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A figura do investidor-anjo no marco legal das startups (Lei Complementar 182/2021)
Marco Aurélio Serau Junior
07/06/2021
Em 1/6/2021 foi publicada a Lei Complementar nº 182, que instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, bem como alterou algumas normas de Direito Societário, a exemplo da Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.A.) e a Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte).
Essa norma foi bastante aguardada pelos setores da Nova Economia, segmento ligado à forte inovação tecnológica observada nos últimos anos e que merecia ser contemplado com um formato regulatório adequado.
Conforme disposição do art. 2º, II, da Lei Complementar 182/2021, as startups se submetem a um ambiente regulatório experimental (denominado sandbox regulatório), que consiste em um “conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais”, o que ocorre mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado.
É bem interessante essa arquitetura jurídica pautada por um modelo regulatório experimental e simplificado, mais coerente com esse segmento e econômico, dotado de grande agilidade e sempre em transformação. Isso fica bem retratado no art. 4º da Lei Complementar 182/2021:
Art. 4º São enquadradas como startups as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados.
Neste artigo nos debruçaremos especificamente sobre a figura do investidor-anjo, procurando demonstrar que esse novo instituto jurídico não corresponde, em regra, à figura do empregador:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei Complementar, considera-se:
I – investidor-anjo: investidor que não é considerado sócio nem tem qualquer direito a gerência ou a voto na administração da empresa, não responde por qualquer obrigação da empresa e é remunerado por seus aportes;
O investidor-anjo, pessoa física ou jurídica, não integra a empresa de inovação, e não possui nenhuma prerrogativa de direção empresarial, muito menos de poder diretivo (art. 2º, caput, da CLT).
Trata-se de uma nova figura jurídica, adequada a estes setores da economia que se valem da nova revolução industrial e tecnológica, que realiza um aporte financeiro em uma empresa que visualiza promissa (uma startup), em troca de uma participação nos lucros em momento posterior, sem que isso configure, necessariamente, uma estrutura societária.
A Lei Complementar 182/2021 deixa consignado que o aporte financeiro praticado pelo investidor-anjo não necessariamente integra o capital social, conforme regulamentação da CVM:
Art. 5º As startups poderão admitir aporte de capital por pessoa física ou jurídica, que poderá resultar ou não em participação no capital social da startup, a depender da modalidade de investimento escolhida pelas partes.
§1º Não será considerado como integrante do capital social da empresa o aporte realizado na startup por meio dos seguintes instrumentos:
I – contrato de opção de subscrição de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e a empresa;
II – contrato de opção de compra de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e os acionistas ou sócios da empresa;
III – debênture conversível emitida pela empresa nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976;
IV – contrato de mútuo conversível em participação societária celebrado entre o investidor e a empresa;
V – estruturação de sociedade em conta de participação celebrada entre o investidor e a empresa;
VI – contrato de investimento-anjo na forma da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro 2006;
VII – outros instrumentos de aporte de capital em que o investidor, pessoa física ou jurídica, não integre formalmente o quadro de sócios da startup e/ou não tenha subscrito qualquer participação representativa do capital social da empresa.
§2º Realizado o aporte por qualquer das formas previstas neste artigo, a pessoa física ou jurídica somente será considerada quotista, acionista ou sócia da startup após a conversão do instrumento do aporte em efetiva e formal participação societária.
§3º Os valores recebidos por empresa e oriundos dos instrumentos jurídicos estabelecidos neste artigo serão registrados contabilmente, de acordo com a natureza contábil do instrumento.
Também foi alterada a Lei Complementar nº 123/2006, que trata da microempresa, acompanhando esse enquadramento de que o investidor-anjo não necessariamente compõe a estrutura societária da startup:
Art. 61-A. Para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos desta Lei Complementar, poderá admitir o aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa.
(…)
§2º O aporte de capital poderá ser realizado por pessoa física, por pessoa jurídica ou por fundos de investimento, conforme regulamento da Comissão de Valores Mobiliários, que serão denominados investidores-anjos.
§3º A atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente por sócios regulares, em seu nome individual e sob sua exclusiva responsabilidade.
§4º O investidor-anjo:
I – não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou a voto na administração da empresa, resguardada a possibilidade de participação nas deliberações em caráter estritamente consultivo, conforme pactuação contratual;
II – não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;
III – será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de cinco anos.
§6º As partes contratantes poderão:
I – estipular remuneração periódica, ao final de cada período, ao investidor-anjo, conforme contrato de participação; ou
II – prever a possibilidade de conversão do aporte de capital em participação societária.
§7º O investidor-anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, 2 (dois) anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos na forma prevista no art. 1.031 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), não permitido ultrapassar o valor investido devidamente corrigido por índice previsto em contrato.
Em virtude deste arranjo normativo, considera-se, em regra, que o investidor-anjo não é sócio da empresa de inovação e tampouco responde por eventuais créditos trabalhistas:
Art. 8º O investidor que realizar o aporte de capital a que se refere o art. 5º desta Lei Complementar:
I – não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, conforme pactuação contratual;
II – não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, e a ele não se estenderá o disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), no art. 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, nos arts. 124, 134 e 135 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e em outras disposições atinentes à desconsideração da personalidade jurídica existentes na legislação vigente.
Parágrafo único. As disposições do inciso II do caput deste artigo não se aplicam às hipóteses de dolo, de fraude ou de simulação com o envolvimento do investidor.
O art. 855-A, da CLT, faz menção ao incidente de desconsideração de personalidade jurídica, mecanismo processual necessário para que se alcance o patrimônio dos sócios. O art. 8º, II, da Lei Complementar 182/2021, contudo, indica que esse incidente não será movido em face do investidor-anjo quanto a eventuais dívidas trabalhistas da startup.
Todo modo, é importante a ressalva contida no art. 8º, parágrafo único, da Lei Complementar 182/2021, que estabelece que a intangibilidade do investidor-anjo não ocorrerá nas “hipóteses de dolo, de fraude ou de simulação” em que este esteja envolvido.
Quanto a isto, devemos frisar disposição do artigo 9º da CLT:
Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
Além disso, deve-se lembrar da perspectiva de que no Direito do Trabalho há o princípio da primazia da realidade. Conforme Gustavo Filipe Barbosa Garcia:
“O princípio da primazia da realidade indica que, na relação de emprego, deve prevalecer a efetiva realidade dos fatos, e não eventual forma construída em desacordo com a verdade.
Em razão disso, por exemplo, na avaliação de certo documento pertinente à relação de emprego, deve-se verificar se ele corresponde ao ocorrido no plano dos fatos, pois deve prevalecer a verdade real.
(Manual de Direito do Trabalho, 10ª ed., Salvador: Juspdivm, 2018, p. 73)
Com esta perspectiva, pode-se argumentar que, em regra, o investidor-anjo não responderá por eventuais dívidas trabalhistas da startup. Todavia, se no caso concreto a relação de apadrinhamento da empresa de inovação configurar fraude à norma trabalhista e mascaramento de trabalho subordinado será viável que o investidor-anjo, pessoa física ou jurídica, venha a se responsabilizar pelos créditos trabalhistas.
A partir de comprovação de eventual fraude na forma como ocorreu o aporte de capitais por parte do investidor-anjo, configurando, de fato, algum tipo de arranjo societário e não apenas a perspectiva do patrocínio, será possível cogitar sobre a formação de grupo econômico (art. 2º, § 2º, da CLT), bem como de sucessão empresarial (artigos 10 e 448 da CLT) simulada.
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