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MARIEKE VERVOORT

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Henderson Fürst

Henderson Fürst

12/11/2019

Em outubro de 2019, a medalhista paraolímpica belga Marieke Vervoort voltou a ser notícia na imprensa internacional. Dessa vez, não por seus feitos e sua velocidade nas pistas de corrida, que lhe renderam diversos prêmios, mas porque chegara a hora de vencer a dor. Vervoort tinha uma doença muscular degenerativa incurável que lhe causava dores constantes, convulsões, paralisia nas pernas e a deixava quase incapaz de dormir, o que a fez decidir pela eutanásia como forma de superar sua dor.

Assim como ela, sem que o lamento seja ouvido pela opinião pública, inúmeros pacientes conduzem suas vidas sofrendo da dor crônica – uma condição multifatorial e com difícil compreensão, definida pela International Association for the Study of Pain como uma “experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão real ou descrita em tais termos”[1]. Em sua modalidade aguda, a dor é um mecanismo de alerta do corpo quanto a lesões e outros traumas. Todavia, na modalidade crônica, a dor não é mais um mecanismo de alerta ou sobrevivência, que alivia depois de intervenção no agente causador da lesão ou trauma. Ela permanece por mais de seis meses, e não necessariamente as terapêuticas de tratamento da dor são suficientes para amenizar o sofrimento que causam, além de causar absenteísmo, incapacidade temporária ou permanente, morbidade e elevados custos ao sistema de saúde, tornando-se, também, um problema de saúde pública[2].

No mundo, estudos estimam que a quantidade de pessoas com dores crônicas seja em torno de 10,1 a 55,5% das comunidades, com uma média de 35,5%[3]. No Brasil, alguns dos poucos estudos que existem acerca da epidemiologia da dor confirmam que a média brasileira de dor crônica também esteja próxima à média das pesquisas internacionais[4], embora estudos regionalizados apontem para médias maiores, tais como: 36,6%[5], 41,4%[6], 51,4%[7], 59,7%[8], e 61,4%[9].

É essa situação que nos faz discutir a bioética da dor e a possibilidade de um direito fundamental a não sentir dor. Seria a dor crônica uma variação da condição humana que, embora difícil, não é patológica, ou seria uma experiência que deva ser combatida, uma condição indesejável que necessite ser “curada”? Essa resposta é fundamental para determinar a pergunta seguinte: existe um direito fundamental a não sentir dor?[10]

A relevância dessa pergunta se encontra no fato de que a formulação das respostas possíveis criará caminhos para a modulação da permissão ou negação de manifestação da autonomia privada de indivíduos em situações bioéticas diversas.

De um lado, alinham-se aqueles que entendem que a experiência da dor é, tal como a morte, inerente ao fato de se estar vivo[11], e que por conta de uma cultura hedonista e marcada pelos avanços biotecnológicos da analgesia e anestesia não está mais habituada a lidar com a situação de dor[12], de modo que não existiria um direito fundamental a não sentir dor. Essa visão fundamenta posições contrárias à eutanásia, a restrições aos cuidados paliativos e a diversas outras condutas, tal como a autorização de produção e utilização de drogas ilícitas para o alívio da dor[13], pois a vida humana seria inerentemente sacra, e vivê-la, um sacerdócio. De outro lado, considerando que a dor é uma condição humana subjetiva, que não se consegue medir a intensidade e o limite de tolerância de cada ser vivo que a experimenta – o que torna todo ser tão vulnerável que talvez seja o momento em que se conhece verdadeiramente a pessoa[14] – e pautando-se pela empatia e alteridade, se encontrará quem entenderá que não sentir dor é um direito fundamental, viabilizando a autorização do uso de substâncias ilícitas[15], a disponibilidade plena de cuidados paliativos e, a depender da comunidade, até mesmo a eutanásia.

A possibilidade de existir um direito fundamental a não sentir dor no Brasil decorre do direito fundamental à saúde (arts. 6.º e 196 da CF) e, embora acerca disso muito já se tenha dito (e mesmo com o melhor poder de síntese não daria conta de se estruturar aqui todo o debate), é válido lembrar que ao conceito de saúde podem ser atribuídos diversos conteúdos, e disso decorrerá (ou não) o direito fundamental a não sentir dor.

Em 1947, a Organização Mundial de Saúde elaborou o conceito de saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”[16]. Assim, se há um direito fundamental à saúde, compreendida como um completo bem-estar físico mental e social, certamente há um direito fundamental a não sentir dor. Ocorre que tal conceito foi apontado por muitos como utópico e inalcançável[17], outros ainda apontam que é, no momento, “irreal, ultrapassada e unilateral”[18]. Se tomarmos como corretas tais críticas – seja por ser utópico, seja por ser irreal – por que não haver o direito fundamental à tentativa de não sentir dor? Com isso, se não puder alegar-se um direito fundamental a não sentir dor, ao menos não se pode negar o direito fundamental de buscar uma forma de não a sentir – coadunando com os sentidos das expressões “efetivação”, “redução do risco”, “promoção”, “proteção” e “recuperação” contidas tanto na Constituição Federal, Constituições Estaduais e Leis Orgânicas municipais brasileiras.

Há dois pontos que precisamos analisar ainda quanto ao conteúdo do direito fundamental a não sentir dor.

O primeiro deles é que a dor não é apenas física, mas também aquela emocional – e, nesse aspecto, importa lembrar que a base conceitual do dano moral esteve intrinsecamente ligada ao fato de que o ato ilícito tenha causado sofrimento, tristeza, vergonha ou algum sentimento indesejável na vítima[19], sendo apenas posteriormente que se passou a reconhecer que não necessariamente o dano moral exigiria alguma dor da vítima[20], assim, se tal condição de desconforto emocional causada por outrem é passível de reparação financeira, considerada como um ato ilícito diante da interferência que causa à vida cotidiana, o mesmo desconforto precisa ser considerado um fato jurídico, não causado por ação de outrem, mas juridicamente relevante para ser concedido ao paciente o direito a não sentir dor.

Acerca da dor psicológica, também precisamos considerar duas situações. A primeira diz respeito ao direito de o paciente recusar tratamentos, por qualquer motivação, pois consideram que a dor física não se compara à dor psíquica sentida após o procedimento. Seja em pacientes oncológicos que recusam se submeter à quimioterapia ou à radioterapia, seja em pacientes que professem a doutrina das testemunhas de Jeová, seja em qualquer outra circunstância envolvendo pacientes maiores e aptos a manifestarem sua autonomia, não há sentido constitucional em ignorar que também possuem um direito a não sentir dor, ainda que esta seja psíquica que seja uma opção racional entre não sentir uma dor psíquica em face de uma dor física. Nesse sentido é a ADPF 618, proposta pela Procuradoria-Geral da República, pedindo que as regras do CFM não sejam interpretadas no sentido de que médicos devem realizar transfusão de sangue mesmo contra a vontade de pacientes maiores e capazes. A carga global da dor, portanto, é significativa, e o seu manejo requer uma abordagem ampla e multidisciplinar que aborde suas dimensões física, psicossocial e espiritual.[21] É importante que também se dê a mesma leitura constitucional ao art. 15 do Código Civil, permitindo ao paciente total gerência sobre sua dor, ainda que frustre a técnica desenvolvida até o momento.

A segunda diz respeito aos limites que se pode permitir à dor psicológica. Nos países em que a eutanásia é permitida, há polêmica sobre a possibilidade de realizá-la por sofrimento psicológico. Um dos recentes casos que repercutiram nesse sentido é o de Aurelia Brouwers que, em 26 de janeiro de 2018, devidamente amparada por uma clínica holandesa de eutanásia e com autorização estatal, realizou o procedimento, ainda que não estivesse com alguma doença terminal. Em seus relatos, encontram-se frases como “eu estou presa no meu próprio corpo, na minha própria cabeça e só quero ser livre” e “eu nunca fui feliz – não conheço o conceito de felicidade.”[22] Apesar de ser uma pequena parcela dos casos, aumentou de 0,6%, em 2010, para 1,2%,[23] em 2017, e, na metade deles, um transtorno de personalidade estava envolvido, embora quase todos apresentassem quadro de depressão. Para serem elegíveis à eutanásia, os pacientes precisam preencher alguns critérios. O principal deles é que o sofrimento deve ser irremediável, no entanto, um estudo[24] demonstra ser inconclusivo a eficiência das tentativas de intervenção clínica no caso de eutanásia por sofrimento psíquico.

Ainda quanto ao aspecto do conteúdo do direito fundamental a não sentir dor, ele também contempla o direito de prevenir a dor. Ninguém se imagina fazendo uma cirurgia sem anestésico, e o mesmo deve ser para outras situações em que se saiba que haverá dor. Diversas situações bioéticas têm impacto com essa compreensão, tal como: o fomento de uma cultura de respeito de profissionais de saúde e do direito às diretrizes antecipadas de vontade, ou, ainda, a possibilidade de realizar o teste pré-sintomático para o gene da doença de Huntington ou valer-se de técnicas da terapia gênica para preveni-la, inclusive como medida de saúde pública. Embora exemplificativas, essas duas situações são recorrentes às mais de 6 mil doenças que se estima existirem no mundo – que, em geral, são crônicas, progressivas, degenerativas e podem levar à morte – e demandam especial atenção, mormente no sentido de permitir aos pacientes a eficácia do direito a não sentir dor.

Convém ressaltar que o direito fundamental a não sentir dor alcançou dimensão global[25] desde a década de 1990 estabelecendo-se no plano internacional: as Nações Unidas e os órgãos regionais de direitos humanos incorporaram a noção conceitual, passando a ser objeto de seus relatórios, inclusive quanto à obrigação de o Estado gerir a dor por meio do seu sistema de saúde, considerando este acesso um direito humano.[26]

Por fim, é necessário lembrar que “só doer não é dor”[27]. Quando falamos de dor, a causa maior é o sofrimento humano e, acerca disso, ainda há muito que precisamos compreender, especialmente juridicamente. Mais do que isso, não importa o quão novas sejam nossas descobertas jurídicas nesse campo (aliás, em toda a bioética também), sempre estaremos desatualizados com o desenvolvimento científico e com a complexidade humana – e só a empatia e atenção às vulnerabilidades nos socorrerá!
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[1] WITTE, W.; STEIN, C. History, Definitions and Contemporary Viewpoins. In: KOPF, A.; PATEL, N. B. (ed.). Guide to pain Management in Low-Resource Settings. Seattle: IASP, 2010, p. 3-8.

[2] PICAVET, H. S.; SCHOUTEN, J. S. Musculoskeletal pain in the Netherlands, prevalence’s, consequences and risk groups, the DMC(3)-study. Pain. International Association for the Study of Pain, 2003, n. 102, p. 167-78.

[3] HARSTALL, C.; OSPINA M. How prevalent is chronic pain? Pain: Clinical Updates. 2003, n. 11, v. 2, p. 1-4.

[4] CIPRIANO, A.; ALMEIDA, D. B., VALL J. Perfil do paciente com dor crônica atendido em um ambulatório de dor de uma grande cidade do sul do Brasil. Revista da Dor. 2011, v. 12, n. 4, p. 297-300.

[5] ALMEIDA, J.G.; KURITA, G.P.; BRAGA, P.E., PIMENTA, C. A. Chronic pain in schizophrenic patients: prevalence and characteristics. Caderno de Saúde Pública. 2010, v. 26, n. 3, p. 591-602.

[6] SÁ K.; BAPTISTA, A.F.; MATOS, M.A.; LESSA I. Prevalence of chronic pain and associated factors in the population of Salvador, Bahia. Revista de Saúde Pública. 2009, v. 43, n. 4, p. 622-30.

[7] DELLAROZA, M.S.; PIMENTA, C.A.; MATSUO T. Prevalence and characterization of chronic pain among the elderly living in the community. Caderno de Saúde Pública. 2007, v. 23, n. 5, p. 1.151-60.

[8] SILVA, D.S.; FERRAZ, C.G.; SOUZA, L.A.; CRUZ, L.V.; STIVAL, M.M.; PEREIRA, L. V. Prevalência de dor crônica em estudantes universitários de enfermagem. Texto Contexto Enfermagem. 2011, v. 20, n. 3, p. 519-25.

[9] KRELLING, M.C.; DA CRUZ, D.A.; PIMENTA, C. A. Prevalence of chronic pain in adult workers. Revista Brasileira de Enfermagem. 2006, v. 59, n. 4, p. 509-13.

[10] Recomendo fortemente a leitura da tese de doutoramento de Marcelo Sarsur pela UFMG, que primeiramente formulou essa pergunta (Do direito a não sentir dor: fundamentos bioéticos e jurídicos do alívio da dor como direito fundamental. Universidade Federal de Minas Gerais. Tese – Doutorado em Direito, 2014). Cf. também LISBOA, L. V.; LISBOA, J. A. A.; SA, K. N. O alívio da dor como forma de legitimação dos direitos humanos. Revista da Dor, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 57-60,  mar./2016.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-00132016000100057&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 31  out.  2019.

[11] ROSAS JIMÉNEZ, C. A. La comprensión del dolor en la reflexión bioética: uma aproximación preliminar. Persona y Bioética. Revista Iberoamericana de personalismo comunitário. n. 22, abr./2013, p. 83-86.

[12] LUCERO, I. El dolor y el sufrimiento humano. In: GARCÍA, José Juan. Enciclopedia de Bioética. Disponível em: <http://enciclopediadebioetica.com/index.php/todas-las-voces/168-el-dolor-y-el-sufrimiento-humano>. Acesso em 26 out. 2019.

[13] Cf. voto do Ministro Cezar Peluso na ADPF 54, para quem o sofrimento é inerente à condição humana e, por isso, só pode ser combatido por meios lícitos.

[14] LUCERO, I. op. cit.

[15] SARSUR, M. Do direito a não sentir dor: fundamentos bioéticos e jurídicos do alívio da dor como direito fundamental. Universidade Federal de Minas Gerais. Tese – Doutorado em Direito, 2014, p. 89.

[16] Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde. Documentos básicos, suplemento da 45ª edição, outubro de 2006. Disponível em espanhol em: <http://www.who.int/governance/eb/who_constitution_sp.pdf>. Acesso em: 26 out. 2019.

[17] BATISTELLA, Carlos. Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. Escola Politécnica de Saúde e Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/pdtsp/includes/header_pdf.php?id=505&ext=.pdf&titulo=Cap>. Acesso em 29 out. 2019.

[18] SEGRE, M.; FERRAZ, F. C. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública. São Paulo,  v. 31, n. 5, p. 538-542, out./1997.  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101997000600016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 29 out. 2019.

[19] BITTAR, C. A. Os direitos da personalidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

[20] STJ. 4ª Turma. REsp 1.245.550-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17.03.2015 (Informativo 559).

[21] SCASCIGHINI, L. et al. Multidisciplinary treatment for chronic pain: a systematic review of interventions and outcomes. Rheumatology, v. 47, n. 5, p. 670-678, 2008.

[22] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-45144669>. Acesso em: 29 out. 2019.

[23] NICOLINI, M. E.; PETEET, J.; DONOVAN, G. K.; KIM, S. Euthanasia and assisted suicide of persons with psychiatric disorders: the challenge of personality disorders. Psychological Medicine. [Online] Cambridge University Press, 2019, p. 1-8.

[24] Idem.

[25] Por exemplo, em 11 de outubro de 2004, a International Association for the Study of Pain (IASP), the World Health Organization (WHO), and the European Federationof IASP Chapters (EFIC) realizaram a campanha do “Dia Global contra a Dor” para promover o alívio da dor como um direito humano. A Declaração de Montreal reconhece o direito de todas as pessoas a terem acesso ao tratamento da dor sem discriminação; ao reconhecimento de sua dor e como ela pode ser avaliada e gerenciada;  e de ter acesso à avaliação e tratamento adequado por profissionais de saúde apropriados.

[26] BRENNAN, F.; CARR, D.; COUSINS, M. Access to pain management – still very much a human right. Pain Medicine, v. 17, n. 10, p. 1.785-89, 2016.

[27] LEMINSKI, P. Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 59.


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