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As Principais Alterações no Novo Código de Ética Médica Brasileiro – Parte 2

Henderson Fürst

Henderson Fürst

30/04/2019

Em continuação à nossa breve análise sobre as principais alterações no novo Código de Ética Médica[1], que entrará em vigor no dia 1.º de maio[2] de 2019, retomamos à partir do tópico de relação com pacientes e similares, cujas alterações implicaram em grande debate público, conforme se verá adiante.

A primeira alteração no sensível tópico que trata da relação de pacientes e similares ocorre no art. 32. Uma sutil alteração promove uma grande mudança no paradigma proposto para o exercício da medicina, ao propor que é vedado ao médico “deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e ao seu alcance, em favor do paciente” (grifamos as alterações). Note-se que a alteração enfatiza que o dever do médico não se encontra apenas no diagnóstico e tratamento, mas também na promoção de saúde e sua prevenção. Quando se fala em promoção, refere-se à conscientização, um ato proativo do médico de intervir quando vê uma condição que não condiga com a condição de manutenção da saúde. Já a prevenção estabelece a condição de que o médico não é apenas um agente de combate à patologia, mas também inclui em suas atenções a prevenção ativa de doenças.

Outra alteração se encontra no art. 36[3], em especial no § 2.º. A primeira alteração é uma adequação linguística que, embora possa soar simbólica, está repleta de significado: em vez de se referir ao paciente como “portador de moléstia crônica ou incurável”, fala em “por este ter doença crônica ou incurável”. Nesse sutil detalhe se esconde uma profunda compreensão do que é a doença crônica ou incurável, pois, quando se refere à portar, está-se valendo se uma ação que designa transitoriedade, como se tais doenças fossem transitórias e curáveis, que é uma questão de obstinação terapêutica até que se encontre a cura quando, na verdade, se trata de uma condição cujo conhecimento científico ainda não encontrou respostas, sendo necessário adequar as condições existenciais do ambiente e do paciente para melhor adequação de seu bem estar (físico, psíquico e espiritual).

É disso que decorre a alteração final do § 2.º do art. 36, ao dizer que continuará a assisti-lo e a propiciar-lhe os cuidados necessários, inclusive os paliativos” (grifamos os acréscimos). O que se propõe com tal alteração é demonstrar que os cuidados paliativos não são uma medida extrema, mas sim que é um recurso ordinário e válido, devendo ser utilizados quando necessário, pois os cuidados paliativos são a intervenção médica utilizada em situação de ortotanásia – diferente do equívoco recorrente de compreensão que costuma-se ocorrer entre pesquisadores e aplicadores do Direito.[4] Uma mudança como tal, no Código de Ética Médica, começa a demonstrar a consolidação de uma nova cultura em relação à presença da terminalidade de vida como uma condição que necessita igualmente ser humanizada e acompanhada pelo ato médico, não resistida e postergada pela obstinação terapêutica, mas sim compatibilizada enquanto continuação e parte dos cuidados necessários.

Outra importante alteração se encontra no art. 37, que causou bastante polêmica por tratar do atendimento médico à distância com a seguinte vedação:

Art. 37 Prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa.

§1º O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.

§2º Ao utilizar mídias sociais e instrumentos correlatos, o médico deve respeitar as normas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina.

(grifamos as alterações)

Como se percebe, não se impede o atendimento emergencial de um paciente pelo whatsapp ou outros aplicativos, como sói acontecer, até porque historicamente isso também era feito por uma ligação (quando ainda se usava o telefone para ligar). O que há é uma obrigação clara de confirmar os dados informados pelo paciente, bem como ratificar ou retificar o diagnóstico e prescrições. A vedação que vem ao final do caput, “diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa” não se refere à consultas à distância, mas sim à utilização de canais de comunicação que atinjam difusamente receptores leigos contendo informações para autodiagnostico e consequentes prescrições. É o caso de algum artigo médico em um site que diga: se você tiver estes sintomas, tome tal remédio. O “meio de comunicação de massa”, ao qual se refere essa vedação, são meios de canais que tenha um receptor difuso, não diz respeito aos meios de comunicação que são usados por um grande número de pessoas que tenha receptor definido.

Reiterou-se, no § 1.º, a possibilidade da telemedicina, a ser regulamentada pelo CFM posteriormente. Uma tentativa ocorreu logo após a divulgação do novo Código de Ética Médica, com a Resolução 2.227/2018. Todavia, tamanha foi a repercussão e críticas que os conselheiros efetivos do CFM decidiram revogar a resolução menos de um mês após a sua publicação devido às críticas e ao alto número de contribuições de alterações. Assim, as boas práticas realizadas até o momento, em conformidade com os princípios gerais do Código, permanecem até que nova Resolução venha informando os critérios a se observar.

Também acrescentou-se o parágrafo segundo, que traz como conduta ética a observância às normas específicas sobre comunicação social. É o caso das Resoluções 1.974/2011, 2.126/2016 e 2133/2015, que estabelecem critérios para a relação dos médicos com a imprensa, utilização de redes sociais e participação em eventos, divulgação de assuntos médicos, sensacionalismo, autopromoção e afins.

No que diz respeito à documentação médica, tivemos algumas importantes alterações.

A primeira delas está no art. 87, que acrescentou o § 3.º:

Art. 87 Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente.

§1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.

§2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente.

§3º Cabe ao médico assistente ou a seu substituto elaborar e entregar o sumário de alta ao paciente ou, na sua impossibilidade, ao seu representante legal. (grifamos os acréscimos)

Cria-se, com isso, a obrigação de um relatório contendo resumo das principais informações do quadro do paciente acerca e de sua condição de alta. É um documento distinto do próprio prontuário, que fica guardado pelo médico ou pela instituição que assiste ao paciente. O sumário de alta apresenta não apenas informação compreensível pelo paciente ou seu representante legal, como também registra para futura análise as condições em que se encontrava o paciente quando teve alta. Informações mais detalhadas e técnicas devem ser obtidas no prontuário.

Também alterou-se o sigilo dos documentos médicos, deixando mais claro quais os limites do sigilo. Acreditava-se, vulgarmente, que o sigilo médico seria um direito absoluto, causando estranheza ou dúvidas quando judicialmente solicitava-se informações protegidas pelo sigilo. Para tanto, o art. 89 deixa expresso que é vedado liberar cópias do prontuário sob sua guarda, exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa em juízo por questões de responsabilização jurídica (cível, criminal ou administrativo-ética). É possível também liberar cópias do prontuário quando autorizado por escrito pelo paciente, que poderá estabelecer as condições de liberação (estudos científicos, biógrafos, familiares etc.)

Três importantes alterações ocorrem no âmbito da ética prevista ao ensino e pesquisa médica.

A primeira e a segunda ocorrem no art. 101:

Art. 101 Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da pesquisa.

§1º No caso de o paciente participante de pesquisa ser criança, adolescente, pessoa com transtorno ou doença mental, em situação de diminuição de sua capacidade de discernir, além do consentimento de seu representante legal, é necessário seu assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão.

§2º O acesso aos prontuários será permitido aos médicos, em estudos retrospectivos com questões metodológicas justificáveis e autorizados pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) ou pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

No § 1.º, temos a alteração do termo “menor de idade” por criança, adolescente, pessoa com transtorno ou doença mental, em situação de diminuição de sua capacidade de discernir. Em termos práticos, a diferença se encontra na inclusão de pessoas com transtorno ou doença mental, ou em situação de diminuição de sua capacidade de discernir, vez que criança e adolescente já era previsto pelo Código anterior. No novo Código, pede-se que essas pessoas tenham o consentimento do representante legal, bem como o assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão. Tal medida faz sentido quando estamos falando de menores de idade, todavia, após a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, temos uma significativa alteração no estatuto da capacidade civil, de modo que a curatela (o tal do “representante legal”) passa a ser medida extraordinária. Antes disso, a capacidade legal será exercida em igualdade de condições às demais pessoas (art.  84, caput, da Lei citada), ou por meio do processo de tomada de decisão apoiada (art. 84, § 2.º, da Lei citada). Acreditamos, por isso, que o novo Código poderia também ter avançado com a legislação pátria para melhor se adequar a tais inovações, prevenindo potenciais conflitos ou dúvidas que a prática cotidiana apresentará.

O § 2.º do art. 101, por sua vez, é uma inovação do atual Código que vem em muito boa hora. Uma vez que autorizado pelo sistema CEP/CONEP, a pesquisa científica posterior poderá acessar prontuários médicos anteriores, mesmo sem a autorização prévia do paciente, e especialmente respeitadas as novas diretrizes da nova Lei Geral de Proteção de Dados. Ou seja, preservada a identidade do indivíduo quanto aos seus dados pessoais, pode-se valer de banco de dados de prontuários para fazer levantamento de dados cientificamente relevantes, mormente no âmbito de pesquisas genéticas e outras

A terceira mudança se encontra no art. 106, mantendo substancialmente o entendimento do Código anterior quanto ao uso do placebo em pesquisas científicas. A alteração se encontra na vedação ao uso isolado de placebo na pesquisa médica, quando há método profilático ou terapêutico eficaz. Embora pareça uma pequena mudança, torna-se antiética condutas de abuso de pesquisa científica por médicos que historicamente aconteceram e chocaram a humanidade. Nisso saudamos o avanço do Código, dialogando com a Bioética para prevenir o contexto de abusos científicos que marca o século XX.

Por fim, a última alteração se encontra no art. 117, que diz respeito a publicidade médica:

Art. 117: Deixar de incluir, em anúncios profissionais de qualquer ordem, seu nome, seu número no Conselho Regional de Medicina, com o estado da Federação no qual foi inscrito e Registro de Qualificação de Especialista (RQE) quando anunciar a especialidade.

Parágrafo único. Nos anúncios de estabelecimentos de saúde, devem constar o nome e o número de registro, no Conselho Regional de Medicina, do diretor técnico. (grifamos as inclusões)

Tal alteração visa fortalecer a figura do registro de qualificação de especialista na associação científica responsável por tal, visando coibir a prática de apresentar-se como “especialista” sem o ser devidamente reconhecido pela associação responsável pelo fornecimento do devido título que reconhece a capacidade técnica especializada. Veda-se, assim, a divulgação de atuação especializada sem que tenha o devido registro de especialista, protegendo pacientes e sociedade de pseudo-especialistas.

Por fim, com muitas virtudes, saudamos o novo Código, esperando que seja interpretado à luz da Constituição e com os preceitos da Bioética, para que possa guiar e orientar médicos, pacientes e sociedade em tempos de conhecimento galopante e de relações complexas e líquidas.

Embora alguns tenham entendido que o novo Código entrará em vigor no dia 30 de abril, a interpretação correta é dia 1.º de maio. Isso porque o Código foi publicado no dia 1.º de Novembro de 2018 e, conforme o art. 3.º da Resolução 2.217/2018, entrará em vigor cento e oitenta dias após a publicação. Certo é que, contando 180 dias à partir de 1.º de novembro, teremos 30 de abril. Ocorre que, nos termos do art. 8.º, § 1.º, da Lei Complementar 95/1998: “A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.”
Assim, embora não estejamos diante de uma lei, propriamente dita, mas de uma Resolução que produz efeitos jurídicos perante as partes ao qual incide, deve-se manter a segurança jurídica de todos os interessados e, para tanto, deve-se também considerar o mesmo parâmetro de contagem de prazos de vacância normativa.


[1] Disponível aqui: https://blog.grupogen.com.br/juridico/2018/11/19/principais-alteracoes-novo-codigo-etica-medica-br-pt-1/
[2]Embora alguns tenham entendido que o novo Código entrará em vigor no dia 30 de abril, a interpretação correta é dia 1.º de maio. Isso porque o Código foi publicado no dia 1.º de Novembro de 2018 e, conforme o art. 3.º da Resolução 2.217/2018, entrará em vigor cento e oitenta dias após a publicação. Certo é que, contando 180 dias à partir de 1.º de novembro, teremos 30 de abril. Ocorre que, nos termos do art. 8.º, § 1.º, da Lei Complementar 95/1998: “A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.”
Assim, embora não estejamos diante de uma lei, propriamente dita, mas de uma Resolução que produz efeitos jurídicos perante as partes ao qual incide, deve-se manter a segurança jurídica de todos os interessados e, para tanto, deve-se também considerar o mesmo parâmetro de contagem de prazos de vacância normativa.
[3]Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.
§1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lheo suceder.
§2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares à sua família, o médico não o abandonará o paciente por ser este portador de moléstiater doença crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que parae a propiciar-lhe os cuidados necessários, inclusive os paliativos.
[4] Neste sentido, conferir nossa análise em: FÜRST, Henderson. No confim da vida. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2018, p. 144

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