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Os fundamentos do Direito das Sucessões e a tendência de “contratualização” da matéria
Flávio Tartuce
29/10/2020
Tem-se afirmado, no âmbito do Direito das Sucessões, uma tendência crescente de “contratualização”, incrementada sobretudo pela busca de mecanismos de planejamento sucessório. Nessa linha, destaco o recente artigo de Gustavo Henrique Baptista Andrade e Marcos Ehrhardt Jr., publicado na coluna Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont (A autonomia da vontade no direito sucessório: quais os limites para a denominada “sucessão contratual”.)
Porém, como tenho advertido em exposições sobre o tema, é preciso conhecer os limites dessa valorização da autonomia privada, com respeito e observância de regras fundamentais da matéria sucessória, como a proteção da legítima – quota dos herdeiros necessários, fixada em 50% do patrimônio do falecido – e a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina – retirada do art. 426 do Código Civil de 2002.
Mas não são só essas limitações que devem ser consideradas pelo intérprete a respeito da citada “contratualização”, que encontra óbices nos próprios fundamentos do Direito das Sucessões no Brasil. Nesse contexto, o nosso sistema não admite, por exemplo, a renúncia prévia ou mesmo o repúdio à herança por qualquer contrato ou negócio jurídico que a almeje. A respeito da renúncia à herança, aliás, trata-se de um ato jurídico formal, que deve observar estritamente os requisitos previstos no Código Civil. Assim, conforme o seu art. 1.806, a renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial, após o falecimento do de cujus. Para que a renúncia ou o repúdio prévio à herança seja possível, é preciso alterar a legislação a respeito da matéria, inserindo uma previsão nesse sentido no art. 426 do Código Civil.
No contexto da proposta deste texto, interessante lembrar quais fundamentos sucessórios seriam esses, a partir de algumas das lições da doutrina nacional. Para tanto foram escolhidos dois doutrinadores, um clássico e uma contemporânea.
Ao tratar da justificação do Direito das Sucessões, Orlando Gomes aponta uma certa “condenação” da disciplina, por razões diversas, citando Lassalle, que a combateu por basear-se em ideias anacrônicas, quais sejam a de continuação da vontade do defunto e a de compropriedade aristocrática da família romana. Menciona o jurista, ainda, que outros sustentaram, com o apoio de Saint-Simon, que o Estado deveria ser o “herdeiro universal das fortunas privadas”, obtendo sem violência a transferência de todos os bens ao domínio público (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2). Entre os negacionistas, lembra que Menger “preconiza a proibição de se transmitirem, mortis causa, os bens de produção, admitindo, entretanto, o direito de disposição dos bens de consumo”.
Ainda conforme Orlando Gomes, entre os que afirmam positivamente o Direito das Sucessões, o argumento mais forte é o de que a herança “não é mais do que a extensão da propriedade privada além dos limites da vida humana. O próprio Menger reconhece que está intimamente ligado o destino das duas instituições, a propriedade e sucessão. Se a apropriação individual de bens de qualquer espécie é legalmente protegida, e até estimulada, não se justifica a expropriação com a morte do proprietário. Em todos os tempos, a sucessão tem sido admitida e, até nos povos que aboliram a propriedade privada dos bens de produção, ocorre em relação aos bens de uso e consumo, como no Código Civil soviético (art. 416)” (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2-3).
Com base em Cimbali, ensina ainda Orlando Gomes que a propriedade é constituída sob o impulso de fatores diferentes, que concorrem para a sua formação e a sua garantia: “são elementos subjetivos que se tripartem. O elemento individual prepondera em sua aquisição. O familiar, na sua conservação. O social, em sua garantia. Enquanto vive, os três fatores compartilham das utilidades da propriedade. Por sua morte, cada um dos três fatores reivindica a parte lhe que cabe”. Finaliza dizendo que a sucessão mortis causa encontra a sua justificação e a sua fundamentação nos mesmos princípios que fundam o direito de propriedade individual (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2-3). Essa é uma conclusão muito comum no Direito Civil Brasileiro, no sentido de que o direito de propriedade – atualmente previsto no art. 5º, inc. XXII, da Constituição e no art. 1.228 do Código Civil – estriba a sucessão, assim como ocorre em outros Países do sistema da Civil Law.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade, defendida perante o Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aponta fundamentos diferentes para o Direito das Sucessões e para a transmissão sucessória no transcorrer dos tempos. Cita, de início e nas civilizações antigas, a necessidade de se ocupar o lugar do pater familias. Destaca, ainda, a necessidade de se preservar as forças da família (Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente. Tese apresentada para concurso público de Professor Titular junto ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Edital FD 44/2009. São Paulo, 2010. p. 394). Em continuidade histórica, aponta que os jusnaturalistas procuraram compreender a sucessão – assim como se dá com a propriedade – como mera construção positivista, podendo “ser abolida logo que isso interessasse às conveniências sociais”.
Seguindo nos seus estudos, assinala a corrente defendida pelo já citado Cimbali, e também por D’Aguano, para quem o “fundamento da sucessão encontrava sua ênfase em pesquisas biológicas que buscavam demonstrar existir uma espécie de continuidade da vida humana por meio da transmissão de ascendentes a descendentes, não apenas das características genéticas mas também psicológicas. Como conclusão, os estudiosos advertiram que a permissão legal acerca da transmissão do patrimônio do morto para seus descendentes operava-se por razões de ordem biopsíquica. Com o passar do tempo, essa corrente de matiz biológico foi enriquecida com novos fundamentos, como a afeição e unidade familiar, atualizando e humanizando o tema”.
Giselda Hironaka, ao final, sustenta, o que também é defendido por muitos autores brasileiros, caso de Caio Mário da Silva Pereira, Itabaiana de Oliveira e Clóvis Bevilaqua, que a justificativa do Direito das Sucessões tem as suas bases na necessidade de se fazer um alinhamento – ou uma sincronização – entre o direito de propriedade e o Direito de Família: “esta corrente procura demonstrar que o fundamento da transmissão causa mortis estaria além de uma expectativa de continuidade patrimonial, quer dizer, na simples manutenção dos bens na família, como forma de acumulação de capital que, por sua vez, estimularia a poupança, o trabalho e a economia, porém, mais que isso, o grande fundamento da transmissão sucessória habitaria o fator de proteção, coesão e de perpetuidade da família” (Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente, cit., p. 395-396). Assim também vejo a correta fundamentação da sucessão na realidade jurídica brasileira.
Essa sincronização, baseada igualmente na solidariedade familiar, tem justificado a manutenção da legítima, quota dos herdeiros necessários, em percentual fixo de 50%. E a legítima, sem dúvida alguma relacionada a citados fundamentos do Direito das Sucessões, impede, no atual sistema legislativo brasileiro, a tão mencionada “contratualização” da matéria, que pode representar até o seu fim, com o afastamento da sua justificação.
De toda sorte, muitas dúvidas permeiam o debate, algumas delas vindas de longa data, desde a elaboração do Código Civil de 1916, como destacado pelo próprio Clóvis Bevilaqua. Seria o caso de se extinguir a legítima, retirando-se esse importante controle relativo à autonomia privada? Mantendo-se a legítima, ela deveria ser revista, diminuindo-se o seu montante? Tais mudanças, no plano legislativo, justificam-se na atualidade, em especial diante da crise pandêmica que nos assola? Não seria o caso de se instituir entre nós um sistema de legítima variável? São interrogações que tenho procurado responder nos últimos anos, tendo a pandemia de covid-19 alterado algumas de minhas conclusões anteriores, notadamente a respeito de eventual diminuição da quota da legítima. Voltarei a esses temas em outro artigo.
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