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O processo penal como dialética da incerteza

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PROCESSO PENAL

O processo penal como dialética da incerteza

CAPACIDADE POSTULATÓRIA

CONCEITO

FASE DE INVESTIGAÇÃO

NÃO-CULPABILIDADE

POTENCIALIZAÇÃO DA AMPLA DEFESA

PROCESSO PENAL

Eugenio Pacelli

Eugenio Pacelli

06/02/2018

Justificada por uma pluralidade de outras razões – já veremos algumas delas – esta Edição se apresenta como um desdobramento, igualmente histórico, da louvável iniciativa do Senado da República, no sentido de instituir uma Comissão de Juristas para a elaboração de um anteprojeto de “Novo” Código de Processo Penal brasileiro. Abstraídas quaisquer considerações acerca de possíveis desacertos e ou insuficiências na sua constituição (da Comissão), a feitura de uma nova codificação da legislação processual penal no Brasil há que ser reverenciada. Quando nada, para que se realize um esforço de atualização e de compilação da multifacetária legislação nacional. Perdido no tempo e no espaço de suas regulações, nosso processo penal, do ponto de vista da unidade e da sistematização de normas de permanente aplicação, agoniza. Conflitos de competência no âmbito da Justiça denominada comum – Justiça Federal e Justiça Estadual – amontoam-se no Superior Tribunal de Justiça; o excesso de tipificação penal, irracional até mesmo nas escolhas de proteção, faz amontoar investigações e inquéritos nas polícias e no Ministério Público; e porque impossível o escoamento de tanta demanda, amontoam-se processos na Justiça Criminal.

Certamente, não se assenta aqui a ingenuidade de se supor a possibilidade de solução de problemas estruturais unicamente por intermédio da legislação processual penal. Leis que cuidam de procedimentos e de processo não ampliam o quadro da magistratura, do Ministério Público, da Polícia, e, mais que isso, não solucionam os inúmeros e crescentes problemas sociais que invariavelmente deságuam na criminalidade. Sabe-se de tudo isso. Nada obstante, há muito que se fazer, sobretudo em relação aos problemas mais visíveis, a interferir na qualidade e na efetividade da persecução penal.

O texto que se segue não pretende ser uma “interpretação justificadora” das opções eventualmente feitas pela Comissão, de que resultou o atual PLS 156, ora em tramitação do Senado. Nosso propósito é declinar um projeto de compreensão (para a aplicação) de um modelo processual que guarde as características fundamentais traçadas pelo constituinte de 1988. Não se trata de mera especulação teórica; obramos sobre o sistema positivo nacional, submetendo o atual CPP às determinações constitucionais, ainda que com objeçõesde lege ferenda,cuidando também de apontar em que ponto ou em que pontos o PLS 156 se alinharia com as nossas pretensões hermenêuticas ou de postulação de sentido para as normas.

De se ver, contudo, que a leitura que vai adiante é, por enquanto, um ensaio. Ou, talvez, um esboço de ensaio, a ser melhor e mais profundamente desenvolvido em cada um de seus tópicos e de suas tematizações. De qualquer modo, a ocasião não poderia ser mais propícia.

1.Ainda sem adentrar o movediço campo da possibilidade de adequação das categorias essenciais do processo penal a uma teoria geral do processo, da qual se esperaria uma certa universalização dos saberes acerca do processo judicial, independentemente da natureza do respectivo objeto – conflitos trabalhistas, cíveis, tributários, penais etc – parece irrenunciável o esclarecimento de alguns conceitos fundamentais.

Nesse passo, a estrutura dialética do processo, em perspectiva mais aristotélica (dialética), via da qual a contraditoriedade das relações humanas é inerente ao “ser das coisas”, estará presente em qualquer questão submetida ao Judiciário. Aliás, também o Direito, no pós-positivismo, se caracteriza pela dialeticidade. A partir, então, de umpedido, que aparece por meio daação de alguém, inicia-se o conhecimento acerca do objetodaquelapretensão (o autor que pretende submeter o interesse do réu ao seu). Aqueleem face de quem se pededeverá, então, ser ouvido, emcontraditório. E por uma série de motivos, que vão desde aincertezaquanto a pertinência, veracidade e existência concreta do conjunto de elementos fáticos e jurídicos que sustentariam a pretensão levada pelo autor ao Judiciário, até a definição e delimitação dos direitos subjetivos que eventualmente estejam em oposição – contradição de pretensões -, passando pela necessidade de observância do princípio daigualdade, pressuposto de legitimidade da arbitragem do conflito, na medida em que aimparcialidade (do árbitro ou daquele quedecide) dependerá, objetivamente2, daparidade simétricada posição processual dos envolvidos.

De modo que não se pode falar em processo judicial algum sem a observância docontraditórioe daigualdade(paridade) de posições entre aquele que pede e aquele em face de quem se pede. Daí, também, o conceito departe,facilmente obtido da equaçãopretensão (de algo)xnegação ou recusa a ela, explicitando posiçõesparciaisquanto à atividade desenvolvida no processo. Desnecessário dizer que a ausência de resistência ao pedido por parte do réu não desqualifica acontradiçãode direitos ou de interesses que justificaram a propositura da ação. Não houvesse ela, seria o autorcarecedor da ação,segundo ideia geral do processo.

Parece, então, fora de maiores indagações, o significado e a utilidade dos conceitos departe,decontraditório,deigualdade processual,depretensão, pedidoetc.

2.No processo penal, contudo, há, à saída, uma questão a ser resolvida, para fins de adaptação e adequação – ou não – às categorias da teoria geral do processo. Praticada uma infração de natureza penal, o autor da respectiva ação (penal) veicularia que tipo de pretensão? Seria possível afirmar-se a presença de algumdireito subjetivoem disputa, e cuja titularidade, para fins de exercício, seria ao final afirmada em Juízo?

Nos passos de TORNAGHI3, consolida-se a distinção entre interessemateriale interesseprocessual.O primeiro diria respeito aoconteúdo da decisão, enquanto o segundo se referiria ànecessidade da via judicial.Utilidadeeadequaçãotambém são elementos que frequentemente são manejados para a caracterização do interesse processual.4

O que nos interessa aqui é o interessematerial,bem como a delimitação do conceito depretensão.

No ponto, merece registro amea culpafeita por CARNELUTTI, em manifestação em que reconheceu o equívoco de seu entendimento anterior, via do qual afirmava ser possível adaptar-se o conceito depretensão,enquanto exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio, ao âmbito do processo penal. Ouçamo-lo: “…o Ministério Público, que está investido no magistério punitivo, não tem motivo e nem possibilidade de exigir o seu exercício (de sujeição de alguém à pena)… e menos ainda do imputado; em segundo lugar porque, admitindo-se mesmo que o castigo do culpado satisfaz um interesse da sociedade, personificada no Estado, tal satisfação não está a cargo do imputado, o qual até pelo contrário, enquanto culpado tem um interesse, solidário com o Estado, em ser csatigado”.5

Não nos arriscamos a acompanhar o entendimento do ilustre jurista peninsular, segundo o qual o imputado teria um interesse solidário com o Estado, em receber o castigo6. É bem de ver que aludida percepção da pena não é novidade. Por isso, refutamos também, e no ponto, a leitura que faz SALGADO da filosofia de Hegel, no sentido de que o réu teria umdireito à pena.7O que se impõe coercitivamente a alguém, independentemente de sua vontade – aliás,contrariamente a ela, de modo geral – não pode ser classificado comodireito.Em Hegel, o direito que surgecom a aplicação da pena,é o de o apenado ser reinserido na sociedade; se ele não pudesse voltar a ela (sociedade) não se trataria de pena pública, mas de ruptura com o autor da infração, tendo como consequência a perda dostatusde sujeito e/ou pessoa de direitos. JAKOBS8 também já chegou a esta conclusão em seu problemáticoDireito Penal do Inimigo,com a distinção de que, embora se dê, ali, ao inimigo, o tratamento denão-pessoa(de direitos, é claro!) – mas ainda sim, indivíduo – não se chega a renunciar à pena pública.

A nosso aviso, o processo penal não se compadece com o conceito de pretensão elaborado pela teoria geral do processo. A iniciar-se pela concepção do interesse material. Obviamente, estamos a nos referir ao processo penal condenatório.

Se o processonão-penal guarda maior afinidade com a ideia deconflito de interesses,geralmente inseridos no contexto de umadisputaentre direitos subjetivos, nada disso ocorre no processo de natureza penal. Aliás, somente quando o processo civil trata do chamadointeresse público(incapacidade, estado de pessoa etc), no qual se adota uma perspectiva procedimentalpara além da iniciativa das partes, é que ele poderá se aproximar do processo penal. E, ainda assim, muito timidamente.

Com efeito, não nos parece adequado e nem possível enxergar na imposição de uma pena pública o reconhecimento e a afirmação deum direito subjetivo, a ser satisfeito à custa do dever alheio. O acusado não mantém, em relação a quem quer que seja, o dever jurídico de se submeter à pena. A pena é-lhe imposta coercitivamente, tendo por fundamento, não uma relação de direito – individual, coletiva ou difusa -, mas a responsabilidade pessoal pela prática de um fato definido como crime. Direito subjetivo e dever jurídico, tal como o conhecemos na concepção clássica, não podem ter por objeto a inflição de um mal, ainda que sua utilização esteja legitimada no ordenamento.

Em relação à vítima, por exemplo, pode-se vislumbrar uma responsabilidade de natureza civil, no campo da teoria das obrigações. Na esteira de Carnelutti, “…No se puede demostrar de outra manera, si se quiere razonar com rigor, la inidoneidad del ofendido para desplegar actividad de parte em cuanto al castigo y aí a los fines penales. Em verdad, la posición del ofendido es la de qien pide uma atribuición a sí, y precisamente uma atribuición de HABER…Tal posición es antitética a la que se refiere al castigo, la cual se resuelve em una atribuición no al ofendido, sino al ofensor, y em tema de SER, no em tema de TENER.”9

Tudo isso parece claro quando se discute a questão do ponto de vista do Direito Penal, quaisquer que sejam as justificativas reclamadas para a pena pública.  Mas, parece-nos também necessário que tais considerações componham o ambiente teórico do processo penal, sem o que o manejo e o recurso aos conceitos da teoria geral do processo, sistematicamente utilizados na legislação, na jurisprudência e na doutrina, não se sustentarão.

3.Quando se fala, então, emparte,é preciso saber se estamos a falar unicamente daquele que pede algo em Juízo – e do outro, em face de quem se pede – ou se também incluiremos no conceito a vinculação prévia ao objeto do processo (interesse material). Em processo civil sequer há esta necessidade, na medida em que a atuação das partes é sempreparcial,no sentido de se buscar a satisfação de um interesse (bem de vida) à custa do réu. As modificações de posição no curso do processo, relativamente ao seu conteúdo, terão consequências imediatas, determinando a sua extinção (do processo, com resolução do mérito – art. 269, II, III e V, CPC, por força de manifestação de vontade dos interessados).

Na ação penalprivadaaté ocorre algo semelhante, exigindo a legislação que o autor-vítima se vincule necessariamente ao objeto do processo, sob pena de perempção (art. 60, I, II e III, CPP). Não nos deteremos sobre a ação penal privada. Para nós, aliás, este é um modelo injustificável, no âmbito de um processo condenatório, orientado pelo princípio da intervenção mínima. Não vemos razão alguma para a sua manutenção no processo penal brasileiro. Nesse passo, recentemente, a Lei 12.015, de 7 agosto de 2009, reduziu drasticamente, e ainda mais, o espectro da referida ação penal (privada), tornando pública, condicionada à representação, a persecução para os crimes contra a liberdade sexual (art. 213 e seguintes, CP), ressalvadas as hipóteses de ação incondicionada. O PLS 156 foi além e fez evaporar a aludida ação penal, substituindo-a pela ação pública, condicionada à representação, modelo mais adequado à satisfação do interesse público. Ao mesmo tempo, preservou a intervenção da vítima, a seu juízo de conveniência e oportunidade, seja para o ingresso no processo para fins civis, seja para a proteção quanto ao sigilo do fato. Já veremos como isso se deu.

Não é o que ocorre, como se sabe, com a ação penal pública. Nosso processo penal em vigor optou pela regra daobrigatoriedade da ação, titularizada em mãos do Ministério Público. Presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, bem como formulado juízo positivo quanto à presença de crime,deveoparquetpropor a ação, não podendo dela desistir (art. 42, CPP).

O PLS 156 mantém esta tradição, alterando, contudo, a legitimidade para o controle de arquivamento das investigações (PLS 156 – art. 38). Teria sido a melhor escolha?

4.O problema não é de pouca monta.

A escolha por um modelo de ação penaldiscricionária, tal como adotado nos Estados Unidos, por exemplo, exige uma configuração de Estado com algumas peculiaridades. Ora, qualquer exercício do poder público deve se submeter a algum tipo de controle, seja ela a atividade parlamentar, executiva ou aquela responsável pelo incremento de políticas de interesse público, como se dá com a persecução penal. É dizer, se o Ministério Público, responsável por ela (persecução), pudesse agir discricionariamente, isto é, com liberdade de escolha sobreprioridades,e, enfim, sobre a própria política de proteção penal (afinal, se se podeescolher o processo, escolhe-se, em conseqüência, a razão de melhor tutela – bem jurídico!), não deveria ele se submeter a alguma instância de controle, pública ou privada? De ver-se que nos EUA o controle da atuação do Ministério Público, incluindo oplea barganing(transação e acordos sobre o crime e sobre a pena), é realizado,a posteriori(é claro!) pelo eleitorado, na escolha do Procurador-Geral, que, a seu turno, determina, hierarquicamente, a atuação dos demais.

Não é evidentemente o que dispõe a nossa Constituição da República.

O Ministério Público brasileiro não é eleito. E, mais. Sequer o Procurador-Geral da República, no âmbito do MP Federal, e os Procuradores-Gerais dos Estados, indicado (o primeiro) e escolhido (o segundo) pela Chefia do Executivo – esse, sim, eleito – detém qualquer poder hierárquico sobre os demais membros. O princípio constitucional da independência funcional assegura liberdade de ação aos órgãos doparquet(art. 127), ressalvadas as hipóteses de revisão de que é exemplo o disposto no art. 28 do CPP.  Exemplo, aliás, que indica uma das únicas formas de controle da atuação do Ministério Público no processo penal, na fase de postulação. Controledevido,mas inteiramenteinadequado. O juiz não deveria se manifestar sobre juízo negativo do Ministério Público, até porque na referida manifestação – de discordância com o arquivamento requerido pelo MP – há manifesta apreciação prévia e indevida do material probatório, como que antecipando avaliações de mérito, sem a instauração do contraditório.

O PLS 156, no ponto, modifica inteiramente o cenário. O arquivamento submete-se ainda a controle, mas não mais em mãos do juiz, e, sim, da vítima (art. 38-PLS 156). Na verdade, o controle até pode ser qualificado comohierárquico,na medida em que a decisão final acerca da postulação fica no âmbito do próprioparquet,como, aliás, ocorre no atual art. 28, CPP. No entanto, aprovocaçãodo juízo revisional sai agora (PLS 156) das mãos do magistrado para o juízo de conveniência (e pacificação) da vítima, que já detém legitimação ativa para a ação penal subsidiária, no caso de inércia do MP (art. 5, LIX).

São, duas, portanto, as formas de controle da atuação doparquetno processo penal: a) o doarquivamento(art. 28, CPP), e b) da observância dos prazos para manifestação, após o encerramento do inquérito, permitindo-se à vítima o exercício da ação penal subsidiária (art. 29, CPP, e art. 5, LIX, CF).

Sendo assim, perfeitamente compreensível a opção pela adoção do princípio daobrigatoriedadeda ação penal, devendo o MP se orientar pela regra daobjetividadeoulegalidade.Não só por estas razões (de controle), mas, sobretudo, em razão da configuração constitucional do nossoparquet,vocacionado institucionalmente para a atuaçãocustos legis,isto é, para a atuação dirigida à reta aplicação da lei penal, cabendo a ele zelar pela ordem jurídica e não pelos interesses acusatórios oude parte acusadora. Por isso, justificado o art. 395 do CPP, reproduzido no PLS 156 (art.409) a ditar a possibilidade de o juiz proferir sentença condenatória, ainda que tenha o MP se manifestado pela absolvição. Naturalmente, não se incorporou a parte relativa à possibilidade de o juiz reconhecer agravantes ou causas de aumento não alegadas na acusação.

Assentada, então, a posiçãocustos legisdo Ministério Público, o processo penal brasileiro passa a não depender de uma concreta configuração do modelo acusatório para permitir o julgamento da causa, independentemente da manifestação ministerial pela absolvição. É que, obrigado à ação, a modificação posterior quanto ao conteúdo do processo (condenação ou absolvição, ao final) não se submete mais a nenhum controle, por parte de quem quer que seja. Assim, se o objeto do processo, em uma ação penal obrigatória,não é disponível, parece-nos incompatível admitir-se a extinção dele (extinção também da punibilidade???) por força da manifestação ministerial pela absolvição. Aquele que, inicialmente, seriaobrigado,poderiadesobrigar-seem alegações finais. Essa a questão: se não se adota o princípiodispositivoe sim o daobrigatoriedade, não se pode afastar a apreciação da causa pelo juiz.

No ponto, veja-se lição de Jorge Figueiredo DIAS: “…Da mesma forma que, acabamos de ver, não vale em processo penal o princípio da discussão (processo como duelo de partes), em qualquer de suas manifestações mais importantes, também ali não há lugar para o princípio dispositivo.Isto é, como já se sugeriu, consequência da fundamentalindisponibilidade do objectoprocessual penal e conduz à impossibilidade dedesistênciada acusação pública, de acordos eficazes entre a acusação e a defesa e de limitações postas ao tribunalna apreciação jurídicado caso submetido a julgamento. …Pode o MP ter pedido a absolvição do arguido eo tribunal condená-lo – como pode a defesa, considerando provado o crime, pedir apenas a condenação em uma pena leve e o tribunal absover o arguido”.10

5.Embora seja de toda conveniência a coordenação da atividade investigativa pelo órgão responsável pela acusação, até mesmo com atribuição para determinar todos os caminhos a serem ali percorridos, o fato é que a Constituição da República não foi sensível a esta recomendação, adotada, de resto, em inúmeros ordenamento.

A polícia “judiciária” – a expressão é equívoca e de todo incorreta – recebeu suas atribuições investigativas no próprio texto constitucional (art. 144, CF), o que, à falta de uma explicitação do significado da norma relativa aocontrole externo da atividade policialreservado ao Ministério Público (art. 129, VII, CF) e de uma efetiva tomada de posição, autoriza a compreensão no sentido de que a autoridade policial teria uma certa autonomia investigativa, no sentido apenas de poder adotar as diligências que lhe pareçam pertinentes à elucidação do caso, não lhe sendo permitido, porém, desatender às requisições ministeriais.

Nesse passo, tem a polícia atribuição para representar ao juízo criminal, para fins de obtenção de ordem judicial para as prisões cautelares, para as interceptações de comunicações, para a busca e apreensão domiciliar e, enfim, para o tangenciamento das inviolabilidades pessoais. E, isso, independentemente da concordância ou não do Ministério Público. Essa, ainda que não implique sequer umarazoávelescolha, parece ter sido uma opção constitucional, quaisquer que tenham sido as respectivas justificações (tradição do processo penal de 1941, interesses corporativistas etc.).

De modo que, a despeito de não se poder afirmar que a polícia investigativa tenha qualquer capacidade postulatória – afinal ela nãopostula,masrepresenta – a fase de investigação no processo penal não tem as mesmas cores e conotações doprocesso cautelar,que exigiria alegitimidade de partepara a postulação de providências acautelatórias junto à jurisdição.

Com efeito, quando se representa (a polícia) pretensão deprisão cautelar,não se instaura ali um típicoprocesso cautelar,submetido aos rigores das condições da ação e dos pressupostos processuais. Trata-se certamente de uma medida com feiçõescautelaresouacauteladorasde algo, anterior ao exercício da ação, mas realizada no âmbito de um procedimento regularmente previsto em lei, por órgão a tanto legitimado, também no foro constitucional.

6.O modelo mais adequado ao processo penal, sob a perspectiva de um Estado de Direito, no qual se reconhece e se direciona a base fundamental da organização política para a realização dos direitos fundamentais, há que ter, segundo nos parece, estruturagarantista,na melhor acepção do termo e da teoria que elaborou Luigi FERRAJOLI, em obra já bem conhecida do público brasileiro, a partir da tradução para o português do portentoso tratado intituladoDireito e razão. Teoria do garantismo penal.11

 Nela, o ilustre jusfilósofo italiano disseca a ampla movimentação teórica que permeou a evolução da filosofia do Direito Penal (e do Processo Penal) ao longo dos últimos séculos, detendo-se em minuciosas investigações acerca do papel da filosofia política (do Estado) na conformação dos direitos humanos. O resultado é a estruturação de um sistema de direitos no âmbito de um Estado também (e por isso mesmo) de Direito, a ser reconhecido como SG, com a seguinte axiomatização: A1Nulla poena sine crimine;A2Nullum crimen sine lege;A3Nulla lex (poenalis) sine necessitate;A4Nulla necessitas sine injuria;A5Nulla injuria sine actione;A6Nulla actio sine culpa;A7Nulla culpa sine judicio;A8Nullum judicium sine accusatione;A9Nulla accusatio sine probationee A10Nulla probatio sine defensione.

Malgrado toda a riqueza do mencionado tratado, nos deteremos aqui unicamente na conexão garantista com o princípio da não-culpabilidade, nos seus aspectos tipicamente processuais.

7.Segundo nos parece, o princípio da não-culpabilidade (ou inocência) encontra sua mais radical fundamentação naincerteza,enquanto ponto de partida. Praticado um fato lesivo e com aparência de tipicidade penal, cumpre ao Estado promover a descoberta de sua autoria e também adequá-lo a um modelo sancionatório regularmente previsto em lei. Mas, e isso é decisivo, deve-se partir daincertezae não dapossibilidade de certeza,a ser aferida pelas conclusões da autoridade investigate ou daquela com atribuição para a postulação junto à jurisdição.

Naturalmente, aoJudiciário não se autoriza onon liquet;ao contrário, espera-se dele uma avaliação conclusiva acerca da matéria – probatória e de direito – que lhe é submetida.Até porque, como assentamos emapresentação à obra coletiva acerca dogarantismo,“…A antítese levantada pelo garantismo residiria, aqui, nalegalidade x decisionismo,de modo a reduzir o papel “criativo” do juiz na construção do sentido das normas penais (vedação da analogiain malam partemetc.), mas também, no particular, a consolidar a ideiade potencialização da ampla defesa, para fins de conhecimento mais exauriente das questões de fato e de direito. Ferrajoli alerta para o fato de que, sendo a decisão judicial um ato de autoridade, seria necessário exigir que o juiz fundasse o seuconvencimento na ampla pesquisa sobre os fatos, de tal modo que, quanto maior fosse este (conhecimento) menor seria o manejo daquele (autoridade). Nova antítese:saber x poder.12

A incerteza quanto ao fato e quanto ao direito aplicável não é prerrogativa do conhecimento jurídico. Ao contrário. Lê-se em quase toda teoria do conhecimento pós-iluminista a nota da falibilidade dos eventuais acertos. Não que se deva renunciar à certeza nas ciências, mas acentuar a prudência quanto aos seus resultados.13

O conhecimentoprocessualobedece a regras específicas para a produção de certeza (judicial). E muitas delas são demasiado frágeis, como ocorre, por exemplo, com a prova testemunhal, em cujarepresentaçãodo fato o tempo interfere inexoravelmente, sem falar nos riscos de intimidação, de tomada de consciência etc. A reserva de insuficiência do conhecimento, portanto, se não impede a possibilidade de sua produção, recomenda, no mínimo, cautela quanto aos seus resultados prévios.

Posta a acusação, deve-seduvidardela. Não por razões associadas às peculiaridades do caso, mas comométodode exploração na formação do convencimento judicial. A estrutura dialética do processo – já assentada definitivamente – deve iniciar-se não pela acusação, mas pela suanegação. O que deve ser potencializado é acontradiçãoe não aafirmação. Sempre será possível justificar a absolvição de um efetivamenteculpado;já a condenação de umconcretamente inocentenão. O custo social é impagável.

Por isso, a opção do PLS 156 é eminentemente garantista, sem qualquer perda, porém, da efetividade da persecução penal.

Veja-se, por exemplo, que a principiologia adotada como orientação hermenêutica do Novo Código acentua que “A interpretação das leis processuais penais orientar-se-á pela proibição de excesso, privilegiando a máxima proteção dos direitos fundamentais, considerada, ainda, a efetividade da tutela penal” (art. 5, PLS 156).

Na mesma linha, no âmbito dos recursos, o disposto no art. 459 (PLS 156), a afirmar que “No recurso exclusivo da acusação, poderá o tribunal conhecer de matéria que, de qualquer modo, favoreça o acusado”. Também o art. 449: “O recurso da defesa devolve integralmente o conhecimento da matéria ao tribunal”. E, por fim, o disposto no art. 510 (PLS 156): “O recorrente poderá sustentar oralmente suas razões, cabendo ao recorrido se manifestar no mesmo prazo. No caso de recurso da defesa, poderá ela se manifestar novamente, após o Ministério Público”.

Todas essas disposições, acrescidas daquelas atinentes aos embargos infringentes, cabível apenas em favor da defesa (art. 478 – PLS 156), buscam potencializar ao máximo a ampla defesa, sem causar qualquer prejuízo à função persecutória. Aliás, tais medidas justificam-se até mesmo na ordem processual atual – de 1941 – na medida em que há previsão legal de ação de revisão criminalunicamente para a defesa,vedada a revisãopro societate.

Apenas uma leitura essencialmenteprivatistado processo penal, ou, quando nada, associada ao princípiodispositivo,que deixa o resultado do processo em mãos e à sorte dos contendores, poderá reclamar de violação ao princípio da igualdade. Afinal, pode-se indagar, porque isso (e aquilo) é permitido à defesa e não o é para a acusação?

Igualdade de partes – vimos, já – ou é inerente ao ambiente do processodispositivo,pouco importando se o resultado obtido decorreu da insuficiência defensiva, ou resume-se apenas ao seu aspectoformal.Evidentemente, deve a acusação ter o mesmo prazo para se manifestar no processo; deve, igualmente, poder se manifestar sempre em contraditório; deve poder recorrer; deve poder produzir prova – e sem a ajuda do juiz – e, enfim, deve exercer livremente toda atividade que legitima os interesses acusatórios. Uma inquietação: porque háampla defesae nãoampla acusação?

Mas, do ponto de vista do conteúdo do processo, deve-se submeter à dúvida, sempre, as conclusões em favor da condenação, na exata medida em que a sentença penal condenatória não implicará nenhum exercício de direito subjetivo a quem quer que seja. Muito pior: poderá implicar a privação da liberdade de alguém – responsabilizado por seu comportamento lesivo – com inegáveis e irrecuperáveis consequências sociais, dado que, sabe-se, a pena pública é suportada pelo réu, mas repercute intensamente na circunferência de suas relações.

Em síntese: no processo penal, na condenação – sobretudo – não há vencedor e vencido. Somos todos perdedores, a começar pela vítima.


Bibliografia básica

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1 Mestre e Doutor em Direito pela UFMG – Procurador Regional da República no Distrito Federal e Relator-Geral da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal para a elaboração de Anteprojeto de Novo CPP.
2 Porobjetividadeentenda-se aqui a equidistância concreta do juiz ou árbitro em relação ao conteúdo, fático e jurídico, que lhé submetido à apreciação.
3 TORNAGHI, Hélio.A relação processual penal,2ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 1987, p.247 e seguintes.
4 GRINOVER, Ada Pelegriniet all. Teoria geral do processo.São Paulo: Revista dos Tribunais. TUCCI, Rogério Lauria.Teoria do direito processual penal.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.93.
5 CARNELUTTI, Francesco.Principios del proceso penal.Trad. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires: Ediciones Juridica Europa-America, 1971.
6 No mesmo sentido, TUCCI, Rogério Lauria, ob. cit. P. 36, que faz a mesma objeção à conclusão final de Carnelutti.
7SALGADO, Joaquim Carlos.A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.
8 Ver nossa apresentação aoTratado de direito penal. Teoria do injusto e culpabilidade.JAKOBS, Günther. Belo Horizonte, Del Rey, 2009.
9 Ob. cit. p. 37.
10 DIAS, Jorge de Figueiredo.Direito processual penal.1ª. Edição. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 195.
11 FERRAJOLI, Luigi.Direito e razão. Teoria do garantismo penal.Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
12 FISCHER, Douglaset all. Garantismo integral.Escola Superior do Ministério Público da União, 2010,no prelo.
13 Registre-se, ainda que sem adesão completa às teses de Popper, as precisas observações do mestre vienense: “ O exame crítico das nossas conjecturas tem importância decisiva: põe em evidência nossos erros e nos leva a compreender as dificuldades do problema que pretendemos solucionar. É assim que nos familiarizamos com os problemas e podemos propor soluções mais maduras: por si mesma, a refutação de uma teoria constitui sempre um passo que nos aproxima da verdade. Dessa forma, aprendemos com os erros. POPPER, Karl R.Conjecturas e refutações. O progresso do conhecimento científico.5ª. Edição.Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UNB, 2008,prefácio.

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