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Sobre as gravações ambientais, que tal um musical?
03/12/2021
Eu gosto de filmes musicais exatamente pela razão pela qual muitos não gostam: a qualquer pretexto, com ou sem coerência com o enredo, os atores começam a cantar e dançar.
Dizem que, na vida real, não é assim, o que reforça minha boa impressão: quem só quer filmes que se pareçam com a vida real? Prefiro a fantasia, o romance, a ilusão, a música, itens que, infelizmente, nem sempre são fáceis fora das telas.
Pois o meu musical preferido se chama Les Girls. É de 1957, ganhou alguns Oscars e, claro, é estrelado por Gene Kelly. As músicas são de Cole Porter e uma extraordinária dançarina, embora menos conhecida – Mitzi Gaynor – é a co-protagonista.
É natural que, a esta altura, preciso responder o que tem a ver um filme musical com as gravações ambientais, estas que a Lei 13964, de 2019 diz só poderem ser utilizadas para a defesa, a não ser que sejam precedidas de autorização judicial.
Les Girls
O enredo de Les Girls versa sobre a publicação das memórias de uma participante de um trio feminino que se apresenta em cabarés. As outras integrantes ficam inconformadas com o modo como foram apresentados suas vidas profissionais e seus percalços amorosos. Então, contam suas próprias versões, igualmente plausíveis.
A delícia do filme, fora as canções e as coreografias, é ver como um mesmo fato pode suscitar interpretações tão distintas, carregadas de valorações e impressões subjetivas. E, no fim, ainda que se prefira uma das possibilidades narrativas, as outras não se mostram desprovidas de razões.
Lei 13964 ao ambiente eleitoral
Lembrei do filme para tentar conter minha surpresa e, num certo sentido, contrariedade, ao ver a decisão que o Tribunal Superior Eleitoral adotou sobre a aplicação da Lei 13964 ao ambiente eleitoral. Ela deu nova redação ao art. 8º-A da Lei 9.296/96:
“§ 4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.”
Ao julgar recursos em três Ações de Investigação Judicial Eleitoral, provenientes das cidades de São Pedro da Água Branca (MA), Santa Inês (PR) e São José da Safira (MG) – processos n. 0000293-64.2016.6.16.0095, 0000634-06.2016.6.13.0247 e 0000385-19.2016.6.10.0092 – a Corte fixou entendimento de que as gravações ambientais feitas sem atendimento ao que exige o artigo 8º-A, § 4º, citado acima, devem ser consideradas ilícitas. Determinou, inclusive, que essa tese seja aplicável a eleições anteriores, embora a normativa delas já estivesse consolidada.
Eu, de minha parte, entendo que se trata de artigo inconstitucional. Não é possível privar o cidadão de levar ao Judiciário a prova de crimes que tenha obtido de boa-fé (isto é, sem coação, fraude, irregularidade ou induzimento), especialmente se for, ele próprio, vitimado pelo delito.
Como dizer, à vítima que grava a extorsão que lhe acomete, que esta prova não poderá ser utilizada para condenar o extorsionário, mas que este, ao revés, poderá usá-la em sua defesa?
Não há interpretação constitucional que justifique privilegiar o autor de crime em desfavor de sua vítima.
Trata-se de norma desproporcional, por insuficiente proteção aos bens jurídicos atacados pela conduta criminosa.
Decisão do TSE
A repercussão desta decisão do TSE é forte também na investigação do crime eleitoral de compra e venda de votos (art. 299 do Código Eleitoral), que tem como correspondente cível o art. 41-A da Lei 9.504/97 (captação ilícita de sufrágio).
São condutas que podem levar à cassação do registro, diploma ou mandato e, portanto, exigem prova robusta. Acontece que a prova por excelência destes comportamentos é a gravação ambiental.
Por igual, o acórdão repercute fortemente na apuração das situações de abuso de poder político e nas condutas vedadas, pois, não raro, o comportamento do abusador é objeto de gravação ambiental.
Pensei na mesma história vista sob ângulos diversos porque sei que a Corte teme – e muitos temem – a chamada “indústria das gravações”, nas quais gente mal orientada (ou bem…) sai por aí gravando tudo e todos, minando a confiança das pessoas nas suas falas e interlocuções e nulificando a privacidade individual.
Não desconsidero que estes temores são reais e efetivos.
Todavia, diviso que a melhor solução é a que vinha sendo adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Ela é também mais consentânea com o entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal sobre o assunto (RE 583.937, QO-RG, Rel. Min. César Peluso).
Cuida-se de examinar cada gravação com olhos atentos e perspicazes, para surpreender e afastar eventuais manipulações, prestidigitações e a mais lídima má-fé, separando, destas provas ilícitas, aquelas que podem, validamente, ser aceitas pelo Poder Judiciário.
É como decidia o Tribunal:
“Para os feitos relativos ao pleito de 2016, deve ser admitida como regra a licitude da gravação ambiental realizada por um dos interlocutores, sem o consentimento dos demais, e sem autorização judicial, em ambiente público ou privado, avaliando-se com cautela, caso a caso, a prova obtida mediante gravações ambientais, de modo a ampliar os meios de apuração de ilícitos eleitorais que afetem a lisura e a legitimidade das eleições” – REspe 45.502, julgado em 04.04.2019.
Como não distinguir uma gravação feita por um agente público – na qual a prévia autorização judicial é mesmo imprescindível – de uma outra, feita por um particular, de uma comunicação que, aliás, lhe era dirigida? A marca genérica da ilicitude impede que as circunstâncias do caso concreto sejam examinadas: havia possibilidade de comunicação prévia à Polícia ou ao Ministério Público? Ou a gravação foi feita para não perder uma ocasião que se mostrava única?
Temos esperança, respeitosa e forte, de que a decisão do TSE seja revista pelo próprio tribunal ou reformada pelo STF. Não se trata de desconhecer as razões que levaram a ela, mas apresentar motivos que, nesta outra perspectiva da história eleitoral, são mais fortes.
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