiz a que são submetidos posteriormente os fatos não se obriga à apreciação do juiz que o precedeu. Mas, se a verificação anterior envolve a decisão posterior, suprime, lògicamente, essa liberdade de apreciação.[18]Tôda vez que, reaberto o debate judicial, se apurar que se repetem as exatas condições em que se feriu antes, a coisa julgada anterior, trate-se da mesma jurisdição, trate-se de jurisdições diversas, impõe-se com tôda a fôrça da sua autoridade. Isto é, não há liberdade de apreciação, quando a apreciação de uma jurisdição contém, como o todo contém a parte, a apreciação a ser feita pela outra.
Isso tanto vale na verificação da influência do julgado criminal sôbre a ação cível, como no problema inverso, da repercussão da sentença cível sôbre a ação penal e ainda na apreciação da influência da decisão administrativa sôbre a instância judicial e vice-versa. A margem de liberdade da decisão posterior não é absoluta, mas limitada pelas condições em que tenha assentado o julgamento anterior irrecorrível. Normalmente, ordinàriamente, as jurisdições se pronunciam restritivamente. Nem lhes seria lícito prejudicar o eventual julgamento posterior, invadindo-lhe a órbita de competência. Mas em certos casos há coincidência de pressupostos para um e outro pronunciamento. Quando ela ocorre, não é possível reconhecer a autonomia à decisão posterior, sob pena de admitir contradição, que constitui exatamente o temido resultado em vista do qual tanto se esforça a doutrina por uma solução de conjunto ao problema de que estamos tratando.
Aplicações práticas
Apliquemos o critério às hipóteses mais freqüentes. No que respeita à influência do julgado criminal temos que:
a) a decisão criminal condenatória tem efeito absoluto sôbre outra qualquer jurisdição. Ocorre, aí, a coincidência de pressupostos ou de condições de julgamento. A instância criminal, mais exigente do que nenhuma outra, excede, naturalmente, tôdas as preocupações das demais jurisdições. A existência de uma condenação penal estabelece que, quando não estejam superadas, pelo menos estão preenchidas as condições sôbre que as demais jurisdições formulam suas condenações.[19]
Assim, nenhuma discussão é possível, a respeito da responsabilidade civil, se a demanda de reparação vem instruída com a condenação do responsável no juízo criminal.[20]Como, hoje, em quase uniforme jurisprudência, os tribunais, para a procedência da ação de reparação contra o patrão, se contentam com a prova, da culpa do proposto, a condenação dêste no crime tem efeito preclusivo no cível, de forma que impede a defesa acaso fundada em não preenchimento das condições para a procedência do pedido de reparação, pois há coincidência dessas condições. Não se passaria assim, se à responsabilidade do patrão fôsse irrelevante a culpa do preposto ou esta não se considerasse bastante para êsse efeito;
b) a sentença criminal que nega a existência do fato (é preciso que não se limite a dá-lo como incerto ou não provado, mas que assente, precisamente, na prova da sua inexistência) eu da autoria (atribuindo-a, por exemplo, a outrem ou negando a existência do próprio fato, o que importa negar a autoria) tem absoluta eficácia de isenção na instância cível;
c) a sentença criminal que absolva por qualquer motivo peculiar à instância penal (prescrição, ausência de justa causa, anistia) não exerce nenhuma influência no cível;
d) a sentença penal fundada em dirimente ou justificativa não influi no juízo cível senão quando estabeleça culpa do ofendido. Como já dissemos, não é a justificativa ou dirimente, em si, que desautoriza a obrigação de reparar. É conter a figura, o elemento pelo qual se rompe a causalidade.
O art. 65 do Cód. Penal
A êsse propósito, o art. 65 do Cód. Penal estabeleceu confusão, ao dizer que a sentença penal fundada em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, faz coisa julgada no cível.[21]
O legislador foi infeliz por dois lados: ao designar como coisa julgada o efeito preclusivo (já vimos que não há coisa julgada sem a tríplice identidade) e ao englobar no dispositivo escusativas que têm e escusativas que não têm êsse efeito. Se, realmente, a legítima defesa, o estrito cumprimento de dever legal[22]e o exercício regular de direito produzem, uma vez reconhecidos no crime, o trancamento da ação cível, o mesmo já não se poderá dizer da sentença que reconhece o estado de necessidade, ato lícito por sua natureza, mas sujeito a ressarcimento, desde que o prejudicado não o tenha provocado ou criado.[23]O dispositivo é, pois, perfeitamente inútil;[24]e) as causas de extinção da punibilidade, restritas ao crime, não produzem efeito no juízo cível.[25]
Sempre tendo em vista que o objetivo do juízo criminal é decidir sôbre delitos, ao passo que o fim do juízo cível é resolver questão de direito litigiosa, daí resultando que suas sentenças devem ser soberanas, não se admitindo que o réu condenado no crime se faça julgar segunda vez, no cível, como não se admite que a decisão cível se sujeite à revisão na instância criminal, podemos assentar que as jurisdições têm competência exclusiva dentro dêsses limites, interpenetrando-se no que toca aos fatos que apurem.
É tempo de tocar no problema da influência da decisão cível sôbre a instância penal. A regra geral é que as decisões de caráter civil não têm efeito sôbre a jurisdição criminal.[26]O motivo por que o princípio é universalmente aceito, já o referimos. É que, em regra, a instância cível é muito menos exigente que a jurisdição criminal. Se o fato gerador da responsabilidade criminal e da responsabilidade civil é um só, o direito penal, para aplicar suas sanções, se atém a padrões muito mais rigorosos, ao passo que o direito civil, partindo de pressupostos diversos, considera precìpuamente o dano e a necessidade jurídico-política de sua reparação.
Influência da decisão cível sôbre a instância penal
Sucede, porém, não raras vêzes, que a decisão do juízo cível contém todos os elementos do julgamento criminal. É evidente que não se cogita de exorbitância do juiz ou de usurpação de funções, avançando a conclusões privativas do juízo criminal, mas de pronunciamento de sua própria competência, capaz de envolver a decisão criminal. Se, por exemplo, no juízo do desquite com fundamento em adultério, ficar esclarecido que adultério não houve, impossível se tornaria a ação penal com fundamento nessa infração ao dever conjugal. Se, porventura, em ação cível se declarar, em controvérsia sôbre a autenticidade de um documento, a improcedência da argüição de falsidade, não há como admitir, em juízo penal, a ação de falso. Com maioria de razão, a absolvição no cível, de pessoa responsabilizada per ato culposo, interditaria qualquer procedimento criminal pelo mesmo fato.
Embora não tenha a mesma categoria, a. instância administrativa está, em relação às demais, na situação de liberdade que, no decorrer dêste trabalho, temos procurado situar nos limites da competência exclusiva: aceitação dos fatos ou circunstâncias apurados na outra jurisdição, mas com autonomia para emprestar-lhes sua própria apreciação. Esta só não é livre quando, por se conter na apreciação anterior, dela não possa discrepar, sob pena de contradição. Assim, não pode a instância administrativa aplicar sanção a quem foi declarado estranho ao fato ou, de qualquer forma, dar como existente fato negado em outra jurisdição. Mas pode, em face da isenção por motivo não comum às duas instâncias, aplicar suas próprias sanções. O fato, por exemplo, que não chegue a constituir crime, pode, não obstante a absolvição na instância criminal, dar lugar a demissão na instância administrativa e, com maior razão, à aplicação de penalidades menores, desde que umas e outras não estão condicionadas aos exatos pressupostos da sanção penal, precisamente como a ação civil pode ser julgada procedente, não obstante a improcedência da ação penal.
Permiti que me detenha um momento na consideração de vossa amável cortesia. Não fôra um resto de censura que me ficou, depois de tamanha exaltação de meu reduzido merecimento e já não me reconheceria, na vertigem das alturas. Culpa vossa, amável culpa de amigos, que engrandecem generosamente os que estimam.
Rendo-vos meu mais profundo agradecimento. Não me satisfaz o trabalho que produzi. Menos me agrada ainda quando confrontado com o vosso saber e a vossa inteligência. Uma alegria, porém, êle me deu: a de conhecer-vos, a de conhecera Bahia.
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LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
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LEIA TAMBÉM:
NOTAS
*Conferência pronunciada na Faculdade de Direito da Bahia, em 19-9-52.
[1] ENRICO TULLIO LIEBMAN. “Eficácia e Autoridade da Sentença”, ed. “REVISTA FORENSE”, Rio, 1945, pág. 105.
[2] PIERRE HÉBRAUD, “L’autorité de la chose jugée au criminel sur le civil”, Paris, 1929.
[3] Deve ser reconhecido que a distinção já vinha afirmada desde o direito romano. Nunca teve porém, suficiente nitidez para encaminhar a solução do problema (cf. HÉBRAUD, ob. cit., pág. 20, nota 1).
[4] HÉBRAUD, ob. cit., pág. 29.
[5] Ao que nos parece, foi êsse móvel comum à coisa julgada e a necessidade de evitar contradição entre os julgados das diversas jurisdições, que impeliu a doutrina a considerar o problema de autoridade da coisa julgada.
[6] A eliminação total da contradição é ideal ainda não atingido. Circunstâncias diversas conduzem a soluções antagônicas que resultam ou em interesses insuperáveis ou em julgamentos de eqüidade.
[7] Com efeito, não há identidade de objeto, pois uma das ações tem por fim a punição da infração à paz social, outra a reparação pecuniária do dano; não há identidade de causa, porque não a pode constituir o fato material despido de qualquer laço jurídico com os demais elementos do processo (LACOMBE “De l’autorité de la chose jugée”, Paris, 1866, pág. 248); não há identidade de pessoas, pois é impossível confundir o ministério Público e a parte lesada pelo dano a inadmissível considerar o primeiro como mandatário do segundo.
[8] “Recueil alphabetique des questions de droit”, 1828, verb. Foux.
[9] TOULLIER, “Le droit civil français”, 1824, t. VIII, págs. 55 e segs.
[10] ORTOLAN, “Eléments de droit pénal”, 1886, t. II, págs. 315 e segs. e 467 e segs.
[11] HÉBRAUD, ob. cit., pág. 58.
[12] Ob. cit., pág. 75.
[13] Ob. cit., pág. 183.
[14] LIEBMAN, ob. cit., pág. 107.
[15] PIERRE HÉBRAUD, “L’autorité de la chose jugée au criminel sur le civil”, Paris, 1929, página 4.
[16] Autor e obra citados, loc. cit.
[17] Ob. cit., pág. 5.
[18] Se o juiz do crime, por exemplo, decide que o acusado agiu em legítima defesa pronuncia julgamento de direito. Mas a coisa julgada sôbre essa decisão tranca a liberdade do juiz do cível, que não pode julgar procedente a ação de reparação do dano proposta contra o mesmo acusado. A sentença que reconhece a legítima defesa envolve necessariamente a isenção da responsabilidade civil.
[19] O caso da tentativa inócua pareceria estranho nessa conclusão. Mas a inexistência de dano não é excludente da responsabilidade e sim da obrigação de reparar. Eis porque é útil distinguir uma da outra, nas duas fases da política da responsabilidade civil.
[20] O art. 65 do Cód. de Proc. Penal, aliás, dá força executória, nesse caso, à decisão criminal.
[21] Raramente, a prescrição cível coincide com a criminal. É claro que, se ocorre a coincidência, a solução será idêntica. Idêntica, não única. A sentença criminal não tem efeito preclusivo, não basta ao julgamento cível. É preciso que a jurisdição cível aplique a prescrição cível.
[22] Ressalvada, está claro, a responsabilidade civil do autor da ordem.
[23] Os eminentes desembargador ESPÍNOLA FILHO e Prof. BASILEU GARCIA não dão pela antinomia, que denunciamos, entre o art. 65 do Cód. de Proc. Penal e, para não aludir a dispositivos isolados (arts. 66 do mesmo Código e 1.525 e 1.540 do Cód. Civil), o próprio sistema do direito brasileiro. A verdade porém, é que essa opinião, também esposada pelo saudoso FILADELFO AZEVEDO não se da conta de que, se a fórmula fôr tomada à letra, é perfeitamente inútil, e, se fôr interpretada com os elementos que ela própria fornece, errônea. Englobando escusativas que a afastam com motivos que não afastam a causalidade, o dispositivo é corpo estranho em uma boa lei e gera confusão. Nem se argumente que o estado de necessidade deva ser examinado com vistas ao art. 1.540 do Cód. Civil. Em primeiro lugar, porque, contradizendo o próprio entendimento da maioria nem sempre haverá coisa julgada. O efeito preclusivo decorrerá de, no estado de necessidade, não ter intervindo contribuição culposa do prejudicado. Em segundo lugar, porque, como já dissemos, o problema não é de coisa julgada, mas de aceitação das circunstâncias, com liberdade de apreciação.
[24] Retificamos, pois, a orientação seguida em nosso “Da Responsabilidade Civil”, vol. 2°, página 439. Não se acham revogados pelo art. 65 do Cód. de Proc. Penal os arts. 1.519 e 1.540 do Cód. Civil. Mas o art. 65 contém verdade e inverdade. A sentença de absolvição fundada em legítima defesa, cumprimento estrito de dever legal ou exercício regular de direito impede a ação de reparação do dano. O contrário se passa com a sentença que absolve com fundamento no estado de necessidade, que não impede a ação de reparação nem exclui o dever de indenizar, salvo se aquêle estado foi criado ou provocado pelo prejudicado.
[25] CÂMARA LEAL consigna, entre as causas de extinção de punibilidade, o casamento do ofensor com a ofendida e o ressarcimento do dano, no caso de peculato culposo (“Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro”, vol. 1°, página 256), constituindo-se em exceção ao princípio da limitação de seus efeitos à instância criminal. O que ocorre, justificando a exceção, é que o casamento é forma de reparação por excelência, confundindo-se nêle a compensação cível com a satisfação moral que exclui a imposição de pena. No outro caso, é o próprio ressarcimento que, invertendo os têrmos da questão, se antecipa ao pronunciamento criminal.
[26] MERLIN, LAROMBIÈRE, TOULLIER, apud LACOMBE, “De l’autorité de la chose jugée”, Paris, 1866, pág. 311.