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PROCESSO CIVIL
Acesso à Justiça, interesse processual e valores módicos
Fernanda Tartuce
27/09/2019
Por Fernanda Tartuce e Susana Henriques da Costa
Volta e meia lemos notícias sobre demandas judiciais cíveis de valores módicos cujos destinos são a extinção dos processos sem resolução do mérito por suposta falta de interesse de agir. Tais ocorrências são adequadas à luz da garantia constitucional de acesso à justiça e das regras processuais vigentes no Brasil?
A resposta é negativa.
Sob o prisma constitucional, entendimentos restritivos como esse ferem de morte a garantia de acesso à justiça.
Como bem ensina Kazuo Watanabe, deve-se pensar na ordem jurídica e nas respectivas instituições pela perspectiva do consumidor, o destinatário das normas (povo); infelizmente, contudo, prevalece a perspectiva do Estado, propugnando-se uma ética focada em eficiência técnica e não em equidade ou bem-estar da coletividade[1].
Antes de decidir levar um conflito ao exame do Poder Judiciário, a parte autora participou de uma interação controvertida onde passou por pelo menos alguma(s) dessas etapas: choque pela resposta desfavorável à pretensa posição de vantagem, negação, indignação, reclamação, discussão, tentativa (ainda que duvidosa) de negociação, orientação jurídica, investimento de tempo e outros recursos para a promoção da demanda… soa mesmo apropriado desvalorizar tudo o que uma pessoa passou para, à luz de um simples elemento (valor pretendido), declarar que ela é frívola e por isso não merece acesso à justiça?
Se é para pensar em condutas adequadas, que tal refletir sobre a postura da outra parte, que pode ter violado o sistema jurídico – não raras vezes reiteradamente? Por que o peso da crítica recai sobre a vítima lesada e não sobre o causador? Ao ponto, merecem destaque as clássicas lições de Rudolf Von Ihering:
“Com a violação do direito, a parte prejudicada fica diante da seguinte situação: deverá defendê-lo, resistir ao agressor ou, em outras palavras, deverá lutar? Ou deverá relegar o direito, para fugir da luta?
A resposta a essa pergunta só a ele cabe. A decisão, seja qual for, envolve sempre sacrifícios. Numa hipótese, o direito é sacrificado em prol da paz e, em outra, a paz é sacrificada em prol do direito. Nesta altura, a indagação reveste-se de novo aspecto. Diante do caso concreto e da pessoa interessada, qual será o sacrifício mais suportável? Poderá o rico, em juízo, desistir da cobrança para garantir a paz, deixando de cobrar a quantia devida, se a considerar pequena? Para o pobre, entretanto, a mesma quantia poderá ser relativamente alta.
Reduzir-se-ia, assim, a pura operação matemática o problema da luta pelo direito, na qual se colocariam, em confronto, as vantagens e desvantagens de cada hipótese, para chegar-se a um resultado. Todos sabem que, na vida real, nada acontece desse modo. A experiência diária, nos litígios, mostra processo em que o valor do objeto em discussão é bastante desproporcional à quantidade de energia despendida, além das emoções e custas[2]”.
Do ponto de vista técnico-processual há, ainda, um erro de premissa. Interesse de agir é a utilidade da tutela jurisdicional requerida, a aptidão do provimento jurisdicional para melhorar a situação da vida do autor. Essa utilidade teoricamente se bifurca nas categorias (I) interesse-necessidade e (II) interesse-adequação.
Para que haja interesse, é preciso que a tutela jurisdicional seja necessária para o autor, ou seja, que ele não possa conseguir o bem da vida sem a tutela requisitada (interesse-necessidade). A ideia de necessidade está ligada à exigibilidade da prestação do réu em face do autor, tendo em vista o inadimplemento do primeiro ou mesmo a necessidade da jurisdição para a concretização do comando normativo, como ocorre nas ações de anulação de casamento.
O interesse-adequação, por sua vez, é à aptidão do provimento jurisdicional pleiteado pela parte para resolver a crise de direito material posta em juízo. O ordenamento jurídico oferece ao autor uma série de tutelas jurisdicionais, cada uma delas adequada a resolver problemas de uma determinada situação concreta. Caberá à parte autora a escolha da tutela própria para o seu caso, sob pena de, escolhendo tutela inapta para o fim pleiteado, faltar-lhe interesse de agir.
Em nenhuma das duas categorias mencionadas é possível incluir, como motivo para a extinção do processo, o “valor módico” da causa. As decisões que assim o fazem ampliam o conceito de interesse de agir para além do que foi conceitualmente definido pela doutrina. Ao fazê-lo, estão lançando mão de interpretações ampliativas para fins de restringir o direito de acesso à justiça do autor.
Para além da violação a um direito fundamental constitucionalmente garantido, essas interpretações correm o risco de concretizar a criação pretoriana de um filtro de admissibilidade do julgamento de mérito da demanda fundada em um critério bastante subjetivo. Afinal, a consideração sobre o que é uma demanda de “valor módico” comporta alto grau de subjetivismo por parte dos magistrados.
Em um contexto pautado por um Poder Judiciário defensivo e sobrecarregado por excesso de demandas, essa construção pretoriana pode se difundir e significar uma elitização do acesso à Justiça, atuando na contramão do esforço de democratização dos mecanismos de solução de conflitos sociais perseguidos desde a promulgação da Constituição de 1988. O resultado final provavelmente será a ampliação da desigualdade social, já tão abissal no Brasil.
Veja aqui as obras de Fernanda Tartuce
[1] WATANABE, Kazuo. Acesso à ordem jurídica justa (conceito atualizado de acesso à justiça) – processos coletivos e outros estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2019, p. 4.
[2] Ihering, Rudolf Von. Trad.: José Cretella Jr.; Agnes Cretella. A luta pelo direito. 2ª ed. SP: Ed. RT, 2001, p. 38.
BERGAMASCHI, André Luís; TARTUCE, Fernanda. A solução negociada e a figura jurídica da transação: associação necessária? Disponível em: http://www.fernandatartuce.com.br/a-solucao-negociada-e-a-figura-juridica-da-transacao-associacao-necessaria/ Acesso em: 24 set. 2019.
COSTA, Susana Henriques da. Comentários ao art. 17, do CPC. In: BUENO, Cássio Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, Saraiva, 2017, v.1.
TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 5ª ed. São Paulo, 2019.
WATANABE, Kazuo. Acesso à ordem jurídica justa (conceito atualizado de acesso à justiça) – processos coletivos e outros estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2019.
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- A mediação em conflitos contratuais
- Petição inicial e audiência de mediação ou conciliação
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