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Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

19/07/2018

Ao menos para nós, brasileiros, a Copa do Mundo tem esse nítido efeito: torna-se quase impossível tratar de outro assunto. Bem vistas as coisas, contudo, nenhum outro esporte exprime de modo tão didático a relação entre direito e justiça quanto o futebol. Toda partida de futebol encerra, em última análise, um confronto entre razão e instinto, entre ação e norma, entre violência (simbólica, quando não real) e controle, mas revela também o embate permanente entre regra e valor, entre direito e justiça.

De acordo com a FIFA, apenas dezessete regras guiam o jogo do futebol. A exemplo das normas jurídicas estatais, essas regras impõem certos comportamentos, proíbem outros, estabelecem sanções, tudo no afã de produzir uma disputa mais justa entre os participantes. As regras domesticam a disputa do “velho esporte bretão”, que deixa o campo da anarquia lúdica para entrar no mundo do jogo, do esporte e, por fim, do espetáculo (com as ressalvas de praxe).

No futebol, como no direito, há o problema da interpretação da regra. O atacante russo Dzyuba cabeceia a bola e acerta os braços abertos do zagueiro Piqué, que havia saltado como uma garça na área da Espanha: pênalti ou mera bola na mão? No futebol, como no direito, há uma autoridade investida da função de interpretar a norma, de aplicá-la ao caso concreto: o juiz. Já se disse que a única unanimidade que um juiz de futebol pode provocar é o ódio. No campo jurídico, se o juiz erra, cabe recurso aos tribunais – no caso brasileiro, uma infinidade de recursos que tornam nosso processo civil um dos mais lentos do mundo. No futebol, se o juiz erra, não há nada a fazer: perdem-se partidas, pontos, títulos e o único remédio que resta aos torcedores da equipe derrotada é chamar o adversário de ladrão. No futebol, não há recurso ou, pelo menos, não havia.

Escrevo a coluna deste mês da cidade de Samara, no interior da Rússia, sede da Copa do Mundo. Há, por aqui, uma enorme insatisfação com o VAR (sigla em inglês de video assistant referee) ou simplesmente árbitro de vídeo. Para quem está por fora, funciona mais ou menos assim: pênalti marcado pelo árbitro, êxtase de um lado do estádio, desespero de outro. Segue-se a consulta ao vídeo, o pênalti é “suprimido” e as emoções se invertem. Forma-se, no meio tempo, uma rodinha de jogadores, árbitro e assistentes, uma espécie de Concílio de Trento que decidirá o destino da devota multidão que aguarda ansiosa nos estádios e à frente dos televisores de todo o mundo.

O VAR é o extremo da regra, a dura lex, sed lex do futebol, a tentativa de privar a norma de todas as sutilezas da interpretação de momento, a fantasiosa solução dos tecnólogos para um problema que é demasiadamente humano para caber em um aparelho de tevê. Também o vídeo deturpa a realidade. Um empurra-empurra dentro da área, se visto em câmera lenta, pode ganhares ares de UFC. Um leve toque pode se transformar em um empurrão. O que o vídeo nos mostra não é o que aconteceu, é sobretudo o comportamento dos envolvidos. No mundo do futebol-espetáculo, que substituiu a glória dos antigos estádios pelo conforto das arenas cercadas de câmeras por todos os lados, os jogadores de futebol são, antes de tudo, artistas, que aprenderão a interpretar para o VAR como aprenderam, anos atrás, a interpretar para o juiz. É meramente aparente a objetividade do VAR, como, de resto, toda objetividade. A interpretação da regra sempre dependerá, em alguma medida, da subjetividade do intérprete. Trata-se de um daqueles poucos problemas essencialmente humanos que nos restam.

Ainda que fosse possível superar o componente subjetivo da interpretação das regras, isso não nos levaria necessariamente a um resultado mais justo. O futebol demonstra cotidianamente que regra e justiça não são sempre coincidentes. Um calafrio percorre minha espinha quando penso nos momentos sublimes que o rigor do VAR teria suprimido da história do futebol mundial. Pensem no Mundial de 86, no México, quando Maradona encantou o mundo – incluindo esse menino de apenas oito anos que vos escreve – com seu futebol arisco e devastador. O mundo inteiro já havia sofrido, na edição anterior da Copa (Espanha, 1982), com a tragédia do Sarriá, que representou a derrota do futebol mais bonito e apaixonante de todos os tempos (salve Sócrates, salve Falcão, salve Toninho Cerezo). Na terra arrasada do talento, erguia-se uma Argentina insinuante, com El Pibe de Oro vivendo sua melhor fase. Nas quartas de final contra a Inglaterra, o camisa 10, de apenas 1,65m de altura, sobe para marcar o gol, com a ajuda discreta de uma das mãos. Resultado final: vitória da Argentina por 2×1 sobre um futebol excessivamente pragmático dos ingleses. Interpelado ao fim da partida pelos repórteres, que perguntavam se o gol tinha sido de mão, Don Diego responde: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”. Deu com isso ao futebol mundial o único gol que até hoje tem nome: la mano de Dios. Cabe a pergunta: a violação da regra pode ser justa? Vejam que há mais filosofia da justiça na Copa do Mundo de 1986 que em muitos livros das nossas bibliotecas.

No futebol, como na vida em sociedade, as regras são criadas e aplicadas em nome de se uma realidade mais justa. Mas quem define o que é a justiça? A ideia de justiça representa um dos conceitos mais desafiadores da ciência jurídica contemporânea. Não há consenso em torno de uma noção única de justiça. Há diferentes noções do justo, por vezes colidentes entre si. E isso também se reflete no futebol. Em 2002, o Santos, dos meninos Diego e Robinho, terminou a primeira fase do Campeonato Brasileiro em um mísero oitavo lugar. Último classificado, enfrentou o líder e favoritíssimo São Paulo. Venceu no mata-mata e eliminou o time mais regular do Campeonato. Sorte? Momento? Injustiça? Seguiu vencendo os jogos eliminatórios e sagrou-se campeão. Em 2003, as regras foram alteradas para que o Brasileirão seguisse o sistema de pontos corridos, o que ocorre até hoje. O principal argumento utilizado foi, adivinhem, justiça! Afirmava-se que o time que ganhou o maior número de partidas, que mostrou maior regularidade ao longo de todo campeonato, deveria ser o campeão, “por uma questão de justiça”. O mata-mata é emocionante, mas injusto, advertiram, pois naquela partida eliminatória o melhor time pode estar “desfalcado”, “exausto” ou pode ter enfrentado alguma outra espécie de dificuldade momentânea. Injustiça, portanto. Mas não será precisamente o contrário? Haverá algo mais justo que um sistema em que dois times se enfrentam em confronto direto e o vencedor avança? As agruras momentâneas de cada um não devem ser deixadas de lado em nome de uma justiça crua, como resultado de uma disputa direta? Injusto não seria exatamente o sistema de pontos corridos, em que um time pode ser campeão mesmo perdendo duas vezes (no turno e returno) para um mesmo rival? Vejam que há, aqui, duas noções diferentes de justiça que colidem entre si: (a) a justiça como segurança e estabilidade, como ausência de arbítrio, incluída aí a ausência do atributo da sorte; e (b) a justiça como igualdade de oportunidade para todos, a justiça-raiz do pugilato franco, a justiça do “que vença o melhor”. Afinal, o que é mais justo? E, mais especificamente, o que é mais justo no futebol? A Copa do Mundo, como ainda alguns campeonatos nacionais, vale-se, diferentemente do Brasileiro, de um sistema misto: primeira fase de pontos e segunda fase eliminatória. As redes de tevê tendem a preferir o sistema exclusivo de pontos. Fases eliminatórias exigem prorrogações e disputas de pênalti, afetando o tempo de duração da partida e alterando, de modo imprevisível, as grades de programação. O futebol-espetáculo, conquanto se alimente da emoção da torcida, só cede a ela até certo ponto e o resultado são encerramentos melancólicos de Campeonato Brasileiro nos últimos anos, com títulos sendo conquistados em jogos inexpressivos, contra times que se encontram na zona de rebaixamento ou no meio da tabela, normalmente com algumas rodadas de antecipação – o que torna o restante do campeonato uma espécie de compromisso burocrático a ser cumprido por mera obrigação ou por prêmios de consolação.

Pior: o que temos dificuldade de reconhecer é que talvez o maior encanto do futebol ou a sua forma mais delicada de justiça esteja exatamente na sua ocasional injustiça. Ao assistir uma partida de futebol, não é raro que nos sintamos impelidos a torcer pelo time pior. O mundo todo comoveu-se recentemente com a Islândia, que, mesmo sem dispor de jogadores profissionais de futebol (boa parte são dentistas, publicitários, bombeiros ou têm outras profissões), chegou às quartas de final da Eurocopa de 2016. E como não recordar a Dinamarca de 1992, campeã da Eurocopa daquele ano, que nem sequer havia se classificado para o torneio, mas ganhou “de presente” a vaga diante da imposição de sanção política à Iugoslávia? Talvez não haja nada mais injusto que a vitória final de uma seleção que não conquistou em campo o direito de estar ali. Ainda assim, o mundo celebrou aquela injustiça: a vitória de uma seleção que podia consumir cerveja na concentração e até antes dos treinos, e cujos jogadores foram levados por seu técnico para relaxar jogando minigolfe na véspera de uma partida dura contra a França e para uma lanchonete após outra vitória difícil sobre a Holanda, a fim de que os atletas comessem todos os hambúrgueres, refrigerantes e milk shakes que quisessem. “Afinal, fomos ao campeonato sem nada a perder” –explicou o lendário técnico da Dinamarca, Moller Nielsen, falecido em 2014.

No Brasil, lembro de, ainda criança, torcer intensamente para o América (Mequinha) de Lamartine Babo contra o São Paulo de Careca na semifinal do Brasileiro de 86 e, um ano antes, só não torci para o Bangu na final do Carioca de 85 porque estava ocupado demais torcendo fanaticamente pelo adversário, o clube tantas vezes campeão. Há uma face bonita da justiça que se revela naquelas partidas em que o time mais fraco vence o time mais forte. Poucos esportes permitem isso. O número elevado de pontos no basquete, no vôlei e na imensa maioria das modalidades coletivas diminui o grau de risco dos resultados surpreendentes. Mais que o prazer de assistir a algo inédito desde a batalha bíblica entre Davi e Golias, a vitória do time mais fraco, que, para alguns, seria uma injustiça técnica, vinga todos os fracos do mundo, oprimidos pelos fortes da vez. O futebol como redenção: difícil imaginar algo mais justo.

Mesmo com todo investimento em torno do cumprimento das suas regras, mesmo com todo o esforço para privá-lo do espanto, mesmo com toda a elitização dos estádios e com o fim da Geral, o futebol resiste como paixão popular exatamente porque ainda é o terreno do aleatório, do imprevisível, do mágico. Contra toda a pastosidade pseudocientífica dos chatíssimos esquemas táticos, a essência do futebol continua sendo o drible. E o drible o que é? É, por definição, o oposto do esperado. É justamente o movimento antinatural, imprevisível. O drible é o que não devia acontecer, mas aconteceu. Eis a essência do futebol. Quando Neymar costura seu caminho por entre cinco jogadores adversários que têm a única missão de impedir seu progresso até o gol, isso talvez não seja justo em um sentido, mas será justíssimo em outro.

Encerro por aqui me desculpando com o leitor pelo final abrupto. É que, agora, tenho de me preparar para ir a Kazan, onde assistirei às quartas de final entre Brasil e Bélgica. Prevejo um jogo enjoado no primeiro tempo e um final de partida retumbante, com a mística do futebol brasileiro (mais talvez que a equipe) se fazendo prevalecer. Brasil 3×0… se o VAR não nos “roubar” nenhum gol.


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