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Fiscalização dos gastos públicos em tempos de pandemia
Marcus Abraham
21/07/2020
Vivemos tempos difíceis, em que vultosos gastos públicos precisam ser realizados com rapidez, porém com eficiência e efetividade, para permitir que cheguem ao cidadão todas as medidas, bens e serviços suficientes e necessários ao enfrentamento da pandemia da Covid-19.
Não obstante a emergência das circunstâncias – que a própria legislação do Direito Financeiro reconhece como situação extraordinária de exceção à regra, sobretudo o art. 65 da LRF –, não há dispensa da imprescindível necessidade de transparência, fiscalização e controle das despesas que são realizadas neste período.
Os órgãos de fiscalização já se manifestaram no sentido de que adotar requisitos rígidos e complexos neste período de crise pode prejudicar a população. Todavia, apesar da “flexibilização de controles”, não se pode abandonar a verificação de abuso nos preços, fraudes e corrupção.
A Controladoria-Geral da União (CGU) vem adotando política de monitoramento com o mínimo de interferência, a fim de não gerar entraves para o atendimento humanitário. Por sua vez, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, logo no início da crise, um plano de acompanhamento especial.
A propósito, a Emenda Constitucional nº 106/2020 foi categórica em relação à transparência fiscal e à prestação de contas, ao adotar o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações simplificadas para atender às necessidades decorrentes da pandemia, destacando, no final do seu artigo 2º, que não poderá haver prejuízo da tutela dos órgãos de controle.
Ademais, a EC 106/2020 estabeleceu, no seu artigo 5º, que as autorizações de despesas deverão “constar de programações orçamentárias específicas ou contar com marcadores que as identifiquem” e “ser separadamente avaliadas na prestação de contas do presidente da República e evidenciadas, até 30 (trinta) dias após o encerramento de cada bimestre, no relatório a que se refere o § 3º do art. 165 da Constituição Federal” (Relatório Resumido de Execução Orçamentária).
Na mesma linha, a Lei Complementar nº 173/2020, que estabeleceu o “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)” e alterou os artigos 21 e 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, também enfatizou em seu texto a necessidade de transparência, fiscalização e controle. Neste sentido, o inciso II do § 1º do art. 3º ressalvou que as exceções criadas na lei não eximem
“Seus destinatários, ainda que após o término do período de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, da observância das obrigações de transparência, controle e fiscalização referentes ao referido período, cujo atendimento será objeto de futura verificação pelos órgãos de fiscalização e controle respectivos, na forma por eles estabelecida”.
Igualmente, a LC nº 173/2020, ao alterar o texto do artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, também destacou que a suspensão temporária, durante a calamidade pública, dos limites e vedações impostos pela LRF “não afasta as disposições relativas a transparência, controle e fiscalização” (inciso II, § 2º, do art. 65).
Assim sendo, as mais importantes alterações normativas editadas no período da pandemia da Covid-19 deixaram claro que não pode haver obscuridade nos gastos emergenciais e os órgãos de fiscalização e controle deverão atuar preventivamente e posteriormente em caso de malversação de recursos públicos.
Apesar de todos os destaques desses textos legais, infelizmente os fatos nos mostram que a realidade é outra e que as normas não vêm sendo cumpridas.
Segundo identificou o Tribunal de Contas da União (TCU) em relatório disponibilizado no final de junho passado, empresários, servidores públicos e até mesmo pessoas já falecidas estavam na lista do auxílio emergencial de 3 parcelas de R$ 600,00 (benefício posteriormente ampliado para mais algumas parcelas, elevando o gasto em mais R$ 51 bilhões), concedido pelo Governo Federal para trabalhadores de baixa renda e informais, conforme estabelecido na MP nº 936/2020, que instituiu o “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”. Ao todo, serão pagos R$ 200 bilhões para mais de 50 milhões de brasileiros.
Aquele tribunal de contas encontrou cerca de 620 mil pessoas recebendo pagamentos indevidamente, sem fazerem jus ao benefício por não se enquadrarem nos requisitos legais, já que só poderiam receber aqueles que têm renda familiar de até R$ 3.125,00 ou individual de R$ 522,50.
Encontram-se na lista de beneficiários irregulares mais de 235 mil empresários, 134 mil servidores públicos ou pensionistas, mais de 17 mil pessoas mortas e, até mesmo, 136 políticos com bens superiores a 1 milhão de reais (dados do TSE sobre candidatos nas eleições de 2016).
Antes do citado relatório, o próprio TCU, através de seu ministro Bruno Dantas, relator do processo que acompanha a implementação do programa, divulgou a estarrecedora notícia de que “milhões de filhos da classe média estariam recebendo o auxílio emergencial indevidamente” por força de uma falha no cruzamento de dados na declaração do Imposto de Renda de pessoas que possuem dependentes.
Em liminar concedida em maio (confirmada pelo Plenário), o referido ministro determinou o ressarcimento aos cofres públicos dos valores pagos indevidamente para mais de 70 mil militares da ativa, da reserva e pensionistas, dependentes e anistiados, que receberam a primeira parcela do auxílio.
A Controladoria-Geral da União (CGU) já mapeou mais de 300 mil servidores dos três níveis federativos (7 mil da União, 17 mil militares e 292 mil estaduais e municipais) que receberam indevidamente o auxílio, em montante superior a 200 milhões de reais.
Por outro lado, um erro no sistema da Dataprev prejudicou quase 100 mil trabalhadores – estes, sim, devidamente enquadrados no programa – no recebimento da segunda parcela do benefício emergencial, provocando redução no valor do pagamento.
Por ironia ou não, o Gabinete de Responsabilidade do Governo norte-americano noticiou que – também por uma falha – os Estados Unidos pagaram mais de 1 milhão de bolsas de auxílio emergencial da Covid-19, no valor de 1,4 bilhão de dólares, para pessoas mortas.
A tradução desses fatos indica que, por falha nos controles, quem não deveria receber, recebeu; e quem deveria, não recebeu.
Mas esses problemas nos pagamentos do auxílio financeiro não são os únicos que têm sido identificados como irregularidades, demonstrando a necessidade de maior fiscalização e controle nos gastos durante a pandemia.
O Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro identificou prováveis indícios de superfaturamento em compras durante a pandemia, num valor de R$ 157 milhões a mais por remédios e equipamentos de proteção para o combate à Covid-19.
A título ilustrativo, noticiou-se que o preço de máscaras de proteção antes da pandemia era de R$ 0,10 a unidade, mas foram comercializadas por diferentes fornecedores por R$ 2,50 e R$ 4,80 cada. Já as máscaras profissionais “N95” eram vendidas por R$ 2,40 a unidade antes da pandemia, mas estavam sendo cotadas por exorbitantes R$ 59,90 cada.
Os abusos nos preços também atingiram remédios. Uma das empresas, cujos contratos foram fiscalizados, propôs a venda de comprimidos de “Propranolol” (para hipertensão) por R$ 0,22 cada um, sendo que antes o preço era de apenas um centavo.
Os possíveis desvios aparentemente chegaram também às Organizações Sociais (OS) responsáveis pela gestão de unidades hospitalares do Estado do Rio de Janeiro, fato relatado na operação deflagrada pelo Ministério Público do RJ, intitulada “Operação Pagão”, que investiga malversação de mais de R$ 9 milhões. Em relação aos respiradores não é diferente, havendo investigação do MP-RJ de possível sobrepreço que pode chegar a R$ 183 milhões.
Já o Ministério Público do Tribunal de Contas da União investiga provável superfaturamento na compra sem licitação de insumos para a produção de medicamentos à base de cloroquina.
É importante lembrar que, apenas em abril deste ano, os gastos com o enfrentamento da pandemia somaram quase R$ 60 bilhões, gerando um déficit no mês de R$ 93 bilhões, juntamente com uma queda nas receitas federais de 35%, havendo uma projeção de déficit para o corrente ano de 2020 em torno de R$ 700 bilhões.
Por sua vez, a dívida pública brasileira poderá atingir 93% do PIB, muito acima dos atuais 75% e também acima da média dos países emergentes que gira em torno de 50% a 60%.
É muito dinheiro para não ser devidamente aplicado.
Não podemos nos esquecer de que, após a crise da Covid-19 – que exigiu gastos extraordinários totalmente fora de qualquer previsão –, devemos retomar as discussões sobre a implementação de modelos que imponham maior disciplina fiscal para a União, estados e municípios, assim como voltar à pauta legislativa as reformas estruturais, sobretudo a tributária.
Será imperioso retomar o ciclo virtuoso que vínhamos nos esforçando para levar a cabo nos últimos anos, de controle responsável dos gastos e melhor gestão da arrecadação tributária. Pelo bem das contas públicas, mas, sobretudo, das futuras gerações, que acabarão por arcar amanhã com as despesas de hoje.
Crédito da imagem: Leopoldo Silva/Agência Senado
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