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DIREITO E ARTE
Do têxtil ao texto: os 20 anos do Direito da Moda
Marcílio Toscano Franca Filho
14/07/2020
No ano de 2005, num espaço de poucos meses, a Folha de São Paulo publicou duas notícias intrigantes para o mundo do direito e do vestuário. A primeira delas, de três de março, dava conta de que Zé Louquinho, então prefeito de Aparecida (SP), onde se localiza o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, baixara um decreto obrigando os padres a trajar batinas sempre que se locomovessem pelas ruas da cidade. O gestor justificou o ato normativo dizendo que o uso da batina facilitaria a identificação dos padres pelos romeiros que visitavam a basílica local. A medida causou polêmica.
Em 29 de junho do mesmo ano, o jornal anunciou que outro decreto municipal, dessa vez do prefeito de São João da Boa Vista (SP), vetara dentes pintados, roupas remendadas, chapéus de palha velhos e pintura exagerada de sobrancelhas, barbas, bigodes e costeletas nas tradicionais festas juninas do interior, sob o pretexto de evitar preconceito e discriminação contra matutos, jecas ou caipiras. Mais uma vez, grande polêmica…
Esses dois casos, por mais singulares que pareçam, encontram precedentes na história jurídica nacional. Proibição de certa forma semelhante aportou nas praias brasileiras em 11 de agosto (dia do jurista!) de 1961, quando o presidente Jânio Quadros publicou o Decreto 51.182, determinando que “nos concursos de beleza, seleções de representantes femininas e semelhantes, as competidoras e participantes não poderão apresentar-se ou desfilar em trajes de banho sendo tolerado o uso de saiote”. Uma interpretação extensiva do decoroso decreto baniu os biquínis em praias nacionais, à semelhança do que já vinha sendo feito em outras praias europeias, em verões anteriores – isso tudo apesar de antiquíssimos mosaicos romanos de séc. IV, encontrados na Villa Romana del Casale, na Sicília, já terem imortalizado figuras femininas naquele tipo de traje.
Ao longo da história, em muitos lugares, foram inúmeros os episódios em que o direito pretendeu definir o que trajamos, como nos devemos vestir, o que é proibido ou exigido ou mesmo quando podemos nos despir. A criminalização da nudez, a compulsoriedade de certas peças do vestuário, a vedação de outras tantas e muitos outros exemplos de controle e vigilância sobre a roupa foram constantes em diversas jurisdições ao longo do tempo – desde as Leis Suntuárias (Roma Antiga, séc. III a.C.), passando pela Pragmática de 1623 de Felipe IV (Espanha), até chegar à estrela amarela no peito dos judeus da Alemanha nazista, ao uso de tornozeleiras eletrônicas ou EPI’s e às normas sobre vestimenta militar, prisional, eclesiástica, acadêmica e judiciária.
Uma curiosidade: O Decreto nº 2.226, de 1º de fevereiro de 1896, definiu os estatutos das Faculdades de Direito da jovem república brasileira. Os arts. 103 e 105 daquele diploma atribuíam ao Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores a competência para definir o figurino dos bacharéis e dos doutores em direito. Coube ao elegante Epitácio Pessoa, em 18 de maio de 1900, quando à frente daquele Ministério, instituir o modelo das vestes acadêmicas nacionais. O traje dos professores das Faculdades de Direito é este da ilustração reproduzida a seguir, extraída dos arquivos da Imprensa Nacional.
A roupa toda negra era encimada por uma cocarde vermelha, uma espécie de laçarote de seda muito fina e delicada, de tom escarlate. O vermelho, cor do sangue, do fogo, da paixão e do poder, foi um dos primeiros tons dominados pelo ser humano. Presente em pinturas rupestres, foi desde muito cedo uma tonalidade associada às profissões jurídicas. Não demorou para que também surgissem monografias jurídicas dedicadas a um “direito das cores” – como o denominou Hermann Wißmann num livro de 1683 (De jure circa colores).
Nas suas origens, os hábitos acadêmicos, assim como os costumes forenses, os trajes religiosos e as vestes militares, passaram a existir para transmitir uma disciplina, definir uma hierarquia, refletir o respeito a um mister e a dignidade de um ofício. Jacques Boedels, no seu ótimo “Les Habits du Pouvoir”, nos conta que a Revolução Francesa procurou acabar com certa visão elitista do vestuário forense. Em uma petição endereçada ao Comitê de Constituição revolucionário, em 13 de agosto de 1790, um grupo de cidadãos ponderou que “aqueles a quem é confiada a função de julgar não deverão apresentar outras marcas distintivas senão as suas virtudes, o seu talento e a sua integridade”. Revolução semelhante aconteceria no meio universitário francês no maio de 1968.
O eloquente pedido prosperou e os antigos trajes judiciários foram abolidos pelo Decreto da Organização Judicial de 25/8 e 2/9 de 1790. Os arroubos revolucionários duraram uma dúzia de anos. Em 23 de Dezembro de 1802, os trajes foram reinstituídos A tradicional indumentária jurídica, composta por túnicas ou mantos talares, assim como chapéus e perucas em certas jurisdições, seriam agora uma indicação positiva de impessoalidade do julgador e equidistância entre as partes. O único rosto distinguível deveria ser o rosto do Estado.
Conta-se mesmo que, nessa época conturbada da década de 1790, o Procurador-Geral de Genebra andava pelas ruas da cidade com um enorme medalhão de metal dourado, de cerca de 20cm de diâmetro, ornado com um olho em alto relevo, para lembrar aos seus concidadãos que, como membro do Ministério Público, ele era “o olho da lei”, o olho que nunca dorme e tudo vê.
Todas essas normas sobre o controle do vestir compõem o chamado “Clothing Law”, um fragmento longevo e precursor do que se convencionou chamar depois de “Fashion Law” que, com a expansão da indústria da moda, passou a abranger também uma multitude de outros temas jurídicos tão amplos como propriedade intelectual, relações de consumo, relações de trabalho, concorrência, tributação e incentivos fiscais, direitos humanos, meio ambiente, comércio internacional, propaganda e marketing, tecnologia, marcas, licenças administrativas, criminalidade etc.
Vestuário e normas jurídicas são dois indicadores próprios de humanidade. Nenhum outro ser vivo se veste ou produz juridicidade. Contudo, a primeira sistematização dessa interseção entre “law & fashion” ocorreu apenas há vinte anos, quando Jeanne Belhumeur publicou a sua tese doutorado “Le Droit International de la Mode”, defendida perante a Universidade de Genebra, Suíça.
No ano em que são comemoradas essas primeiras duas décadas do “Fashion Law” no mundo, a advogada potiguar Amanda Oliveira da Câmara Moreira dá a público um importante livro resultante de sua dissertação de mestrado, cuja banca avaliadora tive a chance de integrar. O meritório trabalho, intitulado “Fashion Law: proteção de propriedade intelectual na perspectiva do Direito Internacional” (editora Brazil Publishing), defendido com competência perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, casa do grande Câmara Cascudo, enfrenta temas relevantes e atuais de maneira didática, criativa, agradável e abrangente, num largo percurso que exibe a trajetória da moda indo de objeto de consumo a objeto de desejo.
Já há, no país, uma ampla literatura sobre o direito da moda, publicada por bons autores e respeitadas casas editoriais. O Rio Grande do Norte, com a sua tradição das “facções de costura”, das rendeiras, das blogueiras e da indústria vestuário, oferece também a sua contribuição.
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