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Estudar Direito fora: experiência como visiting scholar

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2 semestres no exterior: minha experiência como visiting scholar em Syracuse e Cornell

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Luiz Dellore

Luiz Dellore

19/08/2020

Conforme exposto em texto anterior desta série “Estudar Direito Fora”, entendi que após mestrados e doutorado no Brasil, era hora de uma experiência internacional[1]. Optei pelos Estados Unidos, país que me acolheu para meu período de pós-doutoramento, mais precisamente como Visiting Scholar.

Destaco, desde logo, que não tenho um “título de pós-doutor”, nem que devo ser denominado de “pós-doutor”[2], pois este período de pesquisas não pode ser equiparado a um mestrado ou doutorado, esses sim títulos efetivamente outorgados.

Em agosto de 2018 cheguei na Universidade de Syracuse para ficar um semestre, sendo que no final de 2018 acabei recebendo um convite da Universidade Cornell para ficar no 1º semestre de 2019, completando assim dois semestres de intensas pesquisas, debates e reflexões.

Neste texto, quero destacar em linhas gerais um pouco da minha experiência, esperando que isso possa ser um estímulo àqueles que têm pretensões de estudar fora.

1) O foco das minhas pesquisas: o planejado e o realizado

Fui com o objetivo de estudar a coisa julgada no modelo americano, para saber até que ponto o sistema dos EUA influenciou e pode auxiliar na compreensão da coisa julgada no NCPC[3]. Pensei que ficaria focado em coisa julgada, mas – felizmente – estava enganado. Não é possível entender a coisa julgada sem entender o sistema jurídico como um todo. Assim – e por estímulo do professor Antonio Gidi, brasileiro radicado nos EUA e que leciona e me recebeu em Syracuse – além de pesquisar na biblioteca sobre o tema, me inscrevi para assistir como ouvinte algumas disciplinas: Processo Civil, Constitucional e Introdução ao Sistema Jurídico Americano.

As aulas foram muito úteis, e isso abriu consideravelmente meus horizontes. De modo algum a simples leitura de textos sobre coisa julgada nos EUA me permitiria entender o sistema como um todo. Para isso, as aulas – e os debates, considerando o método socrático de ensino[4] – foram fundamentais. Assim, apesar de eu ter “perdido” tempo estudando não só coisa julgada, isso foi muito bom para eu entender o sistema como um todo.

As aulas de Constitucional da professora True-Frost – que debatia as decisões da Suprema Corte Americana a respeito de direitos fundamentais ao longo das décadas, em um momento de ebulição em que o Congresso escolhia o Justice Kavanaugh para ser magistrado da Corte – foram sensacionais. Posso dizer que vi a história dos próximos anos da SCOTUS[5] sendo escrita durante estes meses.

Assim, o efetivo ritmo de pesquisas foi mais lento do que eu havia planejado; mas, não houve qualquer problema nisso: a quantidade de temas que eu conhecia superficialmente ou simplesmente desconhecia e tive a oportunidade de estudar – no aspecto processual e constitucional, que são meus focos – foi muito superior ao que eu pensava que teria aqui.

E no atual semestre, em Cornell, assisti às aulas de Processo Civil do professor Kevin Clermont, um dos maiores processualistas americanos da atualidade. Além das aulas, a possibilidade de debate frequente, no gabinete dos professores Gidi e Clermont (algo da tradição daqui) foi outra coisa espetacular.

A cada caso, leitura e discussão, as dúvidas que surgiam eu anotava e então, nos encontros regulares com os professores que me receberam (que não são tecnicamente os orientadores, pois já não estamos mais no mestrado ou doutorado – lá são chamados de sponsors), as conversas eram longas e muito interessantes. Ou seja, sem dúvida a experiencia valeu muito a pena.

No mais, tive também a oportunidade de ministrar algumas aulas nas duas Universidades, para expor um pouco sobre o sistema jurídico e a coisa julgada no Brasil. Estes foram momentos muito gratificantes.

Foto: Arquivo Pessoal

2) Diversas palestras, e não só no âmbito do Direito

Mas a minha presença na Universidade não se limitava à pesquisa, aulas e debates com os sponsors. Estive presente em diversos eventos e palestras. No âmbito do Direito, por exemplo, assisti a um interessante debate a respeito do controle de armas, com a exposição de um professor ferrenho defensor da liberdade de andar armado, e com a igualmente ferrenha crítica de um outro professor que estava na plateia assistindo ao evento. Blockchain e novas tecnologias sob a perspectiva do Direito também foram outras palestras que estive presente.

Mas talvez a mais curiosa tenha sido a palestra acerca das consequências jurídicas relativas ao uso de material genético. Exemplo: um político tem um fio de cabelo encontrado num quarto de hotel e, a partir da pesquisa genética, descobre-se que ele tem o gene de uma doença bastante grave – isso pode ser objeto de análise genética e divulgação sem o consentimento da pessoa? Questões que seguramente logo mais enfrentaremos.

Fora do Direito, também assisti muita coisa: futebol feminino e política na América Latina e a situação atual das Coreias são alguns dos exemplos. Mas, a que mais me impactou, foi a palestra sobre o período em que os descendentes de japoneses, durante a II Guerra Mundial, foram segregados e mandados para campos isolados nos EUA.

Para quem não conhece esse fato histórico, vale pesquisar – e isso foi chancelado pela Suprema Corte Americana, como constitucional…

3) A experiência de viver em outro país

Mas é claro que os meus meses aqui não foram exclusivamente na Universidade. Tive – em conjunto com minha mulher e filho – a oportunidade de viver uma nova realidade, em outro país, numa cidade pequena (sou de São Paulo), com outra cultura. A começar pela temperatura: a região de Central New York, onde estão as duas Universidades, é conhecida pela neve e frio. Chegamos no verão e pegamos temperaturas elevadas. Mas logo veio o outono e rapidamente o frio e neve chegaram. As temperaturas mais baixas chegaram perto de -25º C, com sensação térmica inferior a -30º C. O que sei é que nunca mais reclamarei mais do calor brasileiro. Com esse frio, simplesmente não dá para ficar fora de casa ou do carro.

Falando em carro, dirigir na neve, para quem não está acostumado, é outro desafio, sendo que nos primeiros dias de neve atolei o carro no acostamento e foi necessário chamar guincho para me tirar…

Houve um final de semana de nevasca em que praticamente tudo ficou fechado: na 6ª à noite as pessoas nos diziam “cuidado com a nevasca, fiquem em casa, tenham comida, lanterna, água, para o caso de a situação ficar complicada”. Passamos o sábado e domingo em casa, vendo as notícias na TV informando de estradas fechadas e que todas as atividades (como cinemas e igrejas) estavam fechadas. Não passamos por nada de grave, mas a sensação é desagradável; você saía da porta de casa e a neve estava acima do seu joelho.

Fora isso, o esporte universitário é algo bastante presente em uma cidade universitária: fui a jogos de futebol (o nosso), futebol americano e basquete, e a torcida é muito mais apaixonada pelo time universitário do que pelos times profissionais (por exemplo as pessoas falam muito mais do basquete de Syracuse ou do hockey de Cornell do que dos times da NBA ou do hockey profissional).

Participei das tradições que muitas vezes vemos nos filmes, como halloween (digo, acompanhei meu filho, pois as crianças é que pegam os doces, claro), lavar roupa em lavanderias coletivas e ser o técnico do time de basquete do meu filho, o que foi bastante divertido. Da mesma forma, frequentamos uma igreja onde fomos muito bem recebidos e pudemos participar de comemorações como o jantar de ações de graças e um Natal totalmente na neve com famílias americanas.

Além disso, como as Universidades recebem muitos estrangeiros, conheci gente de vários locais do mundo, tendo contato também com a cultura de outros países. Tive o prazer de ter contato com pessoas de Egito, Síria, Palestina, Sudão, Etiópia, Colômbia, Equador, Dinamarca, Itália, Portugal, Espanha, Polônia, Gales, Kosovo, Geórgia, Ucrânia, Paquistão, Coreia do Sul e China. Debater Direito e ouvir um pouco da realidade de cada um é bastante estimulante, sendo que alguns desses estudiosos já aceitaram convites para palestrar no Brasil.

E, claro, há a vantagem de melhorar a fluência em outra língua. E nesse ponto, destaque para as crianças: meu filho chegou sem falar inglês e hoje me corrige na pronúncia, o que é ótimo.

Assim, do ponto de vista cultural, uma experiência muito rica: tanto pelos aspectos positivos daqui (como, por exemplo, o respeito que se tem, em todos os níveis, aos bens do outro e à coisa pública) e negativos (como por exemplo a comida nada saudável que é servida às crianças nas escolas). Ou seja, período muito útil também para valorizar o que o Brasil tem de bom, e é muita coisa[7].

4) A involuntária experiência com o Direito local: multa de trânsito

O meu objetivo era ser apenas um observador do sistema jurídico americano. Mas, fui além disso. Tive alguns problemas relativos a relações de consumo, no geral solucionados pela via negocial, sem a necessidade do Judiciário.

Contudo, por força de um momento de descuido e alta velocidade na estrada, me tornei réu. É isso: multa de trânsito aqui dá origem a um processo judicial: “The State of NY v. Luiz Dellore”. Ao dirigir acima da velocidade permitida, um policial veio atrás de mim, com luzes e sirene indicando que eu parasse (outra cena de filme). Foi muito educado e ao perceber que eu era estrangeiro, me deu uma aula sobre a multa: disse que eu poderia reconhecer a culpa (guilty) ou então me declarar inocente (not guilty), e que se eu me declarasse inocente, o promotor (district attorney) poderia me oferecer um acordo: o plea bargain. Exatamente aquilo que estão querendo implantar no Processo Penal brasileiro.

Como “quem está na chuva é para se molhar”, até para ver como funcionava o sistema, eu me declarei inocente. Fiz isso no formulário que o guarda de trânsito me entregou no momento da autuação, enviando pelo correio minha manifestação. Alguns dias depois, recebi – também pelo correio (nada de e-mail) – uma notificação para comparecer à audiência, que seria na Comarca onde a multa ocorreu.

No dia da audiência, fui ao fórum, sem advogado (não existe a obrigatoriedade de advogado aqui; na verdade isso é praticamente uma exigência que só existe no Brasil, sendo que os estrangeiros de vários locais do mundo se surpreendem quando dizermos que o advogado é obrigatório).

Todos os réus (deveriam ter uns 30) chegam no mesmo horário, todos já entram na grande sala de audiência, todo mundo junto. Dois juízes estão à frente, assessorados por dois servidores. E entre os juízes e os réus, uma mesa para o promotor.

A partir daí, parecia mais uma feira que um fórum: cada um dos dois juízes literalmente grita o nome do réu, que, no meio de todos, levanta-se, vai à frente, conversa com o juiz (de pé) e é informado que pode ou não fazer um acordo com o promotor. Se a pessoa quer o acordo, o juiz encaminha para o promotor. Daí, depois, o promotor chama o réu e eventualmente faz a proposta (também de pé, nada de sentar pois não tem lugar). Quem aceita a proposta já fica esperando para depois de novo falar com o juiz, que vai homologar o acordo. Tudo isso acontecendo ao mesmo tempo! Uma bagunça, nada de privacidade ou nada de formalidade, salvo chamar o juiz de your honor.

No meu caso, o que aconteceu foi o seguinte:

a) uns 15 minutos depois de a audiência coletiva começar, o juiz me chamou, me ofereceu a possibilidade de eu insistir como not guilty (aí teria uma outra audiência para eu me defender) ou ouvir a proposta de acordo do promotor, eu disse que queria ouvir a proposta;

b) mais uns 15 minutos o promotor (na verdade, só o assistente do promotor estava lá) me chamou, disse que como era minha 1ª multa, o acordo proposto era mudar de moving ticket (multa enquanto se dirigia) para non-moving ticket (multa menos grave, quando não se está dirigindo, como abrir a porta do carro sem cuidado, e isso não gera pontos na carteira de motorista) mais pagamento de multa;

c) como eu já tinha estudado a lei de trânsito local, eu aceitei a mudança de movingpara non-moving, mas disse que não queria pagar nada de multa; o assistente do promotor disse que não tinha como oferecer isso, pois o acordo dele para todo mundo era o mesmo (ou seja, o “modelão” que tanto estamos acostumados no Brasil);

d) para não alongar o processo, aceitei o acordo;

e) mais uns 10 minutos e novamente o juiz me chama, fixa o valor exato da multa e pergunta como eu vou pagar: cash ou cartão. Paguei com cartão, e a assistente do juiz tinha a maquineta e passou na hora, o juiz depois fez o recibo, à mão; para quem paga com dinheiro, o juiz (ele mesmo) pega um cofrinho portátil, abre com sua própria chave, recolhe o dinheiro, dá o troco se necessário, tranca de novo o cofre (imaginem só isso no Brasil!).

Enfim, apesar de desagradável (e caro), valeu a experiência para ver um pouco do sistema jurídico americano.

5) O retorno ao Brasil

Escrevo este texto algumas semanas antes de voltar ao Brasil, sendo que as aulas aqui já se encerraram (acabam na metade de maio, e agora há as longas férias de verão), a maioria dos alunos e dos outros professores visitantes já foram embora, mas estou ainda encerrando as pesquisas.

O ânimo para voltar ao Brasil é grande. O objetivo é levar coisas boas daqui para a sala de aula no Brasil[8], seja na graduação, especialização, mestrado ou doutorado. Se a oportunidade que tive foi muito boa, quero dividir isso ao retornar ao país.

No mais, como saldo das pesquisas que fiz aqui:

– traduzi um artigo do inglês para o português do Prof. Clermont, a respeito da coisa julgada nos EUA, a ser oportunamente publicado;
– estou concluindo a elaboração de um artigo comparando a coisa julgada no Brasil e nos EUA;
– estou escrevendo um livro a respeito da coisa julgada no Brasil à luz do NCPC, inclusive analisando a influência (ou não) do direito americano;
– há o projeto de escrever um livro, em português e em coautoria, a respeito do processo civil americano, para o leitor brasileiro conhecer mais sobre esse tema.

Mas o que de principal quero deixar aqui é o estímulo para que você, que tem o interesse em estudar fora, insista nesse objetivo. Seja durante a graduação, mestrado, doutorado, ou mesmo como pós-doc: tudo depende da vontade e oportunidade. Sem dúvidas, vale a pena!

Veja aqui os livros do autor Luiz Dellore!

————————–
1 O primeiro texto da série foi este.

2 Infelizmente a “titulação” de pós-doutor tem sido frequentemente utilizada no Brasil. Escrevi texto específico sobre isso, em conjunto com outros professores.

3 Tratei disso em textos no Jota acerca do NCPC, especialmente no seguinte: https://blog.grupogen.com.br/juridico/2018/04/16/coisa-julgada-no-ncpc-limites-objetivos/

4 Para saber mais, vale a leitura do texto do Prof Jordão Violin.

5 Sigla aqui utilizada para a Supreme Court of the United States.

6 Por exemplo, neste evento em São Paulo: https://www.mackenzie.br/noticias/artigo/n/a/i/exchanging-hemispheres-2019/

7 A respeito, vale a leitura do texto do Prof Rui Costa a respeito da visão de um estrangeiro que estuda no Brasil.

8 Nesse sentido, divido a experiencia da Profa Flávia do Canto Pereira.


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