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Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público Avança na Proteção dos Direitos Básicos
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
19/07/2018
Entrou em vigor, no dia 22 de junho, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios com mais de 500 mil habitantes, a Lei 13.460/2017 (também denominada Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público ou Código de Defesa do Usuário do Serviço Público), que estabelece as normas sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços da administração pública[1].
O referido diploma legislativo regulamenta, inicialmente, o artigo 37, parágrafo 3º da CRFB, alterado pela EC 19/1998, que remete ao legislador ordinário a disciplina das formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5.º, X e XXXIII; e III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. Contudo, a partir da análise do conteúdo da Lei 13.460/2017, percebe-se que as respectivas normas regulam, de forma preponderante, o citado inciso I. O acesso à informação (inciso II) é regulado pela Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) e a representação contra os abusos praticados por agentes públicos continua regulada pela Lei 4.898/1965 (Lei de Abuso de Autoridade) e pelos estatutos funcionais.
A Lei 13.460/2017 encontra fundamento ainda no artigo 175, parágrafo único, II e IV, da CRFB, que delega ao legislador a tarefa de dispor sobre os direitos dos usuários e a obrigação de manter serviço adequado. Nesse ponto, a lei em comento deverá ser harmonizada com as leis que dispõem sobre concessão e permissão de serviços públicos (exemplos: Lei 8.987/1995 e Lei 11.079/2004).
Ademais, a Lei 13.460/2017 regulamenta o artigo 27 da EC 19/1998, que estabeleceu o prazo de 120 dias, contados da promulgação da referida emenda, para o Congresso Nacional elaborar a lei de defesa do usuário de serviços públicos.
Conforme dispõe o seu artigo 1º, parágrafo 1º, a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público tem alcance nacional, aplicando-se à administração pública direta e indireta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Trata-se de opção legislativa que pode suscitar debate quanto à sua constitucionalidade, uma vez que o artigo 37, parágrafo 3º da CRFB remeteu o tema à “lei”, sem especificar o ente federativo responsável. Em razão da autonomia federativa e do conteúdo eminentemente de Direito Administrativo, seria razoável concluir, ao menos a partir dessa norma constitucional, que a matéria poderia ser disciplinada por cada ente federado, inexistindo, a priori, competência da União para fixar normas gerais de alcance nacional.
Contudo, o artigo 27 da EC 19/1998 dispôs, expressamente, que a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público seria elaborada pelo Congresso Nacional, o que autorizaria a interpretação de que a lei em questão seria nacional, e não apenas federal, o que seria confirmado pela própria presunção de constitucionalidade da Lei 13.460/2017.
De qualquer forma, nada impede, a nosso juízo, que algumas de suas normas sejam consideradas federais, com aplicação restrita à administração pública federal, notadamente aquelas que tratam da instituição de órgãos públicos (exemplos: ouvidorias, conselhos de usuários).
A aplicação da Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público, na forma do seu artigo 1º, parágrafo 2º, não afasta a necessidade de cumprimento das “normas regulamentadoras específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão” (parece redundância, uma vez que não existe serviço ou atividade fora do alcance de regulação ou supervisão), e da Lei 8.078/1990, “quando caracterizada relação de consumo”.
Aqui, a norma demonstra que alguns serviços públicos não caracterizam relação de consumo, mas não coloca fim na polêmica em torno da amplitude da aplicação das normas consumeristas aos serviços públicos. Sobre o tema, existem três entendimentos:
- tese ampliativa: todos os serviços públicos submetem-se ao CDC, que menciona os serviços públicos sem qualquer distinção, bem como pelo fato de que todos os serviços públicos seriam remunerados, ainda que genericamente por impostos[2];
- tese intermediária: o CDC deve ser aplicado aos serviços públicos uti singuli, que são remunerados individualmente pelos usuários-consumidores (taxa ou tarifa), em conformidade com o artigo 3º, parágrafo 2º, do CDC, excluídos, portanto, os serviços públicos uti universi[3];
- tese restritiva: o CDC incide apenas sobre os serviços individuais, remunerados por tarifas, excluídos da sua aplicação os serviços uti universi e os serviços individuais remunerados por taxa. Entendemos que a aplicação do CDC ocorre apenas em relação aos serviços públicos uti singuli, que sejam remunerados individualmente por tarifa[4].
O artigo 3º, parágrafo 2º, do CDC exige a remuneração do serviço e, nesse caso, estariam excluídos do conceito legal os serviços uti universi ou gerais que não são remunerados individualmente pelo usuário. É verdade que, a rigor, os serviços públicos gerais são remunerados, ainda que indiretamente, por impostos, mas o CDC, ao utilizar a expressão “mediante remuneração”, teve, certamente, a intenção de exigir a remuneração específica do usuário-consumidor. Não fosse assim, a expressão “remuneração”, encontrada na norma legal em comento, não faria qualquer sentido, dado que, a partir de uma visão extremada, não existe serviço genuinamente gratuito, pois sempre haverá alguém responsável por cobrir os custos de sua prestação.
A inaplicabilidade do CDC aos serviços públicos individuais, remunerados por taxas, justifica-se, ainda, pela natureza tributária e não contratual da relação jurídica. Sob o ponto de vista jurídico, contribuinte não se confunde com consumidor, devendo ser aplicada à relação entre o Estado e o contribuinte a legislação tributária, e não o CDC.
Com o advento da Lei de Defesa do Usuário do Serviço e a redação apresentada pelo artigo 1º, parágrafo 2º, II, a referida polêmica não deve terminar. Ao que parece, a redação do dispositivo legal apenas afastaria a tese ampliativa, mas permaneceriam sustentáveis as teses intermediária e restritiva apontadas acima.
De acordo com o disposto no artigo 1º, parágrafo 3º, a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público deve ser aplicada, subsidiariamente, “aos serviços públicos prestados por particular”, o que parece englobar todo e qualquer serviço público, próprio (serviços titularizados pelo Estado e que podem ser delegados, por concessão ou permissão, à iniciativa privada) ou impróprio (exemplos: serviços de saúde e de educação prestados, independentemente de delegação, por particulares). Isto porque o artigo 1º da lei já estabeleceu, no caput, a incidência de suas normas aos “serviços públicos prestados direta ou indiretamente pela administração pública”, o que abrangeria, naturalmente, serviços prestados diretamente pelo Estado e, indiretamente, por concessão e permissão. Logo, o parágrafo 3º do artigo 1º da lei, ao determinar a incidência subsidiária do diploma legal “aos serviços públicos prestados por particular”, evidenciou a sua intenção de abarcar os denominados serviços públicos impróprios de titularidade não exclusiva do poder público.
Ademais, o artigo 2º, II, da Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público apresenta a seguinte definição de serviço público: “Atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública”. O conceito apresenta equívoco ao restringir o serviço público à atividade “exercida” pela administração pública, uma vez que o artigo 175 da CRFB e o próprio artigo 1º da sobredita lei permitem que os serviços públicos sejam prestados direta ou indiretamente pela administração, admitindo-se, portanto, a delegação de sua execução à iniciativa privada. Em razão disso, seria melhor substituir a expressão “exercida” por “titularizada” pela administração pública no inciso II do artigo 2º da lei.
Os artigos 5º ao 8º da Lei 13.460/2017 dispõem sobre as diretrizes que deverão ser observadas pelos agentes públicos, os direitos e os deveres dos usuários. Merece destaque a obrigatoriedade de elaboração da denominada “Carta de Serviços ao Usuário”, que tem por objetivo informar o usuário sobre os serviços prestados pelo órgão ou entidade, as formas de acesso a esses serviços e seus compromissos e padrões de qualidade de atendimento ao público (artigo 7º, parágrafo 1º). A carta será atualizada periodicamente e divulgada de forma permanente mediante publicação em sítio eletrônico do órgão ou entidade na internet, cabendo ao regulamento de cada poder e esfera de governo dispor sobre a sua operacionalização (artigo 7º, parágrafos 4º e 5º)[5].
As normas relativas às manifestações dos usuários de serviços públicos encontram-se previstas nos artigos 9º ao 12 da Lei 13.460/2017. As manifestações, que poderão ser apresentadas pela forma eletrônica, por correspondência convencional ou de forma verbal (neste último caso, a manifestação será reduzida a termo), deverão conter a identificação do requerente, vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da apresentação de manifestações perante a ouvidoria[6]. Caso não haja ouvidoria, as manifestações serão direcionadas diretamente ao órgão ou entidade responsável pela execução do serviço e ao órgão ou entidade a que se subordinem ou se vinculem.
O recebimento das manifestações não poderá ser recusado pelo agente público, sob pena de sua responsabilização (artigo 11). A efetiva resolução das manifestações dos usuários compreende (artigo 12, parágrafo único): a) recepção da manifestação no canal de atendimento adequado; b) emissão de comprovante de recebimento da manifestação; c) análise e obtenção de informações, quando necessário; d) decisão administrativa final; e e) ciência ao usuário.
As ouvidorias, por sua vez, são regulamentadas pelos artigos 13 ao 17 da Lei 13.460/2017. Além de outras atribuições que poderão ser conferidas por regulamento próprio, compete às ouvidorias, no mínimo (artigo 13): a) promover a participação do usuário na administração pública, em cooperação com outras entidades de defesa do usuário; b) acompanhar a prestação dos serviços, visando garantir a sua efetividade; c) propor aperfeiçoamentos na prestação dos serviços; d) auxiliar na prevenção e correção dos atos e procedimentos incompatíveis com os princípios estabelecidos nesta lei; e) propor a adoção de medidas para a defesa dos direitos do usuário, em observância às determinações desta lei; f) receber, analisar e encaminhar às autoridades competentes as manifestações, acompanhando o tratamento e a efetiva conclusão das manifestações de usuário perante órgão ou entidade a que se vincula; e g) promover a adoção de mediação e conciliação entre o usuário e o órgão ou a entidade pública, sem prejuízo de outros órgãos competentes.
As ouvidorias devem receber, analisar e responder, por meio de mecanismos proativos e reativos, as manifestações encaminhadas por usuários de serviços públicos, bem como elaborar, anualmente, relatório de gestão, que deverá consolidar as informações apresentadas pelos usuários, com a indicação das falhas e a sugestão de melhorias na prestação dos serviços públicos (artigo 14)[7].
Os atos normativos específicos de cada poder e esfera de governo disporão sobre a organização e o funcionamento de suas ouvidorias (artigo 17).
Os artigos 18 ao 22 da Lei 13.460/2017 tratam dos conselhos de usuários, órgãos consultivos que devem (artigo 18, parágrafo único): a) acompanhar a prestação dos serviços; b) participar na avaliação dos serviços; c) propor melhorias na prestação dos serviços; d) contribuir na definição de diretrizes para o adequado atendimento ao usuário; e e) acompanhar e avaliar a atuação do ouvidor. Além disso, o conselho de usuários poderá ser consultado quanto à indicação do ouvidor (artigo 20).
A composição dos conselhos deve observar os critérios de representatividade e pluralidade das partes interessadas, com o intuito de garantir o equilíbrio em sua representação, exigindo-se a realização de processo aberto ao público e diferenciado por tipo de usuário para escolha dos representantes (artigo 19, caput e parágrafo único). A participação do usuário no conselho será considerada serviço relevante e sem remuneração (artigo 21).
Assim como ocorre com as ouvidorias, cada poder e esfera de governo, por meio de regulamento específico, definirá as normas de organização e funcionamento dos conselhos de usuários (artigo 22). Os órgãos e entidades públicos abrangidos pela Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público deverão avaliar os serviços prestados, nos seguintes aspectos (artigo 23): a) satisfação do usuário com o serviço prestado; b) qualidade do atendimento prestado ao usuário; c) cumprimento dos compromissos e prazos definidos para a prestação dos serviços; d) quantidade de manifestações de usuários; e e) medidas adotadas pela administração pública para melhoria e aperfeiçoamento da prestação do serviço.
A avaliação será feita por pesquisa de satisfação, no mínimo, a cada um ano, ou por qualquer outro meio que garanta significância estatística aos resultados, cujo resultado será integralmente publicado no site do órgão ou entidade, incluindo o ranking das entidades com maior incidência de reclamação dos usuários, e servirá de subsídio para reorientar e ajustar os serviços prestados, em especial quanto ao cumprimento dos compromissos e dos padrões de qualidade de atendimento divulgados na Carta de Serviços ao Usuário (artigo 23, parágrafos 1º e 2º).
As avaliações de efetividade e de nível de satisfação dos usuários serão especificadas em regulamentos próprios de cada poder e esfera de governo (artigo 24).
Apresentado o cenário geral da Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público, é possível perceber que o alargado prazo de vacatio legis (360 dias), sem desconsiderar a mora legislativa na regulamentação dos dispositivos constitucionais citados ao longo deste texto, não foi aproveitado de forma adequada pela União, estados, Distrito Federal e municípios com mais de 500 mil habitantes, que não implementaram, ao menos integralmente, as exigências contidas no novel diploma normativo.
Em síntese, é possível afirmar que a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público representa mais um diploma legal que avança na proteção dos direitos básicos dos destinatários dos serviços públicos. O próximo passo é tornar efetiva a ampla proteção consagrada no âmbito normativo para que o sistema de proteção dos usuários de serviços públicos não se transforme em mais uma promessa não adimplida pelo poder público.
Fonte: Conjur
[1] A Lei 13.460, que foi publicada no Diário Oficial no dia 27/6/2017, entra em vigor, a contar da sua publicação, em (artigo 25 da lei): a) 360 dias para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de quinhentos mil habitantes; b) 540 dias para os Municípios entre cem mil e quinhentos mil habitantes; e c) 720 dias para os Municípios com menos de cem mil habitantes.
[2] SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo da economia. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 338; BENJAMIM, Antônio Herman de Vasconcellos e. In: OLIVEIRA, Juarez de (Coord.). Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 110-111.
[3] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 486; GROTTI, Dinorá Adelaide Mussetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 347.
[4] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Organização administrativa, 4. ed. São Paulo: Método, 2018. p. 302. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 6. Ed. São Paulo: Método, 2018, p. 250.
[5] Lei 13.460/2017: “Art. 7.º […] § 2.º Carta de Serviços ao Usuário deverá trazer informações claras e precisas em relação a cada um dos serviços prestados, apresentando, no mínimo, informações relacionadas a: I – serviços oferecidos; II – requisitos, documentos, formas e informações necessárias para acessar o serviço; III – principais etapas para processamento do serviço; IV – previsão do prazo máximo para a prestação do serviço; V – forma de prestação do serviço; e VI – locais e formas para o usuário apresentar eventual manifestação sobre a prestação do serviço. § 3.º Além das informações descritas no § 2.º, a Carta de Serviços ao Usuário deverá detalhar os compromissos e padrões de qualidade do atendimento relativos, no mínimo, aos seguintes aspectos: I – prioridades de atendimento; II – previsão de tempo de espera para atendimento; III – mecanismos de comunicação com os usuários; IV – procedimentos para receber e responder as manifestações dos usuários; e V – mecanismos de consulta, por parte dos usuários, acerca do andamento do serviço solicitado e de eventual manifestação”.
[6] Registre-se que a identificação do requerente é informação pessoal protegida com restrição de acesso nos termos da Lei 12.527/2011 (artigo 10, parágrafo 7º da Lei 13.460/2017).
[7] Lei 13.460/2017: “Art. 15. O relatório de gestão de que trata o inciso II do caput do art. 14 deverá indicar, ao menos: I – o número de manifestações recebidas no ano anterior; II – os motivos das manifestações; III – a análise dos pontos recorrentes; e IV – as providências adotadas pela administração pública nas soluções apresentadas. Parágrafo único. O relatório de gestão será: I – encaminhado à autoridade máxima do órgão a que pertence a unidade de ouvidoria; e II – disponibilizado integralmente na internet”.
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