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PROCESSO CIVIL
Dever de renegociar
Anderson Schreiber
16/01/2018
Realizou-se em Curitiba, o V Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil, que segue se destacando no país como o locus prioritário de discussão do direito privado no Brasil. A comissão organizadora do evento, formada pelos Professores Eroulths Cortiano Júnior, Ana Carla Harmatiuk Mattos e Carlos Eduardo Pianovsky, brilhou na seleção dos temas, todos apresentados em formato de perguntas, como já se tornou tradição nos congressos realizados pelo Instituto.
A mim, coube responder se existe um dever de renegociar. A pergunta, que foi objeto da minha tese de titularidade sobre equilíbrio contratual, não é simples e exige uma revisão aprofundada de importantes fundamentos do direito contratual brasileiro. Compartilho, contudo, com os leitores desta coluna os pontos centrais enfrentados em minha palestra, de forma sintética e em linguagem oral:
1. Vivemos um momento de supercontratualização. O modelo contratual estende-se, hoje, a relações antes governadas por outras espécies de estruturas jurídicos e sociais. Assim, (a) o contrato adentra, por exemplo, o Direito das Sucessões, por meio de diferentes técnicas do chamado planejamento sucessório; (b) invade o Direito de Família, por meio dos acordos de convivência e pactos de união estável; (c) prolifera-se no Direito Administrativo, por meio da gradativa migração de técnicas de império (desapropriação etc.) para instrumentos consensuais (v.g., convênios e termos de cooperação), na esteira de algo que Maria João Estorninho denominou, há muitos anos, de “fuga para o direito privado”; (d) o contrato invade também o Direito Processual e o exercício da jurisdição, por meio das cláusulas compromissórias e compromissos arbitrais e no próprio processo civil estatal pela novel figura dos negócios jurídicos processuais; e imiscui-se até mesmo (e) no Direito Penal e no Direito Processual Penal, por meio da celebração de acordos de leniência e de acordos de colaboração premiada, tantos deles nascidos aqui mesmo nesta cidade.
1. Essa supercontratualização tem muitos efeitos, mas um dos efeitos que nos interessa muitíssimo é a alteração no tempo das contratações. De um lado, o tempo para fechar contratos, para celebrar contratos é cada vez mais curto, temos cada vez menos tempo para formalizar nosso acordo de vontades. De outro lado, temos cada vez menos certeza do futuro, temos cada vez menos segurança com relação ao cenário econômico e existencial do porvir. Nessa combinação caótica entre a correria da vida e a incerteza do amanhã, temos duas possibilidades: (a) ou celebramos contratos curtíssimos, que durem o mínimo, que não nos exponham a risco, uma espécie de contrato-twitter, de brevíssima extensão, e vamos pulando de “contratinho” em “contratinho” com um custo de transação imenso; ou (b) celebramos contratos com outra lógica, “contratos abertos”, contratos que funcionem como mera baliza para uma relação contratual que será adaptada, no curso da sua evolução, ao cenário em que se insere. Não se trata exatamente de “contratos incompletos”, notem, porque não se destinam a se completar, não lhes falta uma parte. São completos no seu escopo que é um escopo diverso. Como advertiu Gustavo Tepedino na sua conferência de abertura deste congresso: não se trata de revisar as categorias tradicionais, mas de acolher uma racionalidade nova.
1. Hoje, o que estamos fazendo é justamente isso: estamos tentando aplicar categorias do passado a relações contratuais construídas com base em uma lógica nova. Vejamos o caso do desequilíbrio contratual superveniente. Como lidamos com o desequilíbrio contratual superveniente à formação do contrato? Nós dizemos assim: é preciso que haja um fato imprevisível e extraordinário que cause a onerosidade excessiva, nos termos dos artigos 478 e 317 do Código Civil. Sem isso, não há nem direito à resolução do contrato, nem direito à sua revisão. E o que faz nossa jurisprudência? Fica debatendo se os fatos causadores da excessiva onerosidade são ou não são fatos imprevisíveis e extraordinários. Por exemplo, temos milhares de processos judiciais no Brasil discutindo se a crise de 2008 é ou não um fato imprevisível e extraordinário para fins de resolução ou revisão de contratos desequilibrados.
1. Essa é uma discussão absolutamente artificial. Entre o desequilíbrio de um contrato específico e o fato geral da crise econômica de 2008, coloca-se uma série de causas sucessivas, como a escassez do crédito, a escassez do produto ou a elevação do preço de um ou mais dos componentes necessários à fabricação do bem que é objeto do contrato, e assim por diante. Quando nossos tribunais, e, antes disso, nossas petições elegem um acontecimento abstrato que julgamos imprevisível e extraordinário, como a “crise econômica de 2008”, em verdade, estamos fazendo uma escolha absolutamente arbitrária. A eleição dessa causa não respeita qualquer parâmetro jurídico: não é causa direta e imediata, não é causa eficiente, não é causa adequada, é uma escolha puramente narrativa.
1. Esse arbítrio fica ainda mais claro quando se percebe que o resultado do juízo de imprevisibilidade poderia ser inteiramente diverso conforme se detalhe mais ou menos o mesmo acontecimento. Por exemplo, o assassinato de uma pessoa é, infelizmente, um acontecimento ordinário; mas o assassinato de uma pessoa que ocupa a Presidência dos Estados Unidos da América é acontecimento extraordinário, porque só quatro mandatários norte-americanos foram assassinados no exercício do cargo em mais de 240 anos de história – ou é, ao contrário, um acontecimento ordinário se, por exemplo, a história norte-americana for comparada à história presidencial do Brasil, país que nunca teve um presidente eleito assassinado no exercício do cargo.
1. O problema não está, notem, só na aplicação arbitrária, está na própria ideia de imprevisibilidade. A teoria da imprevisão, desde sua concepção original no direito administrativo francês, tem como premissa necessária a ideia de que o contratante deu o tratamento que quis a todos os fatos que eram previsíveis no momento da celebração do contrato. Se não contemplou o acontecimento futuro e previsível de nenhuma maneira é porque não quis lhe reservar nenhum efeito no contrato, assumindo para si ou transferindo integralmente ao outro contratante o risco da sua ocorrência. Ora, será que, nos tempos atuais, em que a celebração do contrato é feita de forma cada vez mais dinâmica, nós, como contratantes, vamos parar para refletir sobre todos os acontecimentos futuros previsíveis, a fim de distribuir o risco deles entre as partes do contrato? É evidente que não, pois isso é faticamente impossível. É verdadeira ficção científica.
1. Mas, como nós juristas continuamos a professar esse entendimento, os contratantes não se sentem impelidos a adotar nenhuma atitude proativa. No fim do dia, quem terá ou deixará de ter razão não é quem adotou uma certa conduta a partir do desequilíbrio contratual. Ter ou não ter razão dependerá de uma discussão puramente abstrata (e arbitrária como vimos) sobre se o fato era ou não imprevisível, era ou não extraordinário. Nós que falamos tanto em boa-fé, ignoramos completamente o comportamento adotado pelas partes diante do estado de desequilíbrio do contrato e emergimos numa discussão bizantina sobre a atividade premonitória dos contratantes no momento da formação do contrato.
1. Com isso, o que acontece na prática no Brasil é essencialmente o seguinte: quem sofre o desequilíbrio, nada diz, simplesmente aguarda que o outro contratante o constitua em mora para só então, em sede de defesa, alegar o desequilíbrio contratual. E, quando isso não acontece, quando há uma tentativa por parte do contratante excessivamente onerado de renegociar o contrato, o contratante beneficiado é que silencia, recebendo as notificações sem responder, agindo como se não fosse com ele. Nós estimulamos por meio do direito civil uma postura passiva, inerte, que agrava os prejuízos decorrentes do desequilíbrio do contrato e, não raro, compromete de forma definitiva uma relação contratual que seria recuperável se as partes tivesse agido com mais prontidão e de boa-fé.
1. Na solução dos conflitos contratuais em geral, temos que passar a olhar para frente, e não mais para trás. A ideia de que o instrumento contratual firmado lá na largada da relação contratual é um documento milagroso que irá oferecer resposta a todos os impactos de eventos futuros sobre a relação contratual é uma ideia falsa. Temos que substituir o método backward-looking pelo método forward-looking no direito dos contratos. E para isso é imprescindível o reconhecimento de um dever de renegociar, entendido não como o dever de revisar o contrato extrajudicialmente ou de aceitar as condições sugeridas pelo contratante que sofre o desequilíbrio, mas sim como um dever de ingressar em renegociação, com base na boa-fé objetiva.
10. O dever de renegociar não é, como se vê, o dever de obter um certo resultado, mas sim um dever de comportamento. Desdobra-se em dois aspectos fundamentais: (a) para quem sofre o desequilíbrio, o dever de renegociar impõe informar prontamente o desequilíbrio contratual ao outro contratante, formulando um pleito de revisão do contrato; (b) para quem se beneficia do desequilíbrio, o dever de renegociar impõe analisar, com seriedade, o pleito eventualmente apresentado pelo outro contratante e respondê-lo, ainda que para negá-lo – o que, ao menos, indicará ao contratante que sofre a excessiva onerosidade qual o caminho a adotar.
11. Alguns bons exemplos de legislação ao redor do mundo já reconhecem esse dever de renegociar. Cito, para os que quiserem se aprofundar, o artigo 6.2.3 (1) dos Princípios Unidroit relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, seguindo o qual “em caso de hardship, a parte em desvantagem tem direito de pleitear renegociações. O pleito deverá ser feito sem atrasos indevidos e deverá indicar os fundamentos nos quais se baseia.” Em sentido semelhante, os Princípios de Direito Contratual Europeu prevêm, em seu artigo 6:111, que, “se o cumprimento do contrato se tornar excessivamente oneroso devido a uma alteração das circunstâncias, as partes estão obrigadas a entrar em negociações, a fim de adaptar o contrato ou extingui-lo.” O Código Civil da República Tcheca, de 2012, §§ 1.764 a 1.766 asseguram a qualquer dos contratantes o direito de pleitear a renegociação do contrato e atribuem à contraparte o dever de responder ao pedido de renegociação. Além disso, o Código Civil tcheco condiciona a admissibilidade do pleito de revisão judicial do contrato à demonstração de que o direito à renegociação foi exercido em “prazo razoável”, chegando a afirmar que tal prazo será de dois meses, salvo prova de que outro prazo decorre das circunstâncias do caso concreto. O Código Civil da Romênia, de 2011, impõe um dever de renegociação às partes em virtude de um desequilíbrio contratual superveniente. Em dispositivo nitidamente inspirado no Draft Common Frame of Reference, o artigo 1.271 da codificação romena determina que a revisão judicial do contrato ou sua resolução somente poderão ser pleiteados se o devedor “tenha tentado, dentro de um prazo razoável e de boa fé, negociar a adaptação razoável e eqüitativa do contrato”.
12. Em todos esses lugares, e também em outros que o esgotamento do tempo me impede de citar, já se reconhece que a violação a esse dever de renegociar gera direito à indenização por danos sofridos pelo contratante em decorrência quer da demora irrazoável em comunicar o desequilíbrio posteriormente pleiteado, quer em decorrência da demora ou inércia do contratante beneficiado pelo desequilíbrio em tentar efetivamente buscar, de comum acordo, uma solução negocial para o problema da excessiva onerosidade da contraparte. No Brasil, estamos ainda lá atrás nessa matéria. Precisamos vencer resistências e avançar. Aqui, vale o verso, que tanto aprecio, de Paulo Lemisky: “Haja hoje para tanto ontem.”
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