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TRIBUTÁRIO
Um país tomado por epidemia de normas
Kiyoshi Harada
06/10/2020
Lembro-me do desabafo do saudoso professor Ruy Barbosa Nogueira que nos idos de 1986 publicou um artigo intitulado “Constituição no país da epidemia de normas”. Na época eu frequentava a Mesa Semanal de Debates de questões práticas de Direito Tributário que o professor presidia com maestria, no Instituto Brasileiro de Direito Tributário por ele fundado e que até hoje perdura. Ao final de cada sessão de debates o professor anunciava o tema para o próximo debate, indicando os textos legais que deveriam ser examinados previamente pelos participantes (advogados, professores, membros da magistratura e estudantes dos cursos de mestrado e doutorado). Só que chegando o dia assinalado para os debates, não raras vezes, os textos legais indicados haviam sido revogados ou alterados substancialmente.
Essa anomalia que se iniciou no campo de Direito Tributário, hoje, ela se alastrou por todo o universo jurídico não poupando sequer os textos constitucionais. Porém, é certo que é na área do Direito Tributário que a fúria legislativa atingiu com maior intensidade, resultando em um sistema tributário caótico, dúbio, confuso, nebuloso e contraditório, onde se misturam normas constitucionais com as de leis complementares, de leis ordinárias gerais e especiais, de decretos, de portarias, de instruções normativas, de pareceres normativos, de atos declaratórios etc., sem qualquer obediência ao princípio da hierarquia vertical das leis.
Calcula-se que hoje o Brasil produz em medida cerca de 18 leis diárias. Só que da mesma forma com que as leis são produzidas com a espantosa velocidade, elas são imediata e rigorosamente descumpridas, ensejando o emperramento do Poder Judiciário que se apresenta com um aspecto de uma massa falida irreversível. Enfim,, decidir que o demandante tinha o direito subjetivo pleiteado, após quinze ou vinte anos de tramitação do processo, sem que ele possa usufruir dos efeitos materiais da decisão transitada em julgado não é fazer justiça [1], finalidade última da atividade jurisdicional exercida em regime de monopólio estatal pelo Judiciário.
Sempre que uma lei é descumprida resulta em efeitos indesejáveis que ela buscou prevenir, o legislador parte para elaboração de outro instrumento normativo, uma lei complementar, por exemplo, no errôneo pressuposto de que ela goza de uma hierarquia superior à lei ordinária e que como tal será cumprida. E quando descumprida a lei complementar o legislador, muitas vezes, lança mão de uma emenda constitucional para constitucionalizar a matéria. Só para exemplificar, o descumprimento sistemático das normas da lei orçamentária anual por ignorar as diretrizes da Lei nº 4.320/64, que dispõe sobre elaboração e controle dos orçamentos, resultou na aprovação da Lei Complementar nº 101/00, Lei de Responsabilidade Fiscal que instituiu inúmeros mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária [2] com o objetivo de manter sempre equilibrado as finanças públicas. Não deu certo! O déficit publico atingiu patamar dantes nunca visto. Isso fez com que o governante patrocinasse, a toque de caixa, e com aplausos da população leiga a PEC de nº 141 que congelava as despesas públicas por vinte anos consecutivos. Nos debates que se travaram à época no Conselho Superior de Direito da Fecomércio eu dizia que a PEC seria celeremente aprovada porque estava afastado de antemão o perigo de dar certo. Aquela PEC resultou na aprovação da Emenda Constitucional nº 95/16. Só que o déficit primário que era de 139 bilhões, após a Emenda saltou para 159 bilhões e depois para 161,300 bilhões. Esclareça-se, contudo, que parte do crescimento desse déficit deveu-se ao fato da inoportuna denúncia apresentada contra o Presidente da República, deflagrando uma crise política [3].
Nunca se deve esquecer que o remédio para os males da economia não pode ser o tratamento jurídico, uma noção elementar que vem sendo convenientemente ignorada. Não está longe da verdade quem sustenta que a quantidade de leis está diretamente relacionada com o grau de corrupção de um país. Quanto mais corrupto o país, mais leis ele produz.
O pior é que a proliferação de normas não fica apenas no nível infraconstitucional. Aqui é oportuno lembrar as palavras do saudoso Roberto Campos que foi um homem de uma visão extraordinária:
“O problema brasileiro nunca foi fabricar constituições; sempre foi cumpri-las. Já demonstramos à saciedade, ao longo de nossa história, suficiente talento juridicista – pois que produzimos sete constituições, três outorgadas e quatro votadas – e suficiente indisciplina para descumpri-las rigorosamente todas!”
Diga-se a bem da verdade que o que temos hoje não é mais aquela Constituição de 1988 que restabeleceu a normalidade democrática. Tirante o núcleo protegido por cláusulas pétreas tudo o mais foi mexido e remexido por quatro Emendas de Revisão e cento e oito Emendas Constitucionais [4]. Tudo está sendo constitucionalizado tornando inviável a atuação do STF com guardião da Constituição.
Sob a bandeira das reformas que está na moda, várias delas estão em tramitação ou em preparação: reforma tributária, reforma política, reforma administrativa etc.
Convencionou-se afirmar que as reformas são necessárias porque nada no mundo é estático. Concordo. Só que as reformas não podem ser feitas apenas para remediar os resultados catastróficos visíveis a todos. É preciso, antes de tudo, diagnosticar as causas e uma vez identificadas devem ser removidas ao invés de reformas. É como a felizmente naufragada lei de execução fiscal administrativa que tentou substituir a execução fiscal judicial, porque o governo ficou assustado com o estoque das execuções e a morosidade do Judiciário, em média 14 anos para ultimação do processo de execução fiscal contra cinco anos de duração de um processo administrativo de natureza fiscal. Conseguimos demonstrar em audiência pública perante o Conselho da Justiça Federal que a causa da morosidade estava no ajuizamento de execuções sem critério qualitativo do crédito tributário, misturando devedores que distribuem dividendos semestrais com milhares de pequenos devedores em lugar incerto e não sabido e sem possibilidade de localizar bens para a penhora. Apresentamos uma proposta substitutiva exigindo a penhora administrativa como requisito da execução fiscal juntamente com a CDA, porque o importante é a observância dos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, pouco importando a autoridade (judicial ou administrativa) que ordena a penhora, sem a qual o processo não tem andamento. O projeto está paralisado no Congresso Nacional, onde sofreu inúmeras emendas acrescentando dispositivos com elevado grau de sadismo burocrático. Porém, na prática, a União já está dando preferência aos créditos de elevado valor para não transformar o Judiciário em um órgão de investigação do paradeiro do executado e de seus bens. Mesmo assim, o estoque da dívida ativa da União atingiu a R$3,2 trilhões.
Na reforma da Previdência Social, por exemplo, não se identificou a causa ou causas do seu déficit, partindo simplesmente para a redução ou postergação de benefícios previdenciários. Era preciso saber o exato montante destinado à Previdência Social por conta da fabulosa arrecadação de sete contribuições de seguridade social onde se insere a Previdência juntamente com a Assistência Social e a Saúde. Sabe-se que a arrecadação dessas contribuições sociais atinge quase o dobro da arrecadação de todos os impostos federais. E mais, até o advento da EC nº 93/2016, que prorrogou a DRU [5] até o ano de 2023, 20% da receita pertencente à Previdência social era rigorosa e mensalmente desviado de suas finalidades.
No que tange à reforma tributária, sob o disfarce da simplificação tributária, ao invés de procurar aumentar o peso da carga tributária [6] deveriam os governantes dimensionar o tamanho do Estado e estimar o seu custo. Por isso, sempre digo que a reforma política deve preceder a reforma tributária. Se a cada aumento tributário for seguido por criação de novos órgãos e cargos públicos, como vem acontecendo, de nada valerá a reforma feita. Não há recursos que bastem para financiar este Estado paquidérmico. Enxugados os órgãos e empresas estatais que servem de cabide de empregos públicos e eliminados os incentivos fiscais espúrios poderá haver até a redução de tributos, retornando ao nível razoável de imposição da década de 90.
A reforma trabalhista, levada a efeito no plano infraconstitucional, é a única que deu certo contribuindo para a manutenção do emprego [7], a fim de conferir dignidade de que tanto fala a Constituição Cidadã aos milhões de desempregados que vivem na miséria total. Pena que a pandemia decorrente da Covid-19, seguida de isolamento social horizontal, fez com que houvesse desemprego em massa, apesar do programa emergencial de manutenção da renda e do emprego colocado em prática pelo governo federal.
Por fim, as produções legislativas são ilimitadas porque elas visam dar tratamento jurídico como panacéia para todos os males, não distinguindo problema jurídico dos problemas de natureza econômica, política, social, educacional etc. Vigora o errôneo pensamento de que basta tão só a lei para liquidar com os problemas existentes. Arregaçar as mangas, ou botar a mão na massa para resolver os problemas ninguém quer. Entretanto, as leis não são autoaplicáveis. Elas devem se operadas por alguém de forma constante, consciente e efetiva. E o Órgão Ministerial deve passar a fiscalizar efetivamente o cumprimento das leis. Não é admissível rezar com a cartilha da lei que “pega” e da lei que “não pega”, principalmente, se movidos por interesses pessoais. Caso contrário de nada adiantará as comoventes proclamações como as que constam da Constituição Cidadã que soam como anedotas ante a realidade existente.
Exemplifiquemos algumas delas:
a) a educação é dever do Estado com a colaboração da sociedade [8], quando ela é dever da família com colaboração do poder público; b) no plano político as normas conduzem ao chamado presidencialismo de coalizão, um misto de presidencialismo e de parlamentarismo que se distancia cada vez mais da democracia; c) no campo social predominam os mirabolantes processos de inclusão, todos eles utópicos ou ineficientes. O Bolsa Família vem sustentando aposentados e pensionistas e até defuntos; d) no setor de segurança pública, os presos têm mais direitos do que os trabalhadores, só que a maioria dos estabelecimentos prisionais não oferece condições mínimas de dignidade ao preso; e) a saúde é um direito do cidadão, porém, muitos morrem nas filas do SUS; f) finalmente, a Constituição emprega 4 vezes a palavra “deveres” ao passo que emprega 44 vezes a palavra “garantias”, e 76 vezes a palavra “direitos”. Ora, direitos e obrigações são o verso e o reverso de uma mesma moeda!
Por derradeiro, os textos legais refletem a cultura do individualismo arraigado entre nós, desde os tempos imemoriais. O ter está incorporado na mente do povo. Muitos quebram rotineiramente as barreiras éticas para cultivar o ter a qualquer custo. Enquanto não houver uma reorientação da cultura para o coletivismo, que aumenta a empatia entre as pessoas e constroem pontes ao invés de abismos que separam os poucos que vivem como nababos da grande maioria que vive abaixo da linha da miséria, as leis continuarão refletindo essa irrealidade que conduz em última análise à elaboração de uma Constituição poética que Roberto Campos denominava de “uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação de efêmero, e ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas”.
As reformas são realmente necessárias, mas não daquelas elaboradas por poetas do direito, porém aquelas que resultam do poder soberano do povo e dentro das reais possibilidades financeiras do Estado. As reformas tributárias em discussão no Congresso Nacional mais se parecem com a obra de Tomas Morus.
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[1] Ao término da demanda, muitas vezes, o autor da ação já faleceu ou não mais está em condições de usufruir do resultado material da decisão judicial. E quando a demanda for contra o poder público grande parte dos autores vitoriosos acabam morrendo na fila interminável dos precatórios judiciais, objetos de moratórias por sucessivas emendas constitucionais.
[2] Apresentação mensal do balancete de receitas e despesas; relatório bimestral da execução orçamentária; relatório quadrimestral das metas fiscais. Esses documentos são produzidos de forma informatizada fazenda parte de inútil burocracia estatal; ninguém os examina, avalia e propõe medidas concretas previstas na lei para manter a saúde financeira do Estado. Preferem nas proximidades do final de cada exercício dar uma solução legislativa, alterando as metas fiscais não atingidas por falta de controle e fiscalização.
[3] Denúncia contra o Presidente em pleno exercício do cargo é sempre um fator de desestabilização política a refletir no desempenho da economia. Não fora as duas denúncias que sofreu, o Presidente Temer, com certeza, teria emplacado a reforma da previdência.
[4] O Brasil somente perde para o México que emendou a sua Constituição mais de 300 vezes.
[5] DRU significa desvinculação das receitas da União. É sucessora do Fundo de Estabilização Fiscal que, por sua vez, sucedeu ao Fundo Social de Emergência criado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1/94 em face da situação de emergência que atravessava o país. Hoje 30% das receitas da União ficam desvinculadas, isto é, o governante pode gastar à sua discrição e não segundo a lei orçamentária vigente. Com o falacioso discurso de que a DRU é instrumento importante para organizar a economia, o que era excepcional e efêmero vem se perpetuando, convivendo as normas orçamentárias para organização das finanças públicas com as normas da DRU voltadas para desorganização parcial das contas públicas.
[6] A bandeira da simplificação do sistema tributário para aliviar a carga tributária tem sido o discurso dos últimos vinte anos, sempre resultando em mini pacote tributário com elevação de tributos ou criação de tributo novo, como aconteceu com a extinta CPMF.
[7] Tamanha era a proteção dispensada aos que estão empregados que ficava mais fácil ao empresário fazer rolar uma bola quadrada do que despedir um empregado tomado de preguiça crônica.
[8] Há uma ligeira confusão entre educação e ensino fundamental. Por sinal, o ensino no Brasil está distorcido, configurando uma pirâmide invertida. Há muito mais investimento no ensino superior do que no ensino fundamental, contribuindo para a formação de um contingente de 68% de analfabetos funcionais somados os egressos do ensino fundamental e do ensino médio, a refletir na qualidade do ensino superior. Segundo dados da OCDE para o biênio 2014-2015 o Brasil gastou no ensino superior U$ 11,7 mil por ano situando-se bem próximo da média dos países filiados a esse organismo internacional que foi de U$ 16,43 anual por aluno. No ensino fundamental o Brasil gastou apenas U$ 3.800 mil por ano contra a média dos países filiados a OCED que foi de U$ 8.700 por ano no mesmo biênio 2014-2015. Em outras palavras, o nosso país gasta com o ensino superior cerca de três vezes mais do que gasta com o ensino fundamental. Por isso dizemos que o sistema educacional brasileiro está invertido e pervertido, pois ele peca exatamente na base. E aqui é oportuno reproduzir as palavras de Arthur Conan Doyle: “Nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco”.