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Direito de Família e das Sucessões: Desafios Para o Futuro (Segunda Parte)
Flávio Tartuce
27/02/2019
Desde o texto anterior, publicado neste canal, estou analisando os desafios para o futuro do Direito de Família e das Sucessões Brasileiro, tendo como pano de fundo os debates que foram travados quando do VIII Congresso Paulista de Direito de Família e das Sucessões do IBDFAM, realizado entre os dias 8 e 9 de novembro de 2018, na Associação dos Advogados de São Paulo. Agora, abordaremos os debates do segundo dia, relembrando o sistema que foi adotado no evento, de participação e votação do público.
O congresso retomou os seus trabalhos com um primeiro painel, em que se analisou a necessidade ou não de rever a legítima no Brasil, quota atribuída aos herdeiros necessários, notadamente em seu percentual. Participaram dos debates os Professores Marcelo Truzzi Otero, do IBDFAMSP, respondendo “Sim”; e Ana Luiza Nevares, do IBDFAMRJ, respondendo “Não”. A presidência da mesa e os debates couberam à Professora Sandra Bayer, da nossa Diretoria Paulista. Ao final, cerca de 80% dos presentes votaram positivamente, propondo que haja alguma revisão a respeito da legítima no Brasil, enquanto os outros 20% entenderam que não.
O debate demonstrou as grandes dificuldades em repensar esse sistema protetivo sucessório dos herdeiros, atualmente com a atribuição de quota de 50% ou metade do patrimônio do autor da herança, como estabelece o art. 1.789 do Código Civil. A minha posição – ao lado de outros juristas como Giselda Hironaka e José Fernando Simão, conforme pareceres que apresentamos em conjunto quando da elaboração da Reforma Sucessória pelo próprio IBDFAM –, foi no sentido de sua redução para 25%, ampliando-se a liberdade de doar e de testar.
No painel, afloraram outras propostas, como de instituir uma legítima variável, com maior proteção para as pessoas vulneráveis e hipossuficientes, como tem sugerido a Professora Ana Luiza Nevares. Com o devido respeito, entendo que os conceitos destacados são muito variáveis no âmbito jurídico, havendo uma ideia em cada campo do conhecimento do Direito, o que pode trazer grandes dificuldades de enquadramento. Na verdade, a legítima variável tende a acirrar as disputas sucessórias, mostrando-se incompatível com o processo de inventário, que é meramente homologatório.
A legítima continuou a ser abordada no evento, pois o segundo painel da manhã do dia 9 de novembro – talvez o mais intenso e agitado de todo o Congresso –, tratou da seguinte indagação: o companheiro é herdeiro necessário com a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil? O Professor Zeno Veloso, um dos fundadores do IBDFAM e um dos maiores sucessionistas brasileiros, respondeu “Sim”, enquanto o Professor Mario Luiz Delgado respondeu “Não”. A presidência da mesa e a condução dos debates couberam à advogada Ana Paula Copriva, nossa diretora estadual.
Na exposição do primeiro jurista, com toda a sua conhecida e notória retórica, a resposta positiva disparou, chegando aos 90% do público presente. Porém, também foi bem enfático o segundo expositor, principal defensor de uma interpretação restrita do julgamento do STF sobre o tema, e, ao final, houve um empate de 50% para cada uma das posições manifestadas.
Nesse painel, muito se falou sobre o julgamento dos embargos de declaração opostos na ação que analisou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil pela Suprema Corte Brasileira, em repercussão geral e publicada no seu Informativo n. 864, pois, em grande coincidência e sincronismo, a decisão dos embargos de declaração foi publicada e noticiada justamente naquele dia em que debatíamos o assunto. Como é cediço, os embargos foram, na ocasião, rejeitados, sob o argumento processual de não ter sido ventilada a questão na demanda original.
Como aduziu o Ministro Roberto Barroso, no que foi seguido de forma unânime, “a embargante sustenta que o regime sucessório do cônjuge não se restringe ao art. 1.829 do Código Civil, de forma que o acórdão embargado teria se omitido com relação a diversos dispositivos que conformam esse regime jurídico, em particular o art. 1.845 do Código Civil. Requer que se esclareça o alcance da tese de repercussão geral, no sentido de mencionar as regras e dispositivos legais do regime sucessório do cônjuge que devem se aplicar aos companheiros”. Em complemento, ao enfrentar a questão relativa à afirmação de ser o companheiro herdeiro necessário, pontuou que “não há que se falar em omissão do acórdão embargado por ausência de manifestação com relação ao art. 1.845 ou qualquer outro dispositivo do Código Civil, pois o objeto da repercussão geral reconhecida não os abrangeu. Não houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que inexiste omissão a ser sanada”.
A despeito de posições em sentido contrário, a minha interpretação é no sentido de que essa rejeição dos embargos de declaração não resolveu o dilema sobre o enquadramento do companheiro como herdeiro necessário, devendo a doutrina e a jurisprudência – notadamente do Superior Tribunal de Justiça – responder, em interpretação ao decisum anterior do Supremo Tribunal Federal, se o companheiro deve ser incluído ou não no rol do art. 1.845 do Código Civil. Em suma, o intenso debate que foi travado no nosso Congresso Paulista do IBDFAM segue a pleno vapor.
No primeiro painel da tarde, tivemos mais um debate sobre o direito sucessório, especificamente sobre a situação sucessória do embrião. Perguntou-se: devem ser reconhecidos direitos sucessórios ao embrião, como sucessor legítimo? Respondeu positivamente o Professor da UFPR Erolths Cortiano Jr. A resposta negativa coube à Professora Heloísa Helena Barboza, da UERJ. A condução dos trabalhos foi do advogado Sérgio Marques da Cruz Filho, ex-presidente do nosso instituto em São Paulo. Houve ampla vitória da resposta do “Não”, em cerca de 80%, concluindo o público que o embrião somente teria direitos sucessórios após a sua implantação e o seu nascimento.
Com o devido respeito à tese vitoriosa no evento, a minha posição sobre o reconhecimento de direitos sucessórios ao embrião é no sentido de dar uma interpretação concreta de inclusão ao art. 1.798 do Código Civil, segundo o qual “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Na verdade, hoje se entende de forma majoritária que até em relação ao nascituro – aquele que foi concebido, mas ainda não nasceu, tendo vida intrauterina – há a necessidade do nascimento com vida para que exista o seu direito sucessório. Em suma, a parte final do comando tem sido negada e afastada por doutrina e jurisprudência majoritárias. Com relação ao embrião, a tese de exclusão dos direitos sucessórios também foi a vencedora no nosso evento, mormente diante dos numerosos problemas práticos que podem surgir do seu reconhecimento, muito bem demonstrados pelos expositores.
O último painel de debate voltou ao Direito de Família, com a seguinte indagação: a escritura pública de união estável pode ter eficácia retroativa? O Professor Euclides de Oliveira respondeu “Sim”, compartilhando a mesma posição que sigo, enquanto o Professor Rolf Madaleno disse “Não”, pelo menos em parte, pois a sua conhecida posição doutrinária é no sentido de que a escritura até pode ter eficácia retroativa, desde que beneficie o companheiro. A presidência da mesa e a condução dos debates couberam à Professora Fabiana Domingues. Houve novo empate técnico na votação do público, pois 55% ficou com a resposta negativa, e 45% com a resposta positiva.
Apesar de os dois juristas defenderem, em certa medida, a possibilidade de a escritura pública retroagir, reconhecendo a existência de união estável e o regime de bens aplicável desde determinado lapso temporal, sabe-se que a resposta que tem sido dada pela jurisprudência superior é negativa. Conforme julgado relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, que havia participado do Congresso no dia anterior, “no curso do período de convivência, não é lícito aos conviventes atribuírem por contrato efeitos retroativos à união estável elegendo o regime de bens para a sociedade de fato, pois, assim, estar-se-ia conferindo mais benefícios à união estável que ao casamento” (STJ, REsp 1.383.624/MG, Terceira Turma, julgado em 02.06.2015, DJe 12.06.2015). Com o devido respeito, não estou filiado ao teor do acórdão e penso que é possível, sim, dar um caráter retroativo ao contrato de convivência, tendo ele uma eficácia restritiva, podendo a prova fática demonstrar, por exemplo, que a união estável já existia antes da data apontada.
Por fim, o VIII Congresso Paulista foi encerrado com duas conferências de nossos ex-presidentes. O Professor Francisco Cahali tratou da possibilidade da arbitragem em sede de Direito de Família e das Sucessões, o que vem defendendo há tempos e merece ser melhor debatido pela comunidade jurídica. O Desembargador Antonio Carlos Mathias Coltro, por sua vez, abordou aspectos da jurisprudência atual do Tribunal Paulista nesses âmbitos. A presidência da mesa e os debates foram conduzidos pela advogada Silvia Felipe Marzagão.
Como derradeira nota, o nosso evento renovou a necessidade de continuarmos no debate de assuntos que ainda não estão resolvidos no âmbito do Direito de Família e das Sucessões. Além dos temas expostos, existem outros que merecem maiores aprofundamentos, como a guarda compartilhada de filhos, os limites de conteúdo do pacto antenupcial e do contrato de convivência, o planejamento sucessório, a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade.
De todo modo, não se pode negar que o sistema de participação do público foi um tremendo sucesso e deve se repetir nos próximos Congressos do IBDFAMSP, ocasiões em que queremos ampliar os diálogos com juristas que pensam bem diferente de nós. Discussões como essa só fazem crescer a comunidade e o pensamento jurídico e, por isso, pretendemos seguir em projetos similares.
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