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União estável e namoro qualificado: divergências e convergências
Tatiane Donizetti
10/06/2021
São recorrentes as tentativas da doutrina e da jurisprudência em conceituar as uniões estáveis e, especialmente, em diferenciá-las de outras formas de relacionamento, como o namoro duradouro (“namoro qualificado”).
Por se tratar de um vínculo conjugal livre, a caracterização da união estável pode variar conforme o caso concreto. Se, por um lado, o casamento se dá necessariamente no plano jurídico, por outro, a união entre pessoas, seja estável ou não, é um instituto fático-social. Daí que o ordenamento pode determinar o que se deve entender por casamento, mas não o que seja a união livre entre pessoas.
Ficou a cargo do intérprete, então, distinguir a união considerada estável da não estável. Isso foi feito pela doutrina e pelas Leis nº 8.971/1994 e 9.278/1996, bem como pelo Código Civil. As caracterizações, no entanto, não chegaram a um consenso.
O art. 1º da Lei nº 8.971/1994, na tentativa de avançar na disciplina da matéria, definiu-a como a união de pessoas solteiras, separadas judicialmente, divorciadas ou viúvas, que dure mais de cinco anos, ou da qual tenham resultado filhos.
A Lei nº 9.278/1996, por sua vez, deixou de fazer referência à duração ou à existência de filhos, bem como às pessoas cuja união poderia ser considerada estável (art. 1º). Passou-se a requerer apenas o objetivo de constituição de família.
O Código Civil de 2002, por fim, conceituou o vínculo não matrimonial reconhecido como entidade familiar como “a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (art. 1.723).
Ressalte-se que todas essas expressões – convivência pública, contínua e duradoura – são abertas e genéricas, demandando análise caso a caso. Existem julgados, por exemplo, que consideram desnecessária a existência de prole comum, de coabitação ou de prazo mínimo para o reconhecimento, eis que, nos casos concretos, outras circunstâncias foram capazes de demonstrar a necessidade de tutela da união como entidade familiar.
Veja, a propósito, as teses divulgadas pelo Superior Tribunal de Justiça, na Edição n. 50 da Jurisprudência em Teses, especificamente sobre a caracterização da união estável:
- A coabitação não é elemento indispensável à caracterização da união estável;
- Não é possível o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas[1];
- A existência de casamento válido não obsta o reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato ou judicial entre os casados.
Não há atualmente requisito temporal para a configuração da união estável. Contudo, é claro que o tempo é um dos fatores que deve ser analisado pelo julgador. Um relacionamento de poucas semanas, ainda que existente o elemento subjetivo – desejo de constituição de família – não revela a continuidade exigida pelo art. 1.723 do Código Civil.
A configuração da união estável dependerá da análise do caso concreto. Há situações, por exemplo, em que a união nada mais é do que um “namoro qualificado”, ou seja, um relacionamento de longo tempo, com a intenção futura de constituir família, mas sem prova atual da affectio maritalis. Assim, a proclamação, para o futuro, da intenção de constituir família, não serve para a configuração da união estável.
Imagine, por exemplo, um relacionamento que perdura por dez anos. Os parceiros se apresentam como namorados e assim não reconhecidos socialmente. Viajam juntos, dividem parte dos gastos e planejam morar juntos, assim que adquirirem estabilidade financeira. Nesse exemplo, embora existam planos para o futuro, não há, no presente, demonstração de uma família constituída. Dessa forma, podemos concluir que o lapso temporal nem sempre será um fator definitivo para a definição da espécie de relacionamento vivida entre o casal.
A propósito, veja como o aspecto temporal foi insuficiente para permitir o reconhecimento e a declaração judicial a respeito da existência de união estável no caso a seguir, julgado Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
“Para o reconhecimento da união estável é necessário o preenchimento dos requisitos do art. 1.723 do Código Civil, especialmente o estabelecimento da convivência com o objetivo de constituir família. 2. No caso dos autos, a apelante não logrou êxito em comprovar que ela e o falecido mantiveram união estável durante o período alegado, ainda mais pelo fato de que não havia compartilhamento de recursos, moradia conjunta ou outro fato, além das viagens juntos, a comprovar o animus maritalis, essencial à configuração do instituto da união estável. 3. No caso, restou configurada apenas uma relação de namoro qualificado, que se distingue da união estável exatamente pelo fato de que no namoro qualificado há o objetivo futuro de constituição de entidade familiar, ao passo que na união estável a instituição familiar já está estabelecida e os conviventes possuem o chamado animus maritalis. 4. A autora e o falecido não tinham conta conjunta, transferências de valores, um não figurava como dependente do outro para fins de imposto de renda, tampouco em convênio médico, bem como não moravam juntos, mesmo com o alto custo de vida de Brasília, além de o falecido padecer de doença grave e necessitar de cuidados diários. A autora não comprovou quaisquer elementos que indicassem a constituição de família, apesar de o relacionamento entre eles ter durado 8 (oito) anos. 5. A prova testemunhal deixa entrever que existia uma pretensão futura por parte do falecido de estabelecer união estável, que foi manifestada bem antes de o falecido padecer da doença que lhe retirou a vida. Todavia, tal fato não foi concretizado, caracterizando a relação de namoro qualificado entre as partes” (TJDFT 0008530-80.2017.8.07.0016, DJE: 28/06/2019).
A coabitação, por sua vez, também não é pressuposto diferenciador absoluto entre os institutos, especialmente quando inexistente a vontade ou o compromisso pessoal e mútuo de constituir família. Como exemplo podemos citar um caso submetido a julgamento pelo STJ[2], em que se reconheceu a existência de mero namoro qualificado entre casal que morava, na mesma residência, no exterior.
Outro exemplo, também julgado pelo STJ, reconheceu que apesar da coabitação, esta não se deu por prazo suficiente para configurar a estabilidade , no sentido material e imaterial, exigida por lei. No caso concreto, um casal manteve um relacionamento por dois meses e coabitação por duas semanas. O Ministro Relator ponderou que os requisitos essenciais para a configuração da união estável – estabilidade; publicidade (modus vivendi); continuidade, e objetivo de constituição de família – deveriam ser concomitantes[3], sob pena de não ser conhecido o elo efetivo entre os conviventes.
Os ensinamentos de Zeno Veloso contribuem para a diferenciação entre a união estável e o namoro:
“Nem sempre é fácil distinguir essa situação – a união estável – de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem-sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima – inclusive, sexual -, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar – e muito – a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de ‘namoro qualificado’, os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem – ou ainda não querem – constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro – mesmo do tal namoro qualificado -, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo”[4].
O Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer a existência de “namoro qualificado”, alerta que a diferença principal entre este e a união estável reside na abrangência. A estabilidade na união deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída (STJ, REsp 1.454.643/RJ, Rel. Min. Marco Aurelio Bellizze, j. 03/03/2015). No namoro, as eventuais projeções para o futuro não estão aptas a permitir a configuração de um instituto que, por suas próprias características, gera direitos e deveres jurídicos de suma importância, tanto quanto aqueles decorrentes do casamento.
Nós, advogados, devemos prestar atenção aos detalhes da relação. Somente o caso concreto nos permitirá ponderar se existe prova fática, real e concreta do propósito de constituir família durante a convivência. Testemunhas, correspondências e documentos que evidenciem a participação do casal na compra de bens, são algumas das possíveis provas que podem evidenciar o efetivo compartilhamento de vidas em comum.
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[1] O STF possui o mesmo posicionamento. Tratamos do tema em artigo anterior “Famílias simultâneas, poligamia e o posicionamento do Judiciário brasileiro”, disponível em: http://www.elpidiodonizetti.com/familias-simultaneas-poligamia-e-o-posicionamento-do-judiciario-brasileiro/.
[4] VELOSO, Zeno. Direito Civil: temas. Belém: ANOREGPA, 2018. p. 313. Disponível em: https://www.ibdfam.org.br/artigos/1265/União+estável+e+namoro+qualificado.